quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

NOTAS A RESPEITO DO Sr ALFREDO, DO VIZINHO DA Sra. RIORDAN, E DO Sr. OVE



"Coitado do 'seu' Alfredo..."
(Vinícius de Moraes)


     Havia, aqui no Brasil, um homem que vivia trancado em seu próprio mundo. Chamava-se Alfredo*. Tinha um jeito distinto, porém entristecido. Morava só. Ninguém o visitava. Suas companhias eram dois animais: um louro e um gato. Aprisionado em sua solidão, o senhor Alfredo padecia da falta de carinho e atenção. Porque parecia  bom, e procurando demonstrar simpatia, seu vizinho do lado sempre o cumprimentava.

     Na Inglaterra, ao que tudo indica, a Sra. Riordan também tinha um vizinho que morava no andar imediatamente abaixo do seu**. Era tão solitário quanto o senhor Alfredo. Mas, ao contrário do senhor Alfredo, ele não era nem um pouco amigável. Ranzinza, não gostava que dirigissem a palavra a ele: vivia trancado em sua casa, dentro de um quarto, e dentro de  si mesmo. Quando era visto, transmitia um mal estar que afastava as pessoas. Por tal motivo, ninguém procurava se aproximar dele.

     Na Suécia, um outro homem também levava a vida no mesmo enclausuramento voluntário que o senhor Alfredo e o vizinho da Sra. Riordan: chamava-se Ove***. Era um antigo funcionário de uma empresa ferroviária. Por ser rigorosamente exigente com tudo e com todos, inclusive no exercício do cargo de síndico do condomínio onde morava, afastava qualquer tentativa de aproximação que alguém pudesse querer. Era também muito amargurado. Viúvo, morava só.

     Apesar das semelhanças, a vida traçou destinos diferentes para eles.

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Simon and Garfunkel - "A most peculiar man"

     Estes três homens tinham um mesmo plano. Mas apenas o sr. Alfredo e o vizinho da sra. Riordan atingiram seus objetivos: o sr. Ove, diferente dos outros dois, encontrou novas motivações e desviou-se do projeto pessoal que havia traçado. Assim, tanto o sr. Alfredo quanto o vizinho da sra. Riordan, cada qual em seu tempo e em sua respectiva casa, preencheu seu isolamento e sua solidão com gás de botijão de cozinha: por asfixia, deram fim às próprias vidas.

     Quanto ao sr. Ove, por ironia do destino, uma família barulhenta mudou-se para o condomínio no qual ele residia. E nessa família, uma simpática imigrante iraniana, não se assustando com a sua sisudez, procurou aproximar-se dele. Dessa forma ela e sua família foram ocupando espaços em sua vida, e promovendo nele uma tremenda e vagarosa humanização. Essa aproximação fez com que o sr. Ove se desviasse de seus planos.

Cena do filme

     O sr. Alfredo e o vizinho da sra. Riordan pareciam bastante diferentes. O Sr. Alfredo, diferente do vizinho da sra. Riordan, vivia na companhia de dois animais (um louro e um gato) - o que é, sem dúvida, um sinal de afetividade. Em relação ao vizinho da sra. Riordan, não há notícias de que alguma pessoa ou animal convivesse com ele.

     Dois outros detalhes também apontam para as diferenças existentes entre o Sr. Alfredo e o vizinho da Sra. Riordan. O Sr. Alfredo, conforme foi noticiado, preocupou-se em expor os motivos que o levaram à asfixia. Essa preocupação deixa claro que ele tinha alguma consideração para com qualquer um que eventualmente quisesse conhecer os motivos que o haviam levado a por fim à própria vida: em bilhete deixado, ele contou que, simplesmente, estava cansado de viver. Mas o vizinho da Sra. Riordan não se preocupou nem um pouco em se explicar. Dele, somente se sabia que tinha um irmão, em algum lugar. Também me pareceu muito curioso que, do vizinho da Sra. Riordan, nem ao menos o nome fosse conhecido; ao passo que, apesar do desconhecimento do sobrenome, era Alfredo o nome daquele homem que tinha um louro e um gato de estimação.

     Quanto ao sr. Ove, por ter tido sua atenção desviada para o próximo, encontrou um sentido para a própria vida: começou a enxergar a existência de amor, dedicação e carinho em torno de si. Viu também que era por esse caminho que poderia ser feliz. E assim, em um dia qualquer, e por vontade alheia à sua, foi morar no paraíso.

_____________________  
*Conforme contado por Vinícius de Moraes, na letra da canção "Um homem chamado Alfredo" (Vinícius/Toquinho)
**Conforme cantado por Paul Simon e Arthur Garfunkel na canção "A most peculiar man" (Paul Simon). A canção nasceu a partir de uma nota lida pelo Paul Simon em um jornal londrino.
***Conforme mostrado no filme sueco "Um homem chamado Ove", dirigido por Hannes Holm (2015)   

A Most Peculiar Man


He was a most peculiar man
That's what Mrs. Riordan says and she should know
She lived upstairs from him

She said he was a most peculiar man
He was a most peculiar man
He lived all alone within a house
Within a room, within himself

A most peculiar man
He had no friends, he seldom spoke
And no one in turn ever spoke to him

'Cause he wasn't friendly and he didn't care
And he wasn't like them
Oh no! He was a most peculiar man

He died last Saturday
He turned on the gas and he went to sleep
With the windows closed so he'd never wake up
To his silent world and his tiny room

And Mrs. Riordan says he has a brother somewhere
Who should be notified soon
And all the people said
"What a shame that he's dead
But wasn't he a most peculiar man?
Um Homem Muito Peculiar

Ele era um homem muito peculiar
Foi o que a Sra. Riordan diz e ele deve saber
Ela morava no andar acima dele

Ela disse que ele era um homem muito peculiar
Ele era um homem muito peculiar
Ele morava só dentro da casa
Dentro de um quarto, dentro de si

Um homem muito peculiar
Ele não tinha amigos, ele raramente falava
E ninguém por sua vez falava com ele

Pois ele não era amigável e não ligava
E ele não era como os demais
Oh não! Ele era um homem muito peculiar

Ele morreu no último sábado
Ele ligou o gás e foi dormir
Com as janelas fechadas para que nunca acordasse
Para seu mundo silencioso e seu pequeno quarto

E Sra. Riordan diz que ele tem um irmão em algum lugar
Que deveria logo ser notificado
E todo o povo dizia
"Que pena que ele morreu
Mas não era ele um homem muito peculiar?
Um Homem Chamado Alfredo

O meu vizinho do lado
Se matou de solidão.
Abriu o gás, o coitado,
O último gás do bujão.
Porque ninguém o queria,
Ninguém lhe dava atenção.
Porque ninguém mais lhe abria
As portas do coração.
Levou com ele seu louro
E um gato de estimação.

Ah! Quanta gente sozinha,
Que a gente mal adivinha.
Gente sem vez para amar,
Gente sem mãos para dar,
Gente que basta um olhar, quase nada...
Gente com os olhos no chão
Sempre pedindo perdão.
Gente que a gente não vê
Porque é quase nada.

Eu sempre o cumprimentava
Porque parecia bom.
Um homem por trás dos óculos,
Como diria Drummond.
Num velho papel de embrulho
Deixou um bilhete seu
Dizendo que se matava
De cansado de viver.
Embaixo assinado Alfredo,
Mas ninguém sabe de que.


2 comentários:

  1. Querido Primo, você é muito bom, é um escritor que do "nada" constrói uma narrativa rica que desenha, entre outras coisas, o comportamento das pessoas, de uma forma muito agradável! Parabéns, sou um admirador do seu talento!
    Gostei muito de uma de suas fontes inspiradoras para esse texto, a música de Toquinho e Vinícius,da qual, vc sabe, gosto muito,!
    Obrigado por nos presentear com esse belo texto! Abração!

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    1. Obrigado por suas palavras, brimo. Seja sempre bem vindo ao blog. Abração!

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