quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O PROGRAMA "ENSAIO", E A CAIXA DE PAPELÃO


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR DURANTE A LEITURA
Lúcio Cardim, dele, "Matriz ou Filial"
https://www.youtube.com/watch?v=VQE12FfBLio


     Estou aqui, quieto, maravilhado, olhando para uma caixa de papelão que me foi endereçada. Fechada, ela traz, do lado esquerdo, o meu nome escrito em uma fita adesiva; do lado direito, o nome de um ser generoso, que confiou a mim a guarda temporária de um tesouro: Ricardo.


Fonte: arq. pessoal (2018)

     O Ricardo, além de outras virtudes, é membro de uma banda de jazz (e outros gêneros), que se reúne para ensaiar, em uma chácara, todas as segundas-feiras, à noite. Encontrei-o na loja do SESC-Ribeirão Preto, em uma manhã de sábado. Dentre o pouco que conversamos, ele me falou a respeito de uma coleção, da qual é possuidor, composta por oito caixas contendo livros e CDs, chamada "A música brasileira deste século, por seus autores e intérpretes". Durante a conversa, descobri que se tratava da gravação de muitos dos programas "MPB ESPECIAL" e "ENSAIO", produzidos pelo genial Fernando Faro*. Estes programas foram exibidos, inicialmente, nos anos 70, pela TV Tupi, e, a partir do final dos anos 80, pela TV Cultura. Após a morte de Fernando Faro, em 2016, a TV Cultura exibiu, por um tempo, reprises antigas do programa.

     O formato do ENSAIO é muito legal. Nele, o artista é mostrado em "closes"**, responde as perguntas que lhe são formuladas, canta, fala de sua trajetória artística e relembra casos vividos. Não se ouve a voz do entrevistador. Há intervalos preenchidos com o silêncio. Mas, de alguma forma, o silêncio aliado ao "close" também comunica: os movimentos das mãos do artista, sua expressão facial... tudo isso preenche o silêncio. Como resultado, nasce na gente, enquanto ouvintes ou telespectadores, uma certa cumplicidade com o artista. Lembro-me de ter assistido, nesse programa, o Vinícius de Moraes, o Cartola, o Dick Farney, a Nora Ney, o Lúcio Cardim, a Elis Regina e muitos outros. Foram programas antológicos. Nunca pude me esquecer dos que assisti. 

     Mas, só durante a conversa com o Ricardo fiquei sabendo que o SESC, em parceria com a Fundação Padre Anchieta, havia editado um pacote - aliás, oito pacotes - contendo alguns dos programas gravados até o ano de 2003. Em cada pacote, contou-me o Ricardo, estão cerca de doze artistas - doze CDs. E mais - disse-me ele: além do CD contendo a gravação do programa, cada pacote traz também um livro com a transcrição da entrevista de cada um dos doze entrevistados (de cada pacote).

     Ali na loja do SESC, naquela manhã, não tive dúvida (Você teria?). Ao ouvir o Ricardo comentar sobre os oito pacotes com os programas MPB ESPECIAL e ENSAIO, pedi que ele me emprestasse tudo - todas as oito caixas, todos os CDs e todos os livros. E com urgência!

     Pois é isso que eu queria te contar, meu caro leitor. Ao receber hoje, logo de manhã, uma mensagem do Ricardo, via whatsapp, dizendo que havia deixado na portaria do prédio onde reside, como empréstimo, uma caixa com os pacotes de CDs (e livros) contendo os programas gravados e editados, passei por lá, antes mesmo de qualquer outro compromisso ou atividade programada para o dia, e peguei a tal caixa.

     Posso então dizer que sou um homem feliz. Tenho diante de mim uma caixa de papelão, e, dentro dela, um tesouro. Olho para a caixa e sinto no peito uma grande ansiedade: estou acompanhado de artistas e intérpretes brasileiros que fizeram parte de minha formação, e que agora vão me contar suas histórias... 

     Abro a caixa e começo ouvindo o Lúcio Cardim***...

__________________________
*Fernando Faro - (1927-2016) Fernando Abílio de Faro dos Santos, sergipano, foi um jornalista, produtor musical, e diretor de programas de televisão.
**CLOSE UP (do inglês, "com aproximação"), ou usualmente, somente CLOSE é uma expressão comum em fotografia, e que significa um plano onde a câmera está muito perto da pessoa ou objeto em questão, possibilitando uma visão próxima e detalhada.
**Lúcio Cardim - (1932-1982) cantor, compositor e boêmio, nascido em Santos/SP.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

CORAÇÃO SELVAGEM - AOS 120


CLIQUE NA SETA PARA ASSISTIR ENQUANTO LÊ
Belchior, dele, "Coração Selvagem"
https://www.youtube.com/watch?v=fR1XQgNiT0M


"Vem viver comigo, vem correr perigo"
(Belchior)


     "Coração Selvagem", do Belchior, retrata muito bem o jeito que eu gostaria de ser: eternamente jovem, instintivo, valente, intenso, despreocupado, inconsequente...

     Gostaria que os meus amigos, quando ouvissem "Coração Selvagem", lembrassem de mim. E, com essa lembrança, lhes ocorresse um pensamento:

     - "Puxa, essa música é a cara do Elias!"

     Creio que assim seria se eu fosse menos angustiado, se eu tivesse menos medo de errar nas escolhas, se eu não me sentisse abatido com os desacertos... Assim seria se eu conseguisse me levantar com facilidade, dar um chute na insegurança, e ter ânimo para estar sempre recomeçando!

     Queria saber me desprender das certezas... Queria não ter medo de começar tudo de novo (com paixão), se preciso fosse.

Coração Selvagem
Belchior

Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção
Esconda um beijo pra mim
Sob as dobras do blusão
Eu quero um gole de cerveja
No seu copo, no seu colo e nesse bar

Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja
Não quero o que a cabeça pensa
Eu quero o que a alma deseja
Arco-íris, anjo rebelde
Eu quero o corpo, tenho pressa de viver

Mas quando você me amar
Me abrace e me beije bem devagar
Que é para eu ter tempo
Tempo de me apaixonar
Tempo para ouvir o rádio no carro
Tempo para a turma do outro bairro ver e saber que eu te amo

Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente
Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente
Sim, já é outra viagem
E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver

Meu bem, mas quando a vida nos violentar
Pediremos ao bom Deus que nos ajude
Falaremos para a vida
Vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil
Meu coração é como vidro, como um beijo de novela

Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão
O meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza
E arriscar tudo de novo com paixão
Andar caminho errado pela simples alegria de ser

Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo
Meu bem, meu bem, meu bem

Talvez eu morra jovem, alguma curva no caminho
Algum punhal de amor traído completará o meu destino

Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo
Meu bem, meu bem, meu bem

Meu bem, meu bem, meu bem
Que outros cantores chamam baby
Que outros cantores chamam baby
Que outros cantores chamam baby


     Mas acontece que não sou assim; nunca fui assim. E se nesses meus 60 anos não consegui ser nada do que "Coração Selvagem" propõe, como posso querer me imaginar "descolado", arriscado e inconsequente? Quando vou conseguir seguir adiante, por qualquer caminho que se puser à minha frente, sem sentir preocupação pela consequência das escolhas?

     Bom... para alterar esse meu jeito preocupado de ser, acho que vou precisar de mais uns sessenta anos - pelo menos. Mas não desisto: vou me esforçar pra chegar aos cento e vinte - de preferência com todos os meus amigos e familiares por perto, para que possam ver que consegui me tornar um pouco mais leve.