quinta-feira, 27 de outubro de 2011

“HADRIAN’S WALL” – A MURALHA DE ADRIANO E A MURALHA DE TODOS NÓS


“(...) Seremos tanto mais nós mesmos quanto mais formos iguais em nossas diferenças.”
(Mário Chamie na apresentação de “Ingleses no Brasil” – de Gilberto Freyre)

Acho primitivo pensarmos hoje na edificação de muralhas para a demarcação de territórios – ou para proteção do que quer que seja.

Uma muralha representa uma barreira, uma procura por controle, um desejo de dominação, um gesto de prepotência, como se pudéssemos ser donos, dominadores ou proprietários de alguma coisa além dos nossos anseios, pensamentos e sonhos.
  
Mas eis que anteontem, em viagem de estudos no norte da Inglaterra, depois de uma manhã na Abadia de Hexham sob um frio glacial, recebo de meu amigo anfitrião a informação de que íamos visitar a “Muralha de Adriano”.

- “Caraca”... pensei, ”mas será mesmo aquela Muralha descrita nos livros de História, construída pelo imperador Adriano lá no fim do mundo?”

De fato. Era. Dei-me conta de que estava ali pertinho. Lembrei-me do tempo do colégio quando li muito vagamente sobre a existência dessa Muralha construída para proteger dos bárbaros o extremo noroeste do Império Romano. Sua imagem não havia ficado na minha mente tão fortemente gravada quanto a da Muralha da China ou do Muro de Berlim. Não havia me atentado para a dimensão de seu significado e importância. Revi naquele momento minhas antigas professoras de História no ginásio e no colégio e, com elas, o ressurgimento do Império Romano.

De Hexham, então, rumamos para o Norte, passando por aldeias minúsculas com casas feitas de pedras cinzentas às margens da rodovia, e por muitos campos com criação de ovelhas. Pela direção do olhar involuntariamente lançado e pelo sentido do pensamento, percebi que se confirmavam as impressões de G.M. Trevelyan quando ele se referia à região, com senso de liberdade e espaço, como sendo uma “terra de horizontes distantes”.

(olhar perdido em uma "terra de horizontes distantes" - arquivo pessoal)

Depois de um tempo deixamos a rodovia e, passando por uma porteira, subimos por uma estrada estreita. No alto do morro, tremendo de frio, desci do carro para entrar em um pequeno museu da Muralha onde havia cartões postais, mapas, guias, chaveiros, painéis, fotos...


(placa na entrada do Museu da Muralha de Adriano - "Fronteira do Império Romano" - patrimônio da humanidade - arquivo pessoal)


Lá fora, olhando mais adiante pela janela do museu, estava a Muralha viva em pedras mortas.

(Muralha de Adriano: A Muralha viva em pedras mortas - arquivo pessoal)

Ali sim fui além da ficção e senti na pele o verdadeiro significado de um morro onde uivam os ventos. Não poderia, de forma alguma, deixar de ter contato físico com as pedras daquele local. Saí todo agasalhado para lutar contra o vento, a chuva, o terreno íngreme e o frio - os verdadeiros bárbaros daquela tarde. Equilibrando-me, ouvindo explicações do guia, deixei o olhar estender-se até o horizonte distante, naquelas pedras que foram um dia a demarcação do limite das conquistas do império romano. Senti sob os meus pés a história do que aquela muralha significou. Muito dela ainda está preservada, apesar de não representar mais o limite físico de um império. Virou atração turística. 


 ["A História sob meus pés" - na foto com um dos guias (de azul) e companheiros de visita - arq. pessoal]
                                  
Depois de algum tempo voltei sozinho e congelado para o carro. Os pensamentos e as comparações foram inevitáveis e, de alguma forma, me desviaram da sensação de desconforto pelo frio. As pedras sem vida, umas sobre as outras, me pareciam gente. Na minha mente estava a visão dos homens de hoje laborando individualmente na construção de muralhas imateriais ao seu redor, contrastando e se assemelhando com os homens daquela época quando construíam muralhas físicas. São elas, as muralhas de hoje, os obstáculos defensivos que nos impedem de sermos e conhecermos seres inteiros; são muralhas invisíveis intransponíveis - pedras brutas ou polidas aglomeradas que dão a falsa idéia de fortaleza: indigno retrato de temores e dificuldades nas relações humanas. Há nas muralhas invisíveis o desejo de proteção e segurança; transmitem uma frieza calculada, superficialidade.

Meu anfitrião entra no carro dizendo que também sentiu frio. Instintivamente digo a ele que aquela visita nos fez bem; que ela nos ensinou a preferirmos muralhas desmoronadas - como a “Muralha de Adriano” - e impérios caídos - como o Império Romano, pois representam mais fielmente as fraquezas humanas; apontam para nossa vulnerabilidade, para o nosso desamparo, para a fragilidade da nossa existência...  

Berwick-upon-Tweed, 07out2011