Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
O Celso e o Degiovani Lopes são danados mesmo. E são meus amigos! Trabalharam por muito tempo no Banespa, subiram e desceram suas escadas, e não deixaram que tempo tirasse deles as lembranças e o amor pelo prédio que ainda é a cara de São Paulo: o Edifício Altino Arantes. Desconfio até que o Celso e o Degiovani foram conduzidos ao edifício símbolo de São Paulo por mãos divinas. Sim... alguma divindade devia estar prevendo que caberia a eles a honrosa tarefa de nos contar, em fotos e fatos, a História do edifício central do Banespa. Tantos prédios, tantos edifícios iam transformando e fazendo crescer a capital do estado, ao tempo em que os irmãos zanzavam por ali, guardavam histórias... no dia a dia, no coração da cidade, observando, anotando, fotografando, criando cumplicidade com as janelas, com os lustres, com as paredes do prédio. "Um edifício no imaginário da cidade" é uma manifestação de carinho não somente a tudo o que o Banespão simboliza, mas também um alerta, um canto de amor à cidade de São Paulo e à necessidade de preservação de sua memória. Com belas fotos e um texto impecavelmente preciso, o Celso e o Degiovani publicaram um livro precioso para os anais da cidade e do estado de São Paulo. Parabéns, Celso; parabéns Degiovani: orgulho-me em poder dizer que sou amigo de vocês, autores desse documento tão valioso - fonte de informações para pesquisadores de todos os tempos.
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O livro está à venda on line no seguinte endereço: www.samburaliterario.com.br Também pode ser encontrado em loja física: Livraria do Espaço - Unidades: Rua Augusta e Shopping Frei Caneca (São Paulo, capital)
Assisti ontem, pela TV, a entrega do troféu Kikito, no Palácio dos Festivais, em Gramado/RS. Você estava deslumbrante no comando da apresentação do evento. A alegria transmitida pelo seu sorriso, que conheci aqui em Iguatu, há anos, não mudou. Notei que a insegurança estampada em seu rosto no dia da sua partida, há longínquos dezessete anos, tendo sido deixada para trás, foi substituída pela sua imagem de celebridade em uma importante cerimônia de premiação. Naquele dia, depois de termos nos amado, de minha moto, na esperança de seu retorno, acompanhei por alguns quilômetros o seu olhar emoldurado por uma das janelas do ônibus que te levava para o Sul.
Depois que você partiu, e por algum tempo ainda, muito se falou a respeito de sua ousadia aqui em Iguatu. Não te esqueci, e não te esqueço. Continuo só. Hoje, os que te veem na TV nada sabem a respeito da determinação que você tinha em conseguir encontrar, longe daqui, o seu próprio céu. Querendo-te bem como sempre te quis, sofri muito por não ter podido adquirir todos os números da rifa que você vendia para comprar uma passagem de ônibus para Porto Alegre, e que premiava o ganhador com "uma noite no paraíso" - uma noite com Suely, não com Hermila. Sua vontade de ir embora para bem longe e encontrar o seu céu foi muito grande. E você venceu. Se tivesse se abatido, sem poder se realizar, continuaria condenada à mediocridade de uma vida vazia. Parabéns, Hermila.
Tudo por aqui mudou. Iguatu já não é mais uma pequena cidade dormitório às margens dos trilhos da estrada de ferro. Com a instalação de cursos de graduação a cidade se desenvolveu. Tanto que, com os ganhos auferidos pelo meu serviço de motoboy, consegui concluir o curso de Direito na Universidade Regional do Cariri, e já, há oito anos, com muitos clientes, tenho o meu escritório profissional de advogado.
Roberto Carlos - "Outra vez" (Isolda)
https://www.youtube.com/watch?v=dLithcjeEE8
Mas não te esqueço. Você foi o grande amor que tive. Guardo a lembrança de sua última passagem por Iguatu quando, vencida pelo custo de vida na cidade de São Paulo, seu único projeto era criar o seu filho com o produto da venda de CDs piratas no Mercado Municipal. Mas seu companheiro não deu mais notícias, não retornou como havia prometido, e o projeto de comercializar CDs não se realizou - para sorte sua.
Te vi ontem na TV e te aplaudi com emoção. Os olhos de quem assistiu a cerimônia enxergaram apenas o alvo dos holofotes: não sabiam e, creio, nem queriam e nem querem saber dos degraus e quedas sofridas por você até encontrar e atingir o seu próprio céu. Mas eu, sabendo de seus tropeços, conheço toda a sua história. E ainda aqui, comigo, com o mesmo carinho de tantos anos, reservo para você um cantinho no meu coração.
Do seu motoboy de Iguatu,
João
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*Inspirado no filme "O céu de Suely" (BR/FR/ALE, 2006. Dir.: Karim Aïnouz)
"Cenoura, tomate, alface, beterraba, cebola, pepino... mamão, banana e melão... carnes... arroz, ovos, fubá, caldo de carne e de galinha... Veja, álcool, sabão em pó, detergente, sapólio, bombril, saco de lixo, lustra móveis, água sanitária, removedor". Com essa lista no bolso, e com todas as horas de uma manhã à minha disposição, fui às compras em um supermercado.
Empurrando um carrinho, fiz minha primeira parada na seção de frutas e legumes. Comecei pelos mamões - que precisavam de mais uns dois ou três dias para poderem ser consumidos: escolhi dois. O melão veio em seguida: selecionei um daqueles envolvidos em uma redinha vermelha de plástico - que, dizem, são os mais doces: e são, de fato. Da seção de legumes e frutas fui às carnes, e dali às demais seções.
Na seção de bolachas procurei a minha preferida: uma bolacha feita com grãos de gergelim, que é apresentada em uma embalagem de papel verde brilhante. Nos chocolates examinei as diferentes ofertas: chocolate ao leite, chocolate com amendoim, chocolate amargo, meio amargo, sonho de valsa, chocolate recheado com uva passa e castanhas do Pará... Eu, que adoro chocolate amargo, 60 ou 70% cacau, caí agora nas graças do "Bis Xtra Black": uma delícia. Peguei uma caixinha.
Depois fui aos congelados, onde estão as lasanhas à bolonhesa... Examinei o balcão de queijos... parmesão, gorgonzola... Os vinhos, no supermercado, não são muito convidativos: são muito caros. Ainda assim passeei por entre eles, na esperança de encontrar alguma promoção... Mas, nada: nenhum milagre.
Em seguida dirigi-me à seção de azeites. Como gosto dessa seção! Passei pelos portugueses, pelos espanhóis, italianos, argentinos... Quantas embalagens lindas! Lembrei-me de que havia um azeite espanhol enlatado, o "Carbonell", que trazia em sua embalagem, de cor predominantemente vermelha, uma senhora sentada à sombra de uma oliveira... Procurei por esse azeite e lá estava ele! Fiquei olhando a embalagem, pensando nas oliveiras, imaginando aquela senhora que permanecia, horas, anos, décadas, presa na embalagem de lata, colhendo azeitonas, ouvindo pássaros... a mesma postura, a mesma face...
Não consegui passar de forma indiferente pelos sabonetes. Selecionei alguns para, simplesmente, segurar em minhas mãos e sentir o seu cheiro. Ali mesmo, naquela seção, atendi aos impulsos de uma de minhas manias e parei diante dos cremes dentais - uma centena de caixinhas maravilhosas. Procurei por novos produtos, li as orientações impressas nas embalagens, todas elas afirmando o poder de sedução de um sorriso brilhante...
A quantidade de produtos expostos nos supermercados é tão grande, e geralmente eles estão tão bem dispostos, enfileirados, que sempre fico parado diante das gôndolas me sentindo um gerente de seção, um pesquisador, olhando aquelas embalagens, lendo as informações nelas trazidas, examinando e descobrindo tudo - mesmo que não haja, na seção específica, qualquer produto relacionado na minha lista de compras.
Por fim, depois de ter passeado por tantas embalagens coloridas, depois de ter sentido tantos perfumes, depois de ter lido tantos cartazes promocionais, e com o carrinho cheio de produtos selecionados, fui à procura de um caixa menos movimentado para efetuar o pagamento de minha compra.
Ao me postar atrás de uma senhora que conduzia um carrinho um tanto quanto vazio, ouvi a funcionária do caixa dirigir a mim a seguinte pergunta: "O senhor tem no carrinho vinte itens?" Maravilhado com tudo o que o nosso país é capaz de produzir - mas ainda com tanta gente impossibilitada de se alimentar bem -, e desatento ao objetivo final da pergunta, respondi a ela que não havia contado quantos itens estavam no meu carrinho; que certamente havia ali muito mais do que vinte; mas que poderia fazer a contagem se ela assim o desejasse. Foi então que uma senhora à minha frente informou-me que aquele caixa atendia somente clientes com até 20 itens a serem pagos. Assim orientado, e pedindo desculpas por ter me postado em fila indevida, saí a procura de um outro caixa. Logo ao lado percebi um casal que havia terminado de embalar os produtos escolhidos, pronto para realizar o pagamento. Contudo, por motivos que me eram desconhecidos, tanto o casal quanto a funcionária do caixa, com cara de mal humorados, olhavam um para o outro sem nada dizerem. Fiquei ali por alguns instantes, até ouvir a funcionária do caixa dirigir seu olhar para mim e dizer: "o caixa está parado...". E ao final da informação utilizou a palavra "amor" na função de vocativo - pelo menos foi o que pensei ter ouvido. Entendi, então, que ela queria me dizer que seria bom que eu não ficasse ali aguardando, pois a espera poderia ser longa. Ao tomar conhecimento do problema, disse a ela que não me incomodava com a demora, mas que estava muito agradecido por ela ter se dirigido a mim daquela forma tão carinhosa: "amor". "Pra quê?" A moça, enfurecida, olhou para mim e para o casal ali ao lado dela, e esclareceu que não havia me chamado de "amor", mas sim de "moço". E eu, nos meus 65 anos de idade, não pude deixar de dizer a ela que a opção de me chamar de "moço", ao invés de "amor", agradava-me muito mais. Na sequência, ouvindo risos do casal que ali estava, saí à procura de um outro caixa.
Os Mutantes - "A minha menina" (Jorge Ben)
https://www.youtube.com/watch?v=EfHPjZSlOp8
Não posso negar que gosto de ir ao supermercado. A cada vez que vou às compras aprendo muito e trago muitas histórias. Mas, pensando na atendente do caixa, creio que ela não foi verdadeira ao me chamar de "moço". Talvez ela tivesse querido, simplesmente, ser simpática. Em casa, ao chegar, depois de ter acomodado as compras nos armários da cozinha, olhei-me no espelho e fiquei pensando: "não, definitivamente não... minhas rugas, uma pinta que começa a surgir na no meu rosto, minha calvície, os cabelos brancos em minhas sobrancelhas atestam que, definitivamente, 'moço' já não sou...". A atendente de caixa ao dirigir a palavra a mim, chamando-me de "moço" (ou "amor"), não me convenceu. Contudo, aqui entre nós, admito que gostei de ambas as palavras que poderiam ter sido empregadas como vocativo: a que ela, de fato, verbalizou, e a outra, que só os ouvidos do meu coração conseguiram ouvir.
Por questões de divergência nos modelos de desenvolvimento propostos para o país, de 1861 a 1865 os Estados Unidos foram uma nação dividida. As divergências estavam no tipo de sociedade a ser implantada nas terras que seriam ocupadas a Oeste. Os estados do Sul tinham a economia fundada na agricultura, que era voltada para a produção de algodão com exploração de trabalho escravo; os estados do Norte fomentavam a indústria com trabalho livre assalariado. Carolina do Sul, Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas e Luisiana, estados do Sul, defendiam que o modelo escravista deveria ser adotado nas terras situadas a Oeste; os estados do Norte queriam abolir tal modelo.
Como Abraham Lincoln, então presidente, mantinha um discurso ambíguo em relação à escravidão, os estados do sul decretaram o seu rompimento com a União, proclamando-os Estados Confederados da América. O início da chamada Guerra da Secessão deu-se em seguida, com um ataque das forças confederadas a um forte da União, no estado da Carolina do Sul. Lincoln, sustentando que não aceitaria a separação, convocou as forças legais para a reintegração. Com isso, Virginia, Arkansas, Carolina do Norte e Tennessee, outros estados sulistas, também romperam com a União e passaram a apoiar os Confederados. A guerra que foi deflagrada, e que inicialmente estava em torno da integridade territorial da União, acabou por tomar o sentido de luta pelo fim da escravidão. Ao final os Confederados foram derrotados, e muitos milhares de pessoas perderam a vida nessa guerra.
Robert Edward Lee e Thomas Jonathan "Stonewall" Jackson foram dois militares estrategistas dos exércitos confederados que lutavam pela continuidade da escravidão. Suas imagens, juntamente com dezenas de outras imagens representativas da história dos Estados Unidos, mescladas com figuras religiosas, foram utilizadas para adornar os vitrais da belíssima Catedral Nacional de Washington (Anglicana).
Essa confusão entre Igreja e Estado, entre Santos e líderes ou feitos políticos, é muito temerária. Não me parece apropriada essa ideia de se querer santificar líderes políticos, para que sirvam de modelo de identificação. As ondas da história, como as do mar, quebram e se transformam. Imagine você, meu caro leitor, o quanto a imagem de um líder da história política, dentro de um templo religioso, aliada a imagem de algum Santo, pode influenciar e induzir fieis desprovidos de raciocínio crítico. A colocação de líderes escravagistas em pedestais de Santos, na Catedral de Washington, por tal motivo, não me parece uma ideia inteligente - mas foi o que aconteceu.
Pois, veja só. As manifestações por justiça racial nos Estados Unidos, sob o lema "Black lives matter"**, que se seguiram ao assassinato de George Floyd em 2020, repercutiram no mundo todo - inclusive na Catedral de Washington. Assim, na última semana, foi concluída a substituição das imagens dos militares Lee e Jackson estampadas nos vitrais da Catedral, por imagens de pessoas negras em manifestação por direitos civis.
Grandes transformações começam pelos pequenos gestos que inspiram o pensamento, a reflexão, e o raciocínio crítico. Felizmente a capacidade de revisar iniciativas de outros tempos, em outras circunstâncias, ainda pode ocasionar o reparo em falhas passadas. Contudo, quando misturadas, política e religião quase sempre ensejam grandes danos. Assim, espero que os vitrais dos líderes militares sejam levados a ocupar espaços em museus históricos, não em outros templos religiosos. Do mesmo modo, entendo que a representação de manifestações políticas devem sempre ser lembradas, reavaliadas e reestudadas. Por tal motivo, diferente de serem instaladas em espaço religioso, deveriam também ter o mesmo destino aqui sugerido para os vitrais dos militares Lee e Jackson: um museu histórico ou, ainda, o próprio espaço público.
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*texto inspirado na leitura de artigo publicado em 27/09/23, no jornal Folha de São Paulo, de autoria de Diogo Bercito, sob o título "Catedral de Washington troca generais escravistas por manifestantes negros em vitrais".
Foi observando a Malu comer sua ração que comecei a conversar com a minha esposa a respeito do Pateta, do Mickey, do Pato Donald e do Pluto - personagens de histórias em quadrinhos criados por Walt Disney. Inicialmente, meu caro leitor, preciso esclarecer que a Malu é uma cachorrinha que, assim como o Pito, uma calopsita macho, frequentemente hospedam-se em minha casa durante as viagens da minha filha - que é quem os cria (Malu e Pito). Observando a avidez com que a Malu devorava o seu alimento, comentei que talvez fosse solidão o motivo que a estivesse levando a se alimentar daquela maneira; que um animalzinho precisa ter a companhia de um outro animalzinho da mesma espécie. Foi então que nos lembramos dos personagens criados por Walt Disney, e de suas respectivas companheiras: para o Mickey, a Minnie; para o Pato Donald, a Margarida; e para o Pateta, a Clarabela.
"Clarabela"
https://tkoc.fandom.com/pt-br/wiki/Clarabela
Mas... a Clarabela?? Peraí! Deve ter ocorrido alguma confusão. Mickey e Minie são ratos; Donald e Margarida são patos; mas o Pateta, sendo um cachorro, como é que pode querer namorar a Clarabela, que é uma vaca? Falha do Walt Disney? Ou será que Walt Disney quis desenvolver um personagem animal com fixação por um outro animal de espécie distinta?
Criado em 1932 com o nome de Dippy Dawg, somente sete anos depois Dippy Dawg teve seu nome alterado para Goofy (Pateta). O primeiro nome do Pateta - "Dippy Dawg" - sinaliza para a espécie de animal que foi elaborado na mente do seu criador: um cachorro. Afinal, a pronúncia da palavra "Dawg", em inglês, é semelhante a "dog" - que significa, em português, "cachorro". Mas... há aí uma outra confusão: como pode o Pateta, sendo cão, passear com o cachorro de seu amigo Mickey, o Pluto, preso pela coleira? Um cachorro guiando o outro, pela coleira: não é estranho? Bom, o Pateta foi desenhado para agir como se fosse um personagem humano; o Pluto, para representar a figura de um animal de estimação - um cão. Representar personagens é, evidentemente, compreensível; mas o Pateta paquerar a Clarabela, e vice-versa, parece meio esquisito: um cão querer namorar uma vaca? Apesar de achar a Clarabela um tanto quanto espalhafatosa, gosto muito dela - e do Pateta.
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Goofy and Clarabelle - "Chains of love"
https://www.youtube.com/watch?v=m_xrT_2knts
É claro que as vezes a gente vê relacionamentos pacíficos entre animais de diferentes grupos, tal como o que se dá entre a Malu e o Pito, um mamífero e uma ave, quando o Pito estica as asas fora da gaiola e convive numa boa com a Malu. Mas, vejam só a Clarabela: ela joga o seu charme para cima do Pateta quando se desentende com o seu namorado (as vezes "ex"), o Horácio - que é um um cavalo! Não é meio estranho?
"Horácio"
https://disney.fandom.com/pt-br/wiki/Hor%C3%A1cio
Assim, um cachorro (o Pateta) guia outro cachorro (o Pluto), e uma vaca (a Clarabela) que namorou, primeiro, um cavalo (o Horácio), de vez em quando dá bola para um cachorro (o Pateta). Nessa salada oriunda da fertilidade imaginativa dos criadores dos desenhos animados, até aplaudo as confusões. A meu ver, os cartunistas parecem ser grandes visionários: com todo talento que possuem, eles vão fazendo com que a gente vá acomodando todas as (im)possibilidades pensadas nesse nosso mundão - que, abençoado por Deus, que a todos protege, só quer que convivamos bem uns com os outros - humanos, mamíferos, répteis, peixes, aves, anfíbios... canídeos, bovinos, ovinos, equinos, bípedes, aracnídeos, quilópodes, diplópodes, crustáceos, vertebrados, invertebrados e todos os demais gêneros e espécies...
No centro da sala enorme e fria jazia o corpo. Ornado em flores, mãos cruzadas sobre o peito, estendido em sua urna sepulcral com a tez pálida, e ainda assim com o magnetismo mantido pelo que havia sido ao longo dos seus 97 anos, o falecido promovia uma reunião de pessoas em torno de si - como costumava acontecer quando contava histórias. Ao pé do ouvido, ao redor do caixão, uns com outros conversavam baixinho. De pé, ao lado do morto, com a face voltada para baixo e as palmas das mãos para cima, um senhor movia silenciosamente os lábios, como que a fazer uma oração. Quase centenária, a irmã do falecido, ao canto, com olhos solitários, vermelhos e cansados, recebia abraços e apertos de mão daqueles que dela se aproximavam.
Após o sepultamento, sozinho no caminho de volta, fiquei relembrando histórias antigas a respeito de minha avó, de meu pai e seus irmãos, que me haviam sido contadas há muitos anos pelo falecido. Ao chegar em casa pensei em chamar por telefone minha mãe, ou algum dos meus tios, ou ainda alguém que pudesse se interessar em saber como havia sido aquela partida. Com o celular em mãos dei-me conta de que todos os conhecidos meus que haviam tido, ao longo do tempo, alguma proximidade com o falecido, e que poderiam querer saber como havia sido aquela partida, também já haviam se despedido...
Por fim levantei-me do sofá e fui para a sacada do apartamento. Dali, movido por uma certa aflição carregada pela ideia de transitoriedade, deixei os meus pensamentos se perderem nos pequenos pontos de luz que cintilavam no escuro do céu...
Renato Teixeira, dele, "As coisas que eu gosto" - do disco "Paisagem" (1973)
https://www.youtube.com/watch?v=uFDdebTbemU
No meio da tarde de ontem entrei em uma loja de conveniências de um posto de gasolina. Não queria comprar nada; só queria ficar ali por alguns minutos, à toa. Mas... peguei um suco de laranja na geladeira e, no balcão, um pão de queijo que, cheirando à aconchego, havia acabado de sair do forno. Em seguida fui me sentar à uma das mesas da loja, de onde, enquanto comia, olhava pela janela de vidro o movimento dos automóveis lá fora, ao lado das bombas de gasolina, e a entrada e saída de clientes na loja.
Ao terminar o meu lanche percebi que havia apenas uma moça atendendo ao caixa, e que o número de pessoas que procuravam efetuar o pagamento de suas compras estava aumentando. Como a espera para pagar poderia ser longa, levantei-me e posicionei-me na fila, e fiquei no aguardo de minha vez para ser atendido.
À minha frente havia quatro pessoas: um senhor que usava um óculos de lentes grossas, uma adolescente japonesinha, uma senhora bem alta, e logo à minha frente um senhor de uns 60 anos, que levava sob o braço um pacote contendo latinhas de cerveja. Assim que me postei na fila o telefone celular deste senhor à minha frente soou, e ele passou a emitir sons ininteligíveis que deveriam ser palavras direcionadas à pessoa que o havia chamado. Ao final da ligação dirigiu-se a mim e queixou-se:
- Minha mulher não larga do meu pé! Ela agora passou a implicar com o meu prazer de tomar uma de cerveja antes do jantar.
- Puxa vida, disse-lhe eu, mas de vez em quando uma cervejinha antes do jantar não faz mal a ninguém. É até romântico, cria uma boa cumplicidade - completei. Ela não toma uma com você? Já a convidou?
Posando de malandro, ele passou a me explicar que não se tratava apenas de uma cerveja; mas que a mania dele era de tomar exatamente sete, na semana.
- Bom, disse-lhe eu, sete na semana significa uma por dia... Está tudo de bom tamanho. Não há exagero nisso.
Para que eu entendesse melhor a situação, ele me disse que costumava tomar sete latinhas de cerveja em uma sentada só: e pelo menos em três dias na semana!
Sem saber o que dizer, comentei que aí a dificuldade de se ter a companhia e a cumplicidade da mulher já ficava mais difícil; que podemos exagerar de vez em quando, que Deus compreende e perdoa, mas que é bom que pelo menos tentemos ser moderados.
Com ares de esperto, ou apenas para alongar a conversa, ele me contou que havia ido a uma médica e que ela havia lhe dito, metaforicamente, que as muitas notas promissórias que ele havia emitido estavam começando a chegar. E arrematou:
- Veja só, eu estou com quase 60 anos... e preciso ser feliz!
Dito isso ele foi chamado ao caixa, pagou pela sua compra, olhou para mim e, despedindo-se, arrematou dizendo:
- "O que é do gosto, regalo da vida!"
Chegada a minha vez, fui chamado ao caixa. Mas... antes... pensei rapidamente sobre a breve conversa que havia tido com aquele senhor e, num impulso, cedi ao rapaz que me seguia na fila a vez de ser atendido. Com passos decididos dirigi-me novamente ao balcão da padaria, onde pedi mais uma dúzia de pães de queijo: um para eu comer enquanto aguardava novamente minha vez na fila do caixa, e os outros onze para serem colocados num saquinho e levados para casa... E nem me importei mais com o tamanho da fila ou com o que, de início, poderia me parecer um exagero.
Penso que, aqui no Brasil, a Astrud Gilberto foi muito menos valorizada do que merecia. Ela falava baixo, quase que sussurrando... casou-se com o João Gilberto, em 1959. O João Gilberto, até então, seguia na linha do Orlando Silva, cantando forte, alto e em bom tom. É certo que, nessa época, ele ouvia muitas gravações do Chet Baker, que tinha passado a cantar também - além de brilhar com o seu trompete. Ouvindo discos do Chet Baker, e cantando domesticamente baixinho, e ainda para agradar sua então esposa - talvez até em duo com ela - foi aí que se desenrolou a bossa nova. Até fico imaginando a Astrud, nessa época pre bossa nova, sussurrar para o João Gilberto, na cozinha da casa deles: "Mais baixo, João... cante mais baixo...". Não podemos dizer que a Astrud Gilberto foi só a gravação de Garota de Ipanema, em inglês, no disco do João Gilberto com o Stan Getz. De jeito nenhum! Lembra-se do Vinícius, na "Carta ao Tom" (a de 64) gravada no show da boate Zum-Zum?: "E a Astrudinha, hein, que negócio tão direito... vamos ver se dessa vez os intermediários deixam algum [$] para nós". Ela está muito mais inserida na criação e divulgação internacional da bossa nova do que a gente pode imaginar - sem tirar, obviamente, todos os méritos do nosso querido João Gilberto.
Há muitos anos, em uma manhã escura e chuvosa de um país distante, do banco de trás de um automóvel perguntei ao seu condutor: "Quando você ouve alguém dizer 'Brasil', qual é o primeiro nome que vem à sua mente?" Para minha alegria, ele me respondeu prontamente: "Astrud Gilberto". Rimos muito... E a minha manhã abriu-se em sol.
Sob um facho de luz artificial, muitos querem se manifestar... Enquanto isso, aquela/e que se vai simplesmente permanece pelo que deixou. Ontem, depois de assistir aos noticiários na TV, abraçado ao meu violão, aconcheguei-me na sofá... e fiquei buscando acordes joão-gilberteanos para "Chega Mais"*... até adormecer na sala...
"(...) Depois me leve pra casa
me prenda nos braços
me torture de carinho, beijinhos, abraços (...)"
"Chega mais" (Rita Lee/R.Carvalho)
https://www.youtube.com/watch?v=orr51ToQlcI
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*Chega mais - (Rita Lee e Roberto de Carvalho - gravada no álbum "Rita Lee", de 1979, da Som Livre)
Em comemoração aos quinze anos da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP, a USP Filarmônica apresentou-se ontem no Teatro Pedro II. Sob regência e direção artística do Prof. Dr. Rubens Russomanno Ricciardi, no programa sinfônico estavam obras de alguns compositores e poetas pretos e pardos brasileiros dos séculos XVIII e XIX.
Dentre estes compositores e poetas, foram lembrados: Manuel Dias de Oliveira (1734/35-1813), José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), o padre mestre Domingos Caldas Barbosa, ou Loreno Seltinuntino (1740-1800), José Maria Xavier (1819-1887), Anacleto Augusto de Medeiros (1866-1907) e Alfredo da Rocha Vianna Filho - o Pixinguinha - (1897-1973). Além dos poetas e compositores, também foram resgatadas e apresentadas modinhas e canções populares, fruto de pesquisa com levantamento folclórico e arranjos de Heitor Villa-Lobos, com orquestração de Olivier Toni (1926-2017) e Rubens Russomanno Ricciardi.
Que belo resgate! Quero parabenizar e agradecer à USP Filarmônica pela apresentação encantadora, e em especial aos solistas: Yuka de Almeida Prado (soprano), Anita Prado (mezzo-soprano), Rafael Stein (tenor), Alexandre Mazzer (barítono), Carla Rincón (spalla convidada), João Paulo Henrique da Silva (clarineta), Samuel Pompeu (saxofone), Gustavo Silveira Costa (violão) e Matheus Luis de Andrade (percussão).
Apresentações musicais tais como a da noite de ontem, que tive o privilégio de assistir (e com entrada franca, em um teatro monumental!), são um convite e uma inspiração para imersões poéticas nas riquezas adormecidas em nosso país - que florescem aqui em Ribeirão Preto.
Teca Calazans - "Rasga Coração"
(compositor: Anacleto de Medeiros; versos: Catulo da Paixão Cearense)
"Resistindo"*... Ah, esse disco... Sobre o aparador da sala de estar, deu tantas voltas em minha vitrola... Sofás, poltronas, lustres, portas e janelas... piano, violão e eu, só eu. Por vontade própria, era essa a plateia... O disco era meu, o Quarteto em Cy era meu... Qualquer movimento, qualquer interferência externa incomodava os passeios que, da minha sala eu fazia... pela Bahia, pelos barracos espetados na beira de barrancos, por Atenas... acompanhando o trajeto dos boias frias que via sair para o trabalho em carrocerias de caminhões, rumo ao rancho... das goiabadas... Quieto, ouvindo meninos dormir... que Deus lhes ensine a lição, dos que sofrem violência e perseguição... morreu Filipe dos Santos, mandaram esquartejar: outros porém nascerão... Resistindo, poetando em Capricho e Memória... "Amar o perdido, deixa 'comovido o meu' coração..." Canta Cyva, canta Cynara, canta Dorinha, canta Sônia... canta meu querido Quarteto em Cy: canta mais!
Quarteto em Cy - "Rancho da Goiabada" (Aldir Blanc/João Bosco)
https://www.youtube.com/watch?v=pJUpkw1DPiU
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*"Resistindo" - Resistindo - ao vivo" é um álbum do grupo musical Quarteto em Cy, (1977, Phonogram/Philips). Nesse disco foram gravadas as seguintes músicas: Eu vim da Bahia/Filhos de Gandhi; Viola violar; Capricho/Memória; Samambaias; favela/Arquitetura de pobre/O ronco da cuída; Resistindo; O Rancho da Goiabada; Dorme, meu menino dorme; Funeral de um lavrador; Mulheres de Atenas; Canta, canta mais.
De pé na cozinha de nossa casa, minha mãe cantarolava. Seu olhar ia distante, muito longe, muito além da janela aberta à sua frente. Por ali, e pela música que costumava cantarolar, ela parecia visitar "seu tempo", seus amigos e amigas... seus colegas, seus alunos... seus pais, meu pai... E era sempre a mesma modinha que a ajudava a temperar o nosso alimento.
"Quem sabe? (Carlos Gomes) - Soprano: Adriana de Almeida
https://www.youtube.com/watch?v=pIc_Hx-T-lk
"Tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento..."
... há duas semanas estive em um recital comemorativo aos 20 anos de instalação do Curso de Música da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Nesse recital, a Profª Drª Yuka de Almeida Prado, soprano, acompanhada pelo Profº Dr. Rubens Russomanno Ricciardi, ao piano, executaram "Quem sabe?", de Carlos Gomes (1836-1896)*.
"Quisera saber agora, quisera saber agora..."
Ao ouvi-los, da plateia da sala de concertos da tulha do campus da USP, atendi ao chamado... Com os pés descalços e sem camisa, vesti novamente o short branco feito pela minha avó... Devagarinho abri o portão de minha casa... fui entrando... menino, troquei passos em direção à voz de minha mãe, e a encontrei sorridente em frente à mesa posta. O sol, entrando pela janela, iluminava meu pai, minha irmã e minhas avós... todos ali prontos para o almoço de domingo...
QUEM SABE?
Tão longe de mim distante Onde irá, onde irá teu pensamento
Tão longe de mim distante Onde irá, onde irá teu pensamento
Quisera, saber agora Quisera, saber agora
Se esqueceste, se esqueceste Se esqueceste o juramento
Quem sabe se és constante Se inda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora Da saudade, da saudade, agro tormento
Tão longe de mim distante Onde irá onde irá teu pensamento
Tão longe de mim distante Onde irá, onde irá teu pensamento
Quisera, saber agora Quisera, saber agora
Se esqueceste, se esqueceste Se esqueceste o juramento
Quem sabe se és constante Se inda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora Da saudade, da saudade Ah! Saudade agro tormento
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*Letra de Francisco Leite Bittencourt Sampaio (1834-1859)
De repente eu me vi no Nordeste. Quem me levou foi o cronista pernambucano Antônio Maria (1921-1964), em "Eles não mudaram"*. Nessa crônica que mencionei ele conta que, certa vez, querendo escrever sobre o paraibano José Lins do Rego, encontrou-o em um bar, no Rio de Janeiro, na companhia do carioca Di Cavalcanti e do jornalista e colecionador caruaruense João Condé. Antônio Maria conta que, à mesa, conversaram sobre o Nordeste, suas tradições regionais, usos e costumes de seu povo; que, saindo do bar, a saudade da região era tamanha que ele e o Zé Lins foram até o bairro de São Conrado para se fartarem de pamonhas e caldo de cana - que tinham o gosto dos antigos engenhos nordestinos. Que aquele banquete foi muito maior que qualquer espécie de fome nordestina, do tamanho de uma ausência compartilhada na companhia um do outro.
Gilberto Gil - "Lamento Sertanejo" (Gil/Dominguinhos)
https://www.youtube.com/watch?v=KbJ4gLyKPes
Enquanto eu também me lambuzava de açúcar e milho verde nessa viagem ao Nordeste, um amigo que está vivendo em Portugal já há algum tempo chamou-me pelo telefone para uma "conversa informal de compatriotas". Quando disse a ele que estava me deliciando em pamonhas e caldo de cana dos antigos engenhos do Nordeste, ele me contou que trabalhou em um órgão representativo do governo brasileiro, em Marrocos, e que, estando lá, debruçou-se sobre a divulgação da cultura do nosso país por intermédio do livro "Novo mundo nos trópicos"** - coletânea expandida de conferências proferidas em 1944, nos Estados Unidos, por Gilberto Freyre (nordestino do Recife). Finda a nossa conversa, e ainda navegando por histórias do Nordeste, fui à busca do livro da autoria de Gilberto Freyre, mencionado por meu amigo, e pelo qual eu ainda não havia podido viajar.
Nessa busca, dei-me conta de que, para escrever um outro livro, "Nordeste"***, Gilberto Freyre solicitou ao poeta recifense Manuel Bandeira, a quem ele não conhecia pessoalmente, a composição de um poema alusivo ao tema: e desse pedido nasceu "Evocação do Recife":
“(...) Recife... Rua
da União... A
casa de meu avô... Nunca
pensei que ela acabasse! Tudo
lá parecia impregnado de eternidade (...)”
A partir desse poema, entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira desenvolveu-me uma amizade fomentada por uma correspondência que se estendeu por muitos anos... Essa correspondência - vim a descobrir em seguida - foi organizada e reunida por Silvana Moreli Vicente Dias no livro "Cartas Provincianas - correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira" (Global, 2017).
Não resisti. Curioso em saber quais assuntos dominavam as conversas por carta entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, contatei uma livraria e fiz o pedido do livro organizado por Silvana Moreli, o qual acaba de chegar às minhas mãos.
Diferente de dizer que estou feliz, preciso dizer que estou um tanto quanto desesperado e confuso diante de tanto assunto e diante de tanta informação que tem me interessado. Afinal, a vida é curta... e o que posso é muito pouco: em uma só existência, não há tempo suficiente...
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*"Eles não mudaram" - crônica publicada em "O Globo", em 21/ago/1955, e publicada no livro "Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria" (Todavia, 2021 - organização: Guilherme Tauil).
**"Novo mundo nos trópicos" (Global, 2011) - é uma versão ampliada de um livro anterior de Gilberto Freyre: "Brazil: an interpretation, publicado em 1945 em Nova Iorque.
Estou aqui extasiado. Extasiado porque acabei de ler o discurso que foi proferido pelo Ruy Castro em sua posse na Academia Brasileira de Letras. Extasiado porque gosto dos trabalhos do Ruy Castro. O Ruy é um cultuador e ao mesmo tempo escultor da alma brasileira tão bem torneada em "Estrela solitária", em "Carmen", em "Chega de Saudade", em "A noite do meu bem"... na Bossa Nova, nas noites do Rio... no samba-canção... Gosto do Ruy Castro, dos seus livros, da sua coluna na Folha, dos programas que gravou em rádio... Em seu discurso, um passeio pela Cadeira 13. Encanta: o fogo, a roda, a palavra... Encanta a mim, particularmente, por "ilusões da vida", do Francisco Otaviano, inspirador do Vinícius em "como dizia o poeta...": "quem passou pela vida em branca nuvem (...) só passou pela vida, não viveu"; encanta ao falar do Rouanet, seu antecessor, na aposta pela cultura... ao citar, inclusive alguns dos nossos queridos pontos de referência: Tom Jobim, Antônio Maria e Rubem Braga... Que passeio! Belíssimo discurso: rico, inteligente e elegante. Ao Ruy, todos os nossos aplausos.
Tomei o meu café da manhã ouvindo um podcast a respeito de cronistas brasileiros. Enquanto comentavam, na gravação, os trabalhos de Fernando Sabino, dei-me conta de que não havia ido além de seus romances "O encontro marcado” e "O menino no espelho"; que pouco conhecia sobre sua obra. Terminei então o meu café, e saíà procura de alguma coletânea de suas crônicas.
Lily Allen - "Somewhere only we know"
https://www.youtube.com/watch?v=Ve9cBwI-pAg
A duas quadras de casa há uma pequena loja de livros usados. Logo que lá entrei fui recebido por um senhor bastante idoso, o qual apresentou-se como proprietário. Disse a ele, especificamente, o que buscava, e aproveitei para solicitar que procurasse, também, alguma coletânea do Paulo Mendes Campos, do Hélio Pellegrino ou do Otto Lara Rezende.
Ele esboçou um sorriso. Em seguida mostrou-me a região da loja onde estavam os autores brasileiros, indicou-me onde estavam os livros do Fernando Sabino, e pediu-me licença para ir em busca dos demais cronistas mencionados por mim. Puxei uma cadeira, sentei-me, e fiquei por ali lendo os títulos nas lombadas dos livros enfileirados, tirando um ou outro de seu lugar, olhando a capa, lendo os textos de apresentação na primeira e segunda orelhas, os comentários na contracapa, e passeando pelos índices para ter uma visão de conteúdo.
Pouco depois ele se aproximou. Com alguns livros nas mãos comentou que, ainda adolescente, na ilusão de tornar-se escritor, havia estado no lançamento de um livro do Fernando Sabino, em Campinas; que, inspirado por ele, havia começado a valorizar os seus próprios escritos, tendo, consequentemente, ingressado na faculdade de Letras. Deixando comigo uma pilha de livros que selecionara para me mostrar, sugeriu-me folhear Hélio Pellegrino, Lourenço Diaféria e Contardo Calligaris. Em seguida voltou para o local onde se encontrava inicialmente, sentou-se quieto em meio a uma desordem interessante, e voltou a manusear os livros que estavam ao seu lado.
Cerca de quarenta minutos se passaram até que fui, finalmente, até à sua mesa, e entreguei a ele os livros que havia escolhido: "A cidade vazia" e "Deixa o Alfredo falar!", do Fernando Sabino, e "Lucidez embriagada", do Hélio Pellegrino. Enquanto manuseava os livros ele contou-me como os havia adquirido, e lamentou pelo Fernando Sabino, o Graciliano Ramos, a Clarice Lispector e o Jorge Amado não terem conseguido ocupar Cadeira na Academia Brasileira de Letras. Continuou sua fala relembrando fatos passados e lidos a respeito de cada um dos escritores por ele mencionados; e, por fim, contou-me do quanto sua esposa havia ficado contente quando ele retirou de dentro de sua casa todos os seus livros para poder iniciar o negócio do sebo; que ainda não havia conseguido cadastrar todos, mas que gostava de passar os seus dias ali, separando livros, cadastrando, ajeitando...
Naquele instante uma senhora entrou na loja, e a conversa precisou ser interrompida para que ele pudesse atendê-la. Depois, fiz o acerto dos valores da minha compra com a sensação de que, independente dos livros que eu havia escolhido, aquela pequena conversa já havia feito com que valesse à pena a minha estada naquela livraria.
Ao agradecer e me despedir, dei-me conta de que, ao lado de sua mesa de trabalho, havia uma garrafa de vinho tinto e uma taça; e que, mesmo sem muitos clientes, ele parecia de fato sentir-se muito bem ali, rodeado por ideias desenvolvidas por mentes iluminadas, cujos nomes, pela simples menção, já eram motivo para o início de uma conversa.
Pouco falei. Mas ouvi. Voltei para casa com o sentimento de que a compra e a venda, em si, não eram o melhor que aquele sebo podia oferecer: eram uma simples consequência.
No próximo sábado, no período da manhã, pretendo retornar àquela loja de livros usados; quero comentar minhas impressões a respeito dos livros que lá adquiri. E talvez, se não for incômodo ao proprietário, eu até leve para lá uma taça e uma garrafa de vinho tinto para ficar também bebendo e manuseando livros, até que a fome se manifeste e eu precise retornar à minha casa para o almoço.
Henri Mancini & His Orchestra - "Cortin" (Henri Mancini)
https://www.youtube.com/watch?v=v1AeueSldqw
Há cerca de quase dois meses apareceram em meus ombros duas pequenas manchas vermelhas. Elas coçavam... mas coçavam deliciosamente. Não havia dor. De início, querendo crer que elas logo iriam desaparecer, nenhuma providência tomei. Mas como elas persistiam, acabei por aplicar sobre elas, irresponsavelmente, uma pomada encontrada em uma das gavetas do banheiro de casa - e que me parecia apropriada, conforme instruções lidas na bula. Contudo, as manchas nem deram bola para a pomada: resistiram.
No início do mês, ainda com as manchas nos ombros, recebi um convite de um amigo, colega de república - hoje dermatologista -, para nos encontrarmos, nos revermos, e conversarmos sobre música, cinema e literatura - assuntos que foram responsáveis por nossa amizade há mais de quarenta anos.
Logo na chegada ouvi dele a notícia de que havia descoberto umas raridades musicais; que essas raridades foram gravadas, a seu pedido, por um amigo comum; que estava ansioso para me presentear com um pendrive contendo tais preciosidades. Em seguida entregou-me o pendrive commais de 700 músicas. E assim passamos, eu, ele, nossas esposas e mais uma amiga, uma noite muito agradável conversando, rindo e celebrando a vida.
Foi só há poucos dias que pude começar a ouvir as músicas gravadas: eram boleros, trilhas sonoras de filmes, sambas-canção... Doris Day, Henri Mancini, Edith Piaf, e tudo de bom que se possa imaginar. Percebi então, a medida que ia ouvindo as gravações, que aquelas manchas em meus ombros começaram a desaparecer. E assim, a cada dia, por intermédio da audição, sigo aplicando um pouco daquelas músicas nas minhas manchas.
Não consegui ainda ouvir todas as gravações que foram colocadas no pendrive. Consequentemente, ainda não estou totalmente curado das manchas nos ombros, pois ainda me falta ouvir umas oitenta músicas.
Ontem mesmo, por telefone, agradeci ao meu amigo, novamente, pelo presente terapêutico-musical que me foi prescrito e ofertado. Ao mesmo tempo agradeci-o também por uma pomada que, no nosso encontro, ele sugeriu que eu adquirisse em alguma farmácia e aplicasse de imediato sobre as manchas nos ombros: creio que aquela pomada também deve ter contribuído, um pouquinho, para que as músicas gravadas no pendrive resolvessem a questão das manchas nos meus ombros.
Caro amigo. Acabei de ler a mensagem que me foi enviada por você, via whatsapp, daí do cantinho da Europa, acompanhada de um vídeo. A mensagem me dá notícia do falecimento da jornalista Glória Maria, e o vídeo a mostra na rua entrevistando, há anos, o poeta Carlos Drummond de Andrade. A sua mensagem e o seu vídeo me chegam justo no instante em que eu me sento na sacada do apartamento, para, descompromissadamente, observar o horizonte.
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Chet Baker - "My funny valentine" (Rodgers/Hart)
https://www.youtube.com/watch?v=Bbz9i4Vd-Ac
E daqui da sacada, vejo o céu carregado de nuvens; vejo que aproxima-se da cidade um verdadeiro temporal. Mas não há ventania... Alguns pássaros tomam o rumo da praça da Catedral, e a algazarra promovida pelas maritacas mais parece o anúncio de um dilúvio. Denise e eu resistimos, em casa, nesse início de noite. Gosto de chuva. Gosto de chuvisqueiro. Em minha casa de menino o quintal tinha cheiro de tronco e folhas de mangueira molhada por água caída do céu... Com a possibilidade da chuva, reencontro minha mangueira... Talvez eu tenha a alma carregada de nuvens que pedem cuidado constante. Lembro-me do céu claro, acima das nuvens, quando ouço as histórias e as gargalhadas da Denise - dela, que tanto gosta do Carlos Drummond, talvez por um certo apego mineiro, mineiros que são. Ele de Itabira, ela de Viçosa... A Glória Maria era também dona de um sorriso bonito... ela sorri com leveza entrevistando o Drummond... Ele, depositário do sentimento do mundo, parece, na entrevista, entender de nuvens... e a Glória Maria, pelo que o poeta inspira, sorri e formula perguntas... Eu, diante daquela a quem quero bem, tento sorrir em retribuição ao seu sorriso espontâneo... procuro, sem encontrar, a mesma leveza.... e me levanto... vou à cozinha.... ligo a máquina de café, e preparo uma xícara de cappuccino para oferecer a ela, na sala... Na xícara, todo o meu amor - e o meu sorriso.
Daniel, Zé Américo, Elias, João - foto: acervo pessoal (2013)
David Crosby faleceu ontem, aos 81 anos de idade. Em meados dos anos 60 foi fundador da banda The Byrds, a qual fez muito sucesso com a gravação de "Mr. Tambourine Man" - composição de Bob Dylan. Crosby deixou o grupo em 1967. No ano seguinte juntou-se a seus amigos Stephen Stills e Graham Nash, com os quais formou o grupo de folk-rock Crosby, Stills & Nash - posteriormente, Neil Young juntou-se a eles. Daí o novo nome: Crosby, Stills, Nash & Young.
Crosby foi um dos artistas mais influentes no mundo do folk-rock. Tanto que foi admitido por duas vezes no famoso museu da cidade de Cleveland, em Ohio, nos Estados Unidos: o Rock and Roll Hall of Fame Museum - primeiramente (1991) pelo seu trabalho no The Byrds, e depois (1997) como componente do Crosby, Stills & Nash.
João, Daniel, Zé Américo, Elias (foto: acervo pessoal)
David Crosby foi muito elogiado e aplaudido em todos os teatros e casas de show onde se apresentou. Contudo, creio não ter chegado ao seu conhecimento que em uma madrugada, há muitos anos, no quintal enluarado da casa do meu amigo Daniel, em Guará, eu, o João, o Zé Américo e o próprio Daniel, tomados por música e muito boa vontade, aplaudimos o David Crosby repetidas vezes, cantando e ouvindo "Our house" - composição de Graham Nash, e sucesso internacional do grupo Crosby, Stills & Nash.
- Pois então, que Nova Iorque, Cleveland, Londres, Paris e todas as capitais e cidadezinhas do mundo fiquem sabendo do que se passou naquela madrugada em Guará, no quintal da casa do meu amigo Daniel.