"Só a antropofagia nos une"
(Oswald de Andrade)
Desde pequeno conheço "de vista" o "Abaporu". Nunca o entendi, nunca tentei entendê-lo. Eu o achava simples, infantil, e nem sabia porque esse quadro merecia tanta consideração. Sempre que o via em algum livro só enxergava um ser deformado em um lugar muito quente - e nada mais.
Mas como a ignorância não resiste a uma pequena busca que seja, fui pesquisar o seu significado. E essa minha visão de ignorante foi radicalmente transformada!
Buscando traçar sua verdadeira identidade, em um determinado momento da história alguns artistas do nosso país entenderam que precisávamos falar por nós mesmos, expressando nossos verdadeiros valores. Então, ao invés de desprezarem as expressões culturais e artísticas de outras nações - até então simplesmente copiadas -, houveram por bem propor que devorássemos a arte e a técnica estrangeiras, submetendo-as a uma avaliação crítica de nosso estômago cultural, deixando verter, por conseguinte, uma expressão essencialmente brasileira.
E esse "engole, digere e expressa" foi comparado por Oswald de Andrade (marido de Tarsila do Amaral) com o antropofagismo de algumas tribos indígenas - o qual consistia em devorar o inimigo para absorver o seu poder, o seu conhecimento, e as suas habilidades.
Com essa ideia em mente, Oswald procurou um nome em tupi-guarani para o quadro que lhe havia sido dado por sua mulher, Tarsila do Amaral. Foi daí que surgiu a palavra "Abaporu", significando "o homem que come gente" - e que traduziria toda a ideia do movimento modernista brasileiro proposto em 1922.
("ABAPORU" - Tarsila do Amaral, 1928 - fonte: imagem da Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros - 3 - pg.73)
No quadro, a figura solitária sugere o homem plantado na terra, fixado em suas próprias raízes. As mãos e os pés imensos enfatizam sua atividade laboral. A cabeça pequena sugere desapego ao tecnicismo e ao intelectualismo exagerados, que certamente resultariam em reprodução de expressões culturais distantes das nossas.
Em "Abaporu" a figura está sentada sobre uma planície verde com um dos braços, que sustenta a cabeça, apoiado no joelho. Com o vigor de uma vida criativa e viva representada pelo verde, o cáctus explode em sol e em amarelo de uma flor improvável. Essas cores juntadas ao ceu azul do fundo da tela, de imediato nos remetem às cores da bandeira brasileira.
Depois dessa busca, por fim, engoli e digeri o verdadeiro sentido desse quadro. Ele expressa a ideia de um movimento de independência cultural, enfatizado pela busca da exaltação da terra, de seus valores, e do povo do Brasil. Por isso ele é genial - não pela técnica ou pelo estilo, mas pelo que ele simboliza.
Assim como toda representação contida no "Abaporu", o perfil de cada um de nós também é resultado daquilo que conseguimos devorar. E se formos capazes de digerir esses estímulos com sabedoria, certamente nossas expressões serão a tradução autêntica do que somos - sem cópias ou imitações.
(CLIQUE PARA OUVIR - "UIRAPURU", de Waldemar R. de Oliveira e Murilo Latini)
Adquirir poder, conhecimento e habilidades... Eis que se tratam de coisas extremamente interessantes!
ResponderExcluirArtigo muito bem bolado, caro amigo Elias!