(Em pesquisa recente a respeito do escritor mineiro Aníbal Machado (1894-1964), movido pelo seu conto "Viagem aos seios de Duília", encontrei, em "Cadernos de João" - seu livro de reflexões sobre temas variados -, o seguinte texto a respeito do tempo. Quero guardá-lo aqui, em meu blog, para nunca mais esquecer-me dele).
O grande
clandestino
Eu me distraio
muito com a passagem do tempo.
Chego às vezes a
dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas que
velocidade!
Basta ver o
estado das coisas depois que desperto: quase todas fora do lugar, ou
desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda, alteradas e
irreconhecíveis. Se durmo de novo e acordo, repete-se o fenômeno.
Sempre pensei
que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!
Eu queria
convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo
íntimo e não disponho de tribunas.
Além do mais, o
tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar
o resultado de seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O que é preciso
é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a disfarçar a
evidência de suas metamorfoses.
É de fato penoso
deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma
e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora. Isso
entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele,
façamos dele um aliado.
Aí, sim:
destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e
esvaziando toda a vida. Perde-se até a ideia da morte. Então a gente aproveita
para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar.
O tempo fica
assim tão escondido dentro de nós, que se tem a impressão que fugiu para sempre
e se esqueceu.
Em verdade, ele
não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece
pernoitar.
Rói as pedras
como o vento, rói os ossos como um cão. O que mais admira é a extrema
delicadeza com que pratica essas violências.
Todos falam de
sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta de velocidade, à
medida que nos distanciamos de nossas origens. E quase para quando o esperamos
na solidão!
Meu mal é
sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocá-lo. Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.
Oh, como se
diverte! Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma catedral
– tanto faz.
O desagradável é
quando de repente se retira de algum objeto ou de alguém. É claro que prossegue
depois. Mas deixa sempre uma coisa morta...
Franqueza, nessa
hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...
Contudo não se
deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer maneira.
E é até possível
que não exista.
Seu propósito
evidente é envelhecer o mundo.
Mas a resposta
do mundo é renascer sempre para o tempo.
(Aníbal Machado, in "Cadernos de
João")