Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Aprisionado por uma tribo inimiga que praticava a antropofagia, o último dos índios Tupis, naquele que seria seu derradeiro pôr de sol, entoou um canto de morte narrando seus feitos: falou de seu pai, do amigo que caiu, das terras por onde andou, das guerras que lutou... Mas, por ter contrariado a ética do índio, "não serviu de pasto".
Gonçalves Dias, em 1851, em I-Juca Pirama (o que deve morrer), assim grafou aquela manifestação:
"Meu canto de morte,
guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
nas selvas cresci;
guerreiros, descendo
da tribo Tupi.
Da tribo pujante,
que agora anda errante
por fado inconstante,
guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
sou filho do Norte,
meu canto de morte,
guerreiros, ouvi (...)"
(I Juca Pirama, Canto IV, trecho)
Em 1985, no Festival dos Festivais da TV Globo, aquele índio ressurgiu... Majestoso, grandioso, belo, sublime e forte, foi louvado no canto de Miriam Mirah, de Lula Pereira, do grupo Tarancón e da banda Placa Luminosa: "Mira Ira".
"Mira Ira" (Lula Barbosa e Vanderlei de Castro)
https://www.youtube.com/watch?v=ie1X7v0ie1Q
Mira num olhar
Um riacho, cacho de nuvem
No azul do céu a rolar...
Mira Ira, raça tupi,
Matas, florestas, Brasil.
Mira vento, sopra continente,
Nossa América servil,
Mira vento, sopra continente,
Nossa América servil...
Mira num olhar,
Um riacho, cacho de nuvem
No azul do céu a rolar...
Mira ouro, azul ao mar,
Fonte, forte de esperança,
Mira sol, canção, tempestade, ilusão,
Mira sol, canção, tempestade,
Ilusão...
Mira num olhar
Verso frágil tecido em fuzil,
Mescla morena,
Canela, cachaça, bela raça, Brasil.
Anana ira,
Mira ira anana tupi
Anana ira, anana ira
Mira Ira
Em 1987, na Assembleia Constituinte, por intermédio de Ailton Krenak, o Tupi também se manifestou:
"(...) um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas (...) não pode ser identificado como um povo que é inimigo dos interesses do Brasil (...)"
Ailton Krenak, na Constituinte/87
https://www.youtube.com/watch?v=ildN6lyXDNE
Gonçalves Dias, em I-Juca Pirama; Miriam Mirah, em "Mira Ira"; e Ailton Krenak, na Constituinte, são a expressão de um sentimento e de uma inspiração: um convite à ressurreição do povo brasileiro, que anda tão sufocado ultimamente. E, por já ser tempo desse desate de nós, "que assim seja!"
- "Mescla morena, canela, cachaça, bela raça: Brasil!"
Ontem o "João Gilberto International Fan Club" postou no Facebook uma gravação feita pela Radio Nacional de España em 19/07/1985, no programa "Quando os elefantes sonham com a música", de Carlos Galilea.
Ouvi atento à gravação - que não conhecia. Ao ouvi-la reencontrei um rapaz... Um rapaz que gosta de ouvir as interpretações do João Gilberto; que gosta de encontrar por intermédio de sua voz e de seu violão uma paz azul, infinita, baiana, utopicamente brasileira... uma paz de quintais, de plantas, de árvores, de praias, gente alegre e riachos, de horizontes e distâncias...
João Gilberto - "Canta Brasil" (David Nasser/Alcyr Pires)
https://www.youtube.com/watch?v=h1wEH6FXi4c
O rapaz encontrou-se com o João Gilberto em um almoço, sob a escadaria de uma casa em Los Angeles. Naquela tarde, oferecendo ao rapaz uma feijoada, um casal de pesquisadores procurava mostrar o seu encantamento pelo Brasil.
Logo na chegada o rapaz ouviu, vindo de uma vitrola ao lado das escadas, uma voz delicada, mansa, pedindo que o Brasil cantasse... "(...) no céu, no mar, na terra, canta Brasil (...)". O rapaz não cantou. Ao contrário, emocionado, ficou em silêncio... ouvindo.... só ouvindo. O casal sorriu. Ouviram quietos, calados, os três... parados, emudecidos, como que a decifrar o Brasil por imersão em matas imaginárias, a observar comunidades indígenas, passarinhos, riachos e praias...
Nem o casal e nem o rapaz foram mais os mesmos... E nem o Brasil do rapaz. Na proposta de inocência e doçura originadas naquela voz e naqueles acordes de violão, o berço da delicadeza perdida abraçou o rapaz. De Los Angeles, maravilhado, o rapaz compreendeu as possibilidades de seu país... para querê-Lo bem e para orgulhar-se dele... muito embora corresse o ano de 1975, e sob o domínio do terror, o Brasil se encolhia em um estado acinzentado, sufocante.... de duríssima exceção... de cuja ideia ainda procuramos nos livrar.
CANTA BRASIL
As selvas te deram nas noites teus ritmos bárbaros
E os negros trouxeram de longe reservas de pranto
Os brancos falaram de amor em suas canções
E dessa mistura de vozes nasceu o teu canto
Brasil, minha voz enternecida
Já adorou os seus brasões
Na expressão mais comovida
Das mais ardentes canções
Também na beleza desse céu
Onde o azul é mais azul
Na aquarela do Brasil
Eu cantei de norte a sul
Mas agora o teu cantar
Meu Brasil, quero escutar
Nas preces da sertaneja
Nas ondas do rio-mar
Oh, esse rio turbilhão
Entre selvas de rojão
Continente a caminhar
No céu, no mar, na terra
Canta Brasil
No céu, no mar, na terra
Canta Brasil
No céu, no mar, na terra
Canta Brasil
No céu, no mar, na terra
Canta Brasil.
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Postagem João Gilberto International Fan Club https://www.bossanovaclube.com/post/jo%C3%A3o-gilberto-en-madrid-19-07-1985-hipnotismo-colectivo?fbclid=IwAR1TfA5i2r6LHRUIfX1bad8ge9vDA_0Rwx2Ivj39BXyIBy3O-wA8s0sxuEw
Capa do álbum de estreia de Gilberto Gil: "Louvação" (1967)
É certo que uma imagem diz mais que mil palavras; é certo que uma palavra escrita inspira uma infinidade de sentimentos... Mas é a palavra pronunciada, ouvida, carregada dos sinais daquele que a pronuncia, que tem a capacidade de melhor traduzir uma verdade.
Na impossibilidade de ser pronunciada, a palavra livremente escrita traz o pensamento do seu autor desprovido de maquiagem. Com palavras escritas pintamos o que os nossos olhos veem, e oferecemos aos nossos eventuais leitores as verdades que enxergamos, e em relação às quais não somos indiferentes.
Assim, louvemos tudo aquilo que vem com seu próprio contorno, com clareza, aberto, e transbordando de significados.
- "Vou fazendo a louvação... e falo de peito lavado!"
CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
Gilberto Gil - "Louvação"- do álbum de estreia do Gilberto Gil - 1967
https://www.youtube.com/watch?v=mH4regr0Etc
LOUVAÇÃO
(Gilberto Gil/Torquato Neto)
Vou fazer a louvação - louvação,
louvação
Do que deve ser louvado - ser
louvado, ser louvado
Meu povo, preste atenção -
atenção, atenção
Repare se estou errado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
E louvo, pra começar
Da vida o que é bem maior
Louvo a esperança da gente
Na vida, pra ser melhor
Quem espera sempre alcança
Três vezes salve a esperança!
Louvo quem espera sabendo
Que pra melhor esperar
Procede bem quem não pára
De sempre mais trabalhar
Que só espera sentado
Quem se acha conformado
Vou fazendo a louvação -
louvação, louvação
Do que deve ser louvado - ser
louvado, ser louvado
Quem 'tiver me escutando -
atenção, atenção
Que me escute com cuidado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo agora e louvo sempre
O que grande sempre é
Louvo a força do homem
E a beleza da mulher
Louvo a paz pra haver na terra
Louvo o amor que espanta a guerra
Louvo a amizade do amigo
Que comigo há de morrer
Louvo a vida merecida
De quem morre pra viver
Louvo a luta repetida
Da vida pra não morrer
Vou fazendo a louvação -
louvação, louvação
Do que deve ser louvado - ser
louvado, ser louvado
De todos peço atenção - atenção,
atenção
Falo de peito lavado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo a casa onde se mora
De junto da companheira
Louvo o jardim que se planta
Pra ver crescer a roseira
Louvo a canção que se canta
Pra chamar a primavera
Louvo quem canta e não canta
Porque não sabe cantar
Mas que cantará na certa
Quando enfim se apresentar
O dia certo e preciso
De toda a gente cantar
E assim fiz a louvação -
louvação, louvação
Do que vi pra ser louvado - ser
louvado, ser louvado