quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

BRIDGE OVER TROUBLED WATER*



(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
("Bridge over troubled water", composta por Paul Simon, do disco de 1970 com o mesmo nome, gravado por Paul Simon e Arthur Garfunkel (Simon and Garfunkel).



     Alguns momentos, de tão especiais que são, servem para nos mostrar que estamos muito além de nós mesmos; que nossos gestos, nossos atos, nossas palavras, permanecem no coração de quem nos observa - em especial quando estamos na condição de orientadores. Digo isso porque, ao ouvir uma música hoje, revivi algumas de minhas histórias.

     Ainda adolescente fui aos Estados Unidos na condição de estudante. E como tal, frequentei colégio. Dentre as disciplinas obrigatórias que cursava, Biologia era uma delas. Acontece que com Biologia eu não tinha nenhuma afinidade. E, para agravar, meu inglês era muito limitado. Assim, a dificuldade para acompanhar o curso era imensa.

     Durante as aulas, Mr. Mitrovich, o professor, costumava colocar música bem baixinho. E “Bridge over troubled water” era frequente. Então eu, “olhando” a aula, passava todo o seu tempo atento à música. E por intermédio dela fazia muitas viagens.

     “Bridge over troubled water” foi feita para uma jovem que estava começando a viver sua liberdade, e que estava se dando conta das dificuldades que naturalmente começavam a lhe aparecer. E o autor, na música, tenta estimulá-la a ter força e determinação para vencer obstáculos e seguir seu próprio caminho.

("Charing Cross Bridge" - Monet, 1900. Fonte: http://www.wikiart.org/en/claude-monet/charing-cross-bridge-overcast-weather)

     Na letra da música os problemas foram representados por um rio de águas turbulentas que precisava ser atravessado. E para que os problemas não impedissem a jovem de fazer suas conquistas, o autor lhe dizia que estaria ao seu lado para prestar qualquer auxílio.

     “Bridge over troubled water” é uma canção com três estrofes e que fala de solidariedade. Depois de mencionar situações que sugerem dificuldades, as duas primeiras estrofes terminam com “like a bridge over troubled water I will lay me down” (como uma ponte sobre águas turbulentas eu me estenderei). Com isso, o autor pinta uma imagem de alguém que servirá de apoio nas dificuldades. Na terceira estrofe, depois de incentivar a jovem a enfrentar a vida, o autor encerra dizendo que, como uma ponte sobre águas turbulentas, ele estará ali para tranquilizar a mente dela (“like a bridge over troubled water I will ease your mind”).

     Terminado o meu período de estudos nos Estados Unidos, e muitos anos mais tarde, fui contratado professor de inglês em um colégio. Em uma das aulas levei a letra de “Bridge over troubled water” para que meus alunos a traduzissem e fizessem a interpretação de sua mensagem. No final da aula coloquei a gravação da música em um aparelho de som, e sugeri que cantássemos juntos. Para minha surpresa, no início da segunda estrofe, uma das alunas levantou-se e cantou... e encantou. Todos nós – os demais alunos e eu – boquiabertos, nos calamos e ficamos ouvindo sua voz preencher todos os espaços daquela sala de aula. Foi um momento lindíssimo do qual jamais me esqueci.

     Muitos anos se passaram. Tive notícias dos destinos de vários alunos, mas nunca mais soube da minha aluna-cantora.

     Outro dia, em um bar com música ao vivo onde estávamos eu e a minha mulher, o violonista chamou ao pequeno palco sua esposa e a apresentou como arquiteta - e cantora nas horas vagas. Percebi que aquele rosto não me era estranho - e consegui identificar nele aquela aluna, naquela aula, naquele colégio.

     Pois ela pegou o microfone com segurança, sorriu com o coração, e cantou "Bridge Over Troubled Water". Ao final, não resisti de emoção. Certo de que não seria reconhecido, fui me apresentar a ela e cumprimentá-la. Mas antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa ela desceu do palco, chamou-me pelo nome, me abraçou, e agradeceu-me por estar ali... e especialmente por aquele momento, naquela aula, naquele colégio, há tantos anos.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

ABAPORU



"Só a antropofagia nos une"
(Oswald de Andrade)


     Desde pequeno conheço "de vista" o "Abaporu". Nunca o entendi, nunca tentei entendê-lo. Eu o achava simples, infantil, e nem sabia porque esse quadro merecia tanta consideração. Sempre que o via em algum livro só enxergava um ser deformado em um lugar muito quente - e nada mais.

     Mas como a ignorância não resiste a uma pequena busca que seja, fui pesquisar o seu significado. E essa minha visão de ignorante foi radicalmente transformada!

     Buscando traçar sua verdadeira identidade, em um determinado momento da história alguns artistas do nosso país entenderam que precisávamos falar por nós mesmos, expressando nossos verdadeiros valores. Então, ao invés de desprezarem as expressões culturais e artísticas de outras nações - até então simplesmente copiadas -, houveram por bem propor que devorássemos a arte e a técnica estrangeiras, submetendo-as a uma avaliação crítica de nosso estômago cultural, deixando verter, por conseguinte, uma expressão essencialmente brasileira.

     E esse "engole, digere e expressa" foi comparado por Oswald de Andrade (marido de Tarsila do Amaral) com o antropofagismo de algumas tribos indígenas - o qual consistia em devorar o inimigo para absorver o seu poder, o seu conhecimento, e as suas habilidades. 

     Com essa ideia em mente, Oswald procurou um nome em tupi-guarani para o quadro que lhe havia sido dado por sua mulher, Tarsila do Amaral. Foi daí que surgiu a palavra "Abaporu", significando "o homem que come gente" - e que traduziria toda a ideia do movimento modernista brasileiro proposto em 1922.

("ABAPORU" - Tarsila do Amaral, 1928 - fonte: imagem da Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros - 3 - pg.73)

     No quadro, a figura solitária sugere o homem plantado na terra, fixado em suas próprias raízes. As mãos e os pés imensos enfatizam sua atividade laboral. A cabeça pequena sugere desapego ao tecnicismo e ao intelectualismo exagerados, que certamente resultariam em reprodução de expressões culturais distantes das nossas.

      Em "Abaporu" a figura está sentada sobre uma planície verde com um dos braços, que sustenta a cabeça, apoiado no joelho. Com o vigor de uma vida criativa e viva representada pelo verde, o cáctus explode em sol e em amarelo de uma flor improvável. Essas cores juntadas ao ceu azul do fundo da tela, de imediato nos remetem às cores da bandeira brasileira.

     Depois dessa busca, por fim, engoli e digeri o verdadeiro sentido desse quadro. Ele expressa a ideia de um movimento de independência cultural, enfatizado pela busca da exaltação da terra, de seus valores, e do povo do Brasil. Por isso ele é genial - não pela técnica ou pelo estilo, mas pelo que ele simboliza.

     Assim como toda representação contida no "Abaporu", o perfil de cada um de nós também é resultado daquilo que conseguimos devorar. E se formos capazes de digerir esses estímulos com sabedoria, certamente nossas expressões serão a tradução autêntica do que somos - sem cópias ou imitações.


(CLIQUE PARA OUVIR - "UIRAPURU", de Waldemar R. de Oliveira e Murilo Latini)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

SURFANDO EM "WAVE"


(CLIQUE PARA OUVIR - "WAVE")
(Daniel Jobim e Luiza Jobim - "Wave", do Tom Jobim)

     O Tom Jobim certamente gostava do Exupéry* - em especial de "O Pequeno Príncipe". Lembro-me que o encarte de seu último disco** trazia uma foto de uma das belas praias do Rio de Janeiro, com duas frases do Exupéry no canto superior direito: 

"L'essentiel est invisible. On ne voit qu'avec le coeur."
(O essencial é invisível [aos olhos]. Só se vê bem com o coração.)
 
(Encarte do disco "Antônio Brasileiro" - 1994 - fonte: http://admusicaalberto.blogspot.com.br/2011/05/pato-preto.html)

     Essas frases foram extraídas de "O Pequeno Príncipe". Elas aparecem no livro quando a raposa e o príncipe dialogam a respeito do quanto se tornam especiais - um para o outro - aqueles que se cativam***.

     Mas essas mesmas frases já haviam inspirado o Tom. É muito conhecida essa história. O Tom compôs e gravou "Wave" em 1967, em disco instrumental com o mesmo nome. E depois disso pediu ao Chico Buarque que colocasse letra na música.


(Capa de "Wave", 1967 -fonte: http://www.israbox.net/1146431501-antonio-carlos-jobim-collection-lossless-mp3-1959-2008.html)

     Mas o Chico não foi além da primeira frase. Por isso o Tom, dando sequência no "vou te contar", do Chico, inspirou-se nas mesmas duas frases do mesmo diálogo entre o pequeno príncipe com a raposa e escreveu:

"Meus olhos já não podem ver
coisas que só o coração pode entender"

     E como o Tom gostava de falar de amor, para concluir a primeira estrofe ele emendou:

"fundamental é mesmo o amor
é impossível ser feliz sozinho"

     Portanto, se o Chico havia dito que iria nos contar alguma coisa, foi o próprio Tom quem acabou nos contando tudo.


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*Antoine de Saint-Exupéry (1900/1944) - escritor, ilustrador e piloto francês. Escreveu "O Pequeno Príncipe"
**"Antônio Brasileiro", de 1994
***O Pequeno Príncipe. Exupery. 48ª edição. Agir, 2006. pág. 72