sábado, 15 de abril de 2017

CÍCERO DIAS


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
(GLÜCK - Orfeo ed Euridice - flauta: Jean Pierre Rampal)


"Eu vi o mundo... ele começava no Recife"
(Cícero Dias)


     Foi assistindo "A Coleção invisível"*, no final do ano passado, que Cícero Dias passou a existir para mim. No filme, um velho fazendeiro (Walmor Chagas) que havia perdido a visão era possuidor de uma valiosa coleção de gravuras de Cícero Dias. Ao ser visitado por um rapaz, o velho fazendeiro procurou mostrar e descrever a ele, com os olhos da memória, cada uma de suas gravuras. Com a consciência do valor e a paixão que nutria pelo seu acervo, ele olhava, vibrava e descrevia com encanto sobrenatural o tesouro que tinha - ou que um dia teve. 

A coleção invisível, um dos filmes brasileiros mais puros que já vi. Quem gosta de arte deve assistir. #arte #colecionador
(Walmor Chagas em "A Coleção Invisível" http://www.imgrum.org/user/betoandreao/175155986/1264183544453754613_175155986)

     Eu, particularmente, não conhecia o trabalho de Cícero Dias. Foi a partir do filme que o artista ganhou vida e existência para mim. Eu, porém, nada fiz para conhecê-lo melhor: não pesquisei, não li, não fui atrás.

     Mas a vida tem seus acasos. E como tudo o que nasce requer tempo para sua descoberta e seu devido amadurecimento, em uma viagem a Brasília tive oportunidade de me deparar com a obra do artista em exposição no "Centro Cultural Banco do Brasil". Fui vê-la. 


(Entrada da exposição - foto: arq. pessoal)

     Natural do Recife, Cícero Dias iniciou estudos de pintura e arquitetura no Rio. Não os concluiu. No Rio, em 1931, apresentou "Eu vi o mundo... ele começava no Recife" - uma obra com registros de sexualidade explícita. Ousada demais para a época, a obra causou escândalo. Consequentemente, três dos seus quinze metros de desenho tiveram que ser cortados.

     No início do Estado Novo no Brasil, em 1937, o país estava marcado pelo cerceamento da liberdade de expressão. O artista, então, perseguido pela ditadura Vargas, ouviu sugestão de Di Cavalcanti, deixou o Brasil, e partiu para a França. Foi viver em Paris.

     Mas também na Europa as coisas não andavam bem. Logo após a sua chegada, durante a segunda guerra mundial (1938-1945), Cícero foi feito prisioneiro pelos nazistas. Por fim, acabou sendo libertado em troca de prisioneiros alemães. Mesmo com tudo isso, estando integrado à vanguarda artística europeia, o Brasil não deixou de ser sua grande inspiração - por toda sua vida, em toda sua obra.

     Foi curiosa a coincidência de, pouco tempo depois de ter assistido "A Coleção invisível" e ter me interessado pelo trabalho do artista, poder viajar para Brasília e visitar exposição "Cícero Dias: um percurso poético (1907-2003)". Fiquei com a ideia absurda e infantil de que a exposição havia sido preparada especialmente para mim - para que eu o conhecesse.

     Na exposição foram apresentadas 125 de suas obras provenientes de museus brasileiros e de coleções particulares espalhadas pelo mundo. Vi ali aquarela sobre papel, óleo sobre tela, muitas fotos, cartas e documentos.

(fotos e documentos de Cícero Dias - foto: arq. pessoal)

     Mas de tudo o que havia em exposição, o que mais me trouxe contentamento foi poder olhar atentamente para o "Engenho Noruega" - a ilustração feita por Cícero Dias, em 1933, para a primeira edição de "Casa Grande & Senzala". 

Cícero Dias, 1933 Engenho Noruega (sugar cane mill where the artist was born) Pernambuco, BR
(Cícero Dias - "Engenho Noruega", 1933 
https://br.pinterest.com/aldorgm/farms-engenhos-e-fazendas/)

     Essa ilustração traz, com riqueza de detalhes, a vida na Casa Grande - e também na Senzala. Ao vê-la exposta na parede tirei muitas fotos e fiquei parado em frente a ela, abobado, olhando com desejo de reter o tempo e apontar, comentar e discutir com todos que passavam diante da ilustração, o quão maravilhosa e rica ela é - aquela ilustração da vida rural brasileira em um tempo que já se vai longe, mas que ficou guardado para sempre em virtude do talento do Cícero Dias - e, ainda, que expõe visualmente ao mundo, nos "Casa Grande & Senzala", a leitura que Gilberto Freyre fez da formação sociológica do Brasil.

     Cícero Dias é um artista brasileiro que merece ter seu trabalho divulgado e estudado com maior intensidade.     


(CLIQUE NA SETA PARA CONHECER UM POUCO MAIS 
DE CÍCERO DIAS)
(https://www.youtube.com/watch?v=snkY-kMrqcY&t=14s)

_____________________________________ 
*"A Coleção Invisível" - Brasil, 2013. Drama. Dir.: Bernard Attal