sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

SATANÁS E A QUEIMA DE LIVROS


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"Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas" (H. Heine)
(Memorial - queima de livros de 1933 - Praça Römemberg, Frankfurt, Alemanha)


     Enchentes, terremotos, agentes infecciosos, guerras e regimes totalitários são responsáveis por muitas mortes em todos os cantos do mundo. Mas não só de pessoas. 


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"Shine on you crazy diamond" - Pink Floyd
https://www.youtube.com/watch?v=053yVSPL_d4

     O registro do pensamento do homem - que,  desde Gutenberg*, tem sido transmitido e mantido por livros - de tempos em tempos também foi objeto de destruição. Houve um tempo, aqui no Brasil, em que pensar, debater, questionar e manifestar o conteúdo do pensamento eram exercícios vigiados, passíveis de punição. Por que será que ainda hoje, aqui no nosso país, padecemos da falta de lideranças políticas dignas de respeito e admiração? A perseguição de propagadores de ideias não alinhadas ao convencional de um determinado tempo promove uma perda imediata; mas a restrição da liberdade de expressão produz efeitos que afetam muitas gerações.

     O motivo para que esse absurdo seja sustentado é muito variável: destruição de aspectos culturais de uma nação, como ocorreu durante a colonização da América, quando muitos dos manuscritos maias e astecas foram destruídos (1560); perseguição religiosa, como ocorreu com as traduções da Bíblia feitas por Martinho Lutero; "combustível" de incêndios, como ocorreu em 1813 com a queima de livros da Biblioteca do Congresso para incendiar o Capitólio dos EUA, feita pelos ingleses durante a Batalha de Washington; destruição de uma ideologia, como aconteceu na União Soviética, nos anos 20, para combater ideologia ocidental, e na Alemanha nazista, em 1933, com a chegada de Hitler ao poder.

     Na América do Sul, em 1973, a ditadura chilena queimou centenas de livros como forma de censura.

     O Brasil também foi vítima desse absurdo. Em novembro de 1937 a ditadura do Estado Novo incinerou, na presença de centenas de pessoas em praça pública, uma grande quantidade de livros ditos subversivos. Nos dias anteriores, nas livrarias da cidade de Salvador, os livros da autoria de Jorge Amado e de outros autores que eram considerados, conforme se dizia à época, "simpatizantes do credo vermelho", haviam sido apreendidos. De Jorge Amado, foram incinerados:

888 exemplares de Capitães da Areia;
232 exemplares de Mar Morto;
89 exemplares de Cacau;
93 exemplares de Suor;
267 exemplares de Jubiabá;
214 exemplares de País do Carnaval.

     E não foram somente livros de Jorge Amado: José Lins do Rego também entrou na dança. De sua autoria foram apreendidos e queimados:

15 exemplares de Doidinho;
26 exemplares de Pureza;
13 exemplares de Bangue;
04 exemplares de Moleque Ricardo;
14 exemplares de Menino de Engenho.

Incineração noticiada em jornal

     E, como se as liberdades expressas na Constituição Federal de 1946 não tivessem servido para nada, o país voltou a perseguir pensadores - e livros. Com a publicação da Lei 1050/67, a censura no Brasil foi (re)instituída. E, depois, o Decreto-Lei 1077 de 26 de janeiro de 1970, deu a ela mais força:   

     Art. 1º - Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.

     Art. 2º - Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.  

Parágrafo único - O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o modo e a forma da verificação prevista neste artigo.
     
Art. 3º - Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.

     Mas, qual o significado de "moral e bons costumes"? Eu, angustiado por natureza, fico pensando nessas idas e vindas da história. Com tanta fake news circulando nas mídias sociais, com tanta notícia comprada, direcionada, manipulada, um mínimo de consciência crítica e de bom senso me faz acreditar que o significado de "moral" e "bons costumes" não pode ser o resultado de qualquer imposição que possa levar à proibição do livre exercício de pensamento e de sua expressão. Outro dia li que Heinrich Heine (1797-1856), poeta alemão, em seu tempo, preocupado com o que andava lendo, pensando e observando, acabou por manifestar o seu temor: "Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas". Eu, que olho para o céu e enxergo nuvens que talvez nem existam, acrescento aos temores do Heirich Heine os meus próprios: "restrições chegam a conta-gotas para serem servidas, depois, em caldeirões de agentes tóxicos".

     - "Oh, meu Deus", raciocino, "livrai-me desses pensamentos! Vivemos outros tempos!" 
     
     - "É, mas as idas e vindas da história..." - ouço, do silêncio.

     E concluo:

     - "Chega! Sai Satanás! Cada besteira...!"
__________________________ 
*Johannes Gutenberg - (aprox. 1398 - 1468) - alemão, desenvolveu um sistema mecânico que deu início à revolução da imprensa.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A ELIZETH VEIO ME VISITAR


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Elizeth Cardoso - "Canção de amor"
https://www.youtube.com/watch?v=y9Bt6_UvXC0


     Hoje de manhã, ao acessar um site voltado para a criação artística no Brasil, "dei de cara" com a Elizeth Cardoso sorrindo para mim. Por um minuto olhei para aquela foto enorme, antiga, ainda em preto e branco, e pensei nas surpresas que a vida nos proporciona: surpresas, coincidências ou sei lá o quê. Talvez um sinal da imortalidade das almas, não sei...

     O fato é que, no final da tarde de ontem, ainda em meu escritório, eu tinha ouvido a Ária-Cantilena, das Bachianas nº 5 do Villa-Lobos, em gravação feita pela Elizeth Cardoso. E como eu não conhecia aquela gravação, voltei para casa com o coração entalado na garganta, doido para me sentar calado e ficar pensando em coisas distantes... "pelo céu vazio de esperança... regressar para os meus, ao meu lugar..." - conforme cantado na letra poética da Ária Cantilena, escrita por David Nasser*.

Imagem relacionada
Elizeth Cardoso

     Só sei dizer que ao chegar em casa, à noite, abri a porta da sala de visitas, sentei-me no sofá, abracei o meu violão, toquei e cantei a "Canção de Amor", diversas vezes, para homenagear a minha ilustre visitante: "Saudade, torrente de paixão, emoção diferente, que aniquila a vida da gente, uma dor que eu não sei de onde vem...".

     Que grata visita!

     "Volte sempre, Elizeth!"

Ária Cantilena (Bachianas nº 5)
(Villa-Lobos. Texto: David Nasser)

Vai
Por este céu vazio de esperança
Vai minha alma regressar
Para os meus ao meu lugar
Este chão de todos nós

Quando alguém me escutar
Vai lembrar

Vai lembrar a minha voz, as preces
Que deixei quando parti
dando tudo pra não ir

Ai... A eternidade...
Ai... Este meu grito...
Ai... Tudo perdido...
Ai... A esperança.

O infinito.
Canção de Amor
(Elano de Paula/Chocolate)

Saudade torrente de paixão
Emoção diferente
Que aniquila a vida da gente
Uma dor que não sei de onde vem

Deixaste meu coração vazio
Deixaste a saudade
Ao desprezares aquela amizade
Que nasceu ao chamar-te meu bem

Nas cinzas do meu sonho
Um hino então componho
Sofrendo a desilusão
Que me invade
Canção de amor, saudade!
Saudade

__________________________ 
*David Nasser (1917-1980) - compositor e jornalista brasileiro, filho de imigrantes libaneses.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

NOTAS A RESPEITO DO Sr ALFREDO, DO VIZINHO DA Sra. RIORDAN, E DO Sr. OVE



"Coitado do 'seu' Alfredo..."
(Vinícius de Moraes)


     Havia, aqui no Brasil, um homem que vivia trancado em seu próprio mundo. Chamava-se Alfredo*. Tinha um jeito distinto, porém entristecido. Morava só. Ninguém o visitava. Suas companhias eram dois animais: um louro e um gato. Aprisionado em sua solidão, o senhor Alfredo padecia da falta de carinho e atenção. Porque parecia  bom, e procurando demonstrar simpatia, seu vizinho do lado sempre o cumprimentava.

     Na Inglaterra, ao que tudo indica, a Sra. Riordan também tinha um vizinho que morava no andar imediatamente abaixo do seu**. Era tão solitário quanto o senhor Alfredo. Mas, ao contrário do senhor Alfredo, ele não era nem um pouco amigável. Ranzinza, não gostava que dirigissem a palavra a ele: vivia trancado em sua casa, dentro de um quarto, e dentro de  si mesmo. Quando era visto, transmitia um mal estar que afastava as pessoas. Por tal motivo, ninguém procurava se aproximar dele.

     Na Suécia, um outro homem também levava a vida no mesmo enclausuramento voluntário que o senhor Alfredo e o vizinho da Sra. Riordan: chamava-se Ove***. Era um antigo funcionário de uma empresa ferroviária. Por ser rigorosamente exigente com tudo e com todos, inclusive no exercício do cargo de síndico do condomínio onde morava, afastava qualquer tentativa de aproximação que alguém pudesse querer. Era também muito amargurado. Viúvo, morava só.

     Apesar das semelhanças, a vida traçou destinos diferentes para eles.

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Simon and Garfunkel - "A most peculiar man"

     Estes três homens tinham um mesmo plano. Mas apenas o sr. Alfredo e o vizinho da sra. Riordan atingiram seus objetivos: o sr. Ove, diferente dos outros dois, encontrou novas motivações e desviou-se do projeto pessoal que havia traçado. Assim, tanto o sr. Alfredo quanto o vizinho da sra. Riordan, cada qual em seu tempo e em sua respectiva casa, preencheu seu isolamento e sua solidão com gás de botijão de cozinha: por asfixia, deram fim às próprias vidas.

     Quanto ao sr. Ove, por ironia do destino, uma família barulhenta mudou-se para o condomínio no qual ele residia. E nessa família, uma simpática imigrante iraniana, não se assustando com a sua sisudez, procurou aproximar-se dele. Dessa forma ela e sua família foram ocupando espaços em sua vida, e promovendo nele uma tremenda e vagarosa humanização. Essa aproximação fez com que o sr. Ove se desviasse de seus planos.

Cena do filme

     O sr. Alfredo e o vizinho da sra. Riordan pareciam bastante diferentes. O Sr. Alfredo, diferente do vizinho da sra. Riordan, vivia na companhia de dois animais (um louro e um gato) - o que é, sem dúvida, um sinal de afetividade. Em relação ao vizinho da sra. Riordan, não há notícias de que alguma pessoa ou animal convivesse com ele.

     Dois outros detalhes também apontam para as diferenças existentes entre o Sr. Alfredo e o vizinho da Sra. Riordan. O Sr. Alfredo, conforme foi noticiado, preocupou-se em expor os motivos que o levaram à asfixia. Essa preocupação deixa claro que ele tinha alguma consideração para com qualquer um que eventualmente quisesse conhecer os motivos que o haviam levado a por fim à própria vida: em bilhete deixado, ele contou que, simplesmente, estava cansado de viver. Mas o vizinho da Sra. Riordan não se preocupou nem um pouco em se explicar. Dele, somente se sabia que tinha um irmão, em algum lugar. Também me pareceu muito curioso que, do vizinho da Sra. Riordan, nem ao menos o nome fosse conhecido; ao passo que, apesar do desconhecimento do sobrenome, era Alfredo o nome daquele homem que tinha um louro e um gato de estimação.

     Quanto ao sr. Ove, por ter tido sua atenção desviada para o próximo, encontrou um sentido para a própria vida: começou a enxergar a existência de amor, dedicação e carinho em torno de si. Viu também que era por esse caminho que poderia ser feliz. E assim, em um dia qualquer, e por vontade alheia à sua, foi morar no paraíso.

_____________________  
*Conforme contado por Vinícius de Moraes, na letra da canção "Um homem chamado Alfredo" (Vinícius/Toquinho)
**Conforme cantado por Paul Simon e Arthur Garfunkel na canção "A most peculiar man" (Paul Simon). A canção nasceu a partir de uma nota lida pelo Paul Simon em um jornal londrino.
***Conforme mostrado no filme sueco "Um homem chamado Ove", dirigido por Hannes Holm (2015)   

A Most Peculiar Man


He was a most peculiar man
That's what Mrs. Riordan says and she should know
She lived upstairs from him

She said he was a most peculiar man
He was a most peculiar man
He lived all alone within a house
Within a room, within himself

A most peculiar man
He had no friends, he seldom spoke
And no one in turn ever spoke to him

'Cause he wasn't friendly and he didn't care
And he wasn't like them
Oh no! He was a most peculiar man

He died last Saturday
He turned on the gas and he went to sleep
With the windows closed so he'd never wake up
To his silent world and his tiny room

And Mrs. Riordan says he has a brother somewhere
Who should be notified soon
And all the people said
"What a shame that he's dead
But wasn't he a most peculiar man?
Um Homem Muito Peculiar

Ele era um homem muito peculiar
Foi o que a Sra. Riordan diz e ele deve saber
Ela morava no andar acima dele

Ela disse que ele era um homem muito peculiar
Ele era um homem muito peculiar
Ele morava só dentro da casa
Dentro de um quarto, dentro de si

Um homem muito peculiar
Ele não tinha amigos, ele raramente falava
E ninguém por sua vez falava com ele

Pois ele não era amigável e não ligava
E ele não era como os demais
Oh não! Ele era um homem muito peculiar

Ele morreu no último sábado
Ele ligou o gás e foi dormir
Com as janelas fechadas para que nunca acordasse
Para seu mundo silencioso e seu pequeno quarto

E Sra. Riordan diz que ele tem um irmão em algum lugar
Que deveria logo ser notificado
E todo o povo dizia
"Que pena que ele morreu
Mas não era ele um homem muito peculiar?
Um Homem Chamado Alfredo

O meu vizinho do lado
Se matou de solidão.
Abriu o gás, o coitado,
O último gás do bujão.
Porque ninguém o queria,
Ninguém lhe dava atenção.
Porque ninguém mais lhe abria
As portas do coração.
Levou com ele seu louro
E um gato de estimação.

Ah! Quanta gente sozinha,
Que a gente mal adivinha.
Gente sem vez para amar,
Gente sem mãos para dar,
Gente que basta um olhar, quase nada...
Gente com os olhos no chão
Sempre pedindo perdão.
Gente que a gente não vê
Porque é quase nada.

Eu sempre o cumprimentava
Porque parecia bom.
Um homem por trás dos óculos,
Como diria Drummond.
Num velho papel de embrulho
Deixou um bilhete seu
Dizendo que se matava
De cansado de viver.
Embaixo assinado Alfredo,
Mas ninguém sabe de que.