terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

UMA MANHÃ DE SÁBADO, NA LIVRARIA

 

Foto: https://escrevereler.com.br/sebos-online/

    Tomei o meu café da manhã ouvindo um podcast a respeito de cronistas brasileiros. Enquanto comentavam, na gravação, os trabalhos de Fernando Sabino, dei-me conta de que não havia ido além de seus romances "O encontro marcado” e "O menino no espelho"; que pouco conhecia sobre sua obra. Terminei então o meu café, e saí à procura de alguma coletânea de suas crônicas.

Lily Allen - "Somewhere only we know"
https://www.youtube.com/watch?v=Ve9cBwI-pAg

    A duas quadras de casa há uma pequena loja de livros usados. Logo que lá entrei fui recebido por um senhor bastante idoso, o qual apresentou-se como proprietário. Disse a ele, especificamente, o que buscava, e aproveitei para solicitar que procurasse, também, alguma coletânea do Paulo Mendes Campos, do Hélio Pellegrino ou do Otto Lara Rezende.

    Ele esboçou um sorriso. Em seguida mostrou-me a região da loja onde estavam os autores brasileiros, indicou-me onde estavam os livros do Fernando Sabino, e pediu-me licença para ir em busca dos demais cronistas mencionados por mim. Puxei uma cadeira, sentei-me, e fiquei por ali lendo os títulos nas lombadas dos livros enfileirados, tirando um ou outro de seu lugar, olhando a capa, lendo os textos de apresentação na primeira e segunda orelhas, os comentários na contracapa, e passeando pelos índices para ter uma visão de conteúdo.

    Pouco depois ele se aproximou. Com alguns livros nas mãos comentou que, ainda adolescente, na ilusão de tornar-se escritor, havia estado no lançamento de um livro do Fernando Sabino, em Campinas; que, inspirado por ele, havia começado a valorizar os seus próprios escritos, tendo, consequentemente, ingressado na faculdade de Letras. Deixando comigo uma pilha de livros que selecionara para me mostrar, sugeriu-me folhear Hélio Pellegrino, Lourenço Diaféria e Contardo Calligaris. Em seguida voltou para o local onde se encontrava inicialmente, sentou-se quieto em meio a uma desordem interessante, e voltou a manusear os livros que estavam ao seu lado.

    Cerca de quarenta minutos se passaram até que fui, finalmente, até à sua mesa, e entreguei a ele os livros que havia escolhido: "A cidade vazia" e "Deixa o Alfredo falar!", do Fernando Sabino, e "Lucidez embriagada", do Hélio Pellegrino. Enquanto manuseava os livros ele contou-me como os havia adquirido, e lamentou pelo Fernando Sabino, o Graciliano Ramos, a Clarice Lispector e o Jorge Amado não terem conseguido ocupar Cadeira na Academia Brasileira de Letras. Continuou sua fala relembrando fatos passados e lidos a respeito de cada um dos escritores por ele mencionados; e, por fim, contou-me do quanto sua esposa havia ficado contente quando ele retirou de dentro de sua casa todos os seus livros para poder iniciar o negócio do sebo; que ainda não havia conseguido cadastrar todos, mas que gostava de passar os seus dias ali, separando livros, cadastrando, ajeitando...

    Naquele instante uma senhora entrou na loja, e a conversa precisou ser interrompida para que ele pudesse atendê-la. Depois, fiz o acerto dos valores da minha compra com a sensação de que, independente dos livros que eu havia escolhido, aquela pequena conversa já havia feito com que valesse à pena a minha estada naquela livraria.

    Ao agradecer e me despedir, dei-me conta de que, ao lado de sua mesa de trabalho, havia uma garrafa de vinho tinto e uma taça; e que, mesmo sem muitos clientes, ele parecia de fato sentir-se muito bem ali, rodeado por ideias desenvolvidas por mentes iluminadas, cujos nomes, pela simples menção, já eram motivo para o início de uma conversa.

    Pouco falei. Mas ouvi. Voltei para casa com o sentimento de que a compra e a venda, em si, não eram o melhor que aquele sebo podia oferecer: eram uma simples consequência.

    No próximo sábado, no período da manhã, pretendo retornar àquela loja de livros usados; quero comentar minhas impressões a respeito dos livros que lá adquiri. E talvez, se não for incômodo ao proprietário, eu até leve para lá uma taça e uma garrafa de vinho tinto para ficar também bebendo e manuseando livros, até que a fome se manifeste e eu precise retornar à minha casa para o almoço.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

COCEIRA, MÚSICA E POMADA


Henri Mancini & His Orchestra - "Cortin" (Henri Mancini)
https://www.youtube.com/watch?v=v1AeueSldqw

    Há cerca de quase dois meses apareceram em meus ombros duas pequenas manchas vermelhas. Elas coçavam... mas coçavam deliciosamente. Não havia dor. De início, querendo crer que elas logo iriam desaparecer, nenhuma providência tomei. Mas como elas persistiam, acabei por aplicar sobre elas, irresponsavelmente, uma pomada encontrada em uma das gavetas do banheiro de casa - e que me parecia apropriada, conforme instruções lidas na bula. Contudo, as manchas nem deram bola para a pomada: resistiram.

    No início do mês, ainda com as manchas nos ombros, recebi um convite de um amigo, colega de república - hoje dermatologista -, para nos encontrarmos, nos revermos, e conversarmos sobre música, cinema e literatura - assuntos que foram responsáveis por nossa amizade há mais de quarenta anos. 

    Logo na chegada ouvi dele a notícia de que havia descoberto umas raridades musicais; que essas raridades foram gravadas, a seu pedido, por um amigo comum; que estava ansioso para me presentear com um pendrive contendo tais preciosidades. Em seguida entregou-me o pendrive com mais de 700 músicas. E assim passamos, eu, ele, nossas esposas e mais uma amiga, uma noite muito agradável conversando, rindo e celebrando a vida.

    Foi só há poucos dias que pude começar a ouvir as músicas gravadas: eram boleros, trilhas sonoras de filmes, sambas-canção... Doris Day, Henri Mancini, Edith Piaf, e tudo de bom que se possa imaginar. Percebi então, a medida que ia ouvindo as gravações, que aquelas manchas em meus ombros começaram a desaparecer. E assim, a cada dia, por intermédio da audição, sigo aplicando um pouco daquelas músicas nas minhas manchas.

    Não consegui ainda ouvir todas as gravações que foram colocadas no pendrive. Consequentemente, ainda não estou totalmente curado das manchas nos ombros, pois ainda me falta ouvir umas oitenta músicas.

    Ontem mesmo, por telefone, agradeci ao meu amigo, novamente, pelo presente terapêutico-musical que me foi prescrito e ofertado. Ao mesmo tempo agradeci-o também por uma pomada que, no nosso encontro, ele sugeriu que eu adquirisse em alguma farmácia e aplicasse de imediato sobre as manchas nos ombros: creio que aquela pomada também deve ter contribuído, um pouquinho, para que as músicas gravadas no pendrive resolvessem a questão das manchas nos meus ombros.


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

GLÓRIA MARIA: NUVENS, SORRISOS E CAPPUCCINOS...

 

Caro amigo. Acabei de ler a mensagem que me foi enviada por você, via whatsapp, daí do cantinho da Europa, acompanhada de um vídeo. A mensagem me dá notícia do falecimento da jornalista Glória Maria, e o vídeo a mostra na rua entrevistando, há anos, o poeta Carlos Drummond de Andrade. A sua mensagem e o seu vídeo me chegam justo no instante em que eu me sento na sacada do apartamento, para, descompromissadamente, observar o horizonte.

CLIQUE PARA OUVIR

Chet Baker - "My funny valentine" (Rodgers/Hart)
https://www.youtube.com/watch?v=Bbz9i4Vd-Ac

E daqui da sacada, vejo o céu carregado de nuvens; vejo que aproxima-se da cidade um verdadeiro temporal. Mas não há ventania... Alguns pássaros tomam o rumo da praça da Catedral, e a algazarra promovida pelas maritacas mais parece o anúncio de um dilúvio. Denise e eu resistimos, em casa, nesse início de noite. Gosto de chuva. Gosto de chuvisqueiro. Em minha casa de menino o quintal tinha cheiro de tronco e folhas de mangueira molhada por água caída do céu... Com a possibilidade da chuva, reencontro minha mangueira... Talvez eu tenha a alma carregada de nuvens que pedem cuidado constante. Lembro-me do céu claro, acima das nuvens, quando ouço as histórias e as gargalhadas da Denise - dela, que tanto gosta do Carlos Drummond, talvez por um certo apego mineiro, mineiros que são. Ele de Itabira, ela de Viçosa... A Glória Maria era também dona de um sorriso bonito... ela sorri com leveza entrevistando o Drummond... Ele, depositário do sentimento do mundo, parece, na entrevista, entender de nuvens... e a Glória Maria, pelo que o poeta inspira, sorri e formula perguntas... Eu, diante daquela a quem quero bem, tento sorrir em retribuição ao seu sorriso espontâneo... procuro, sem encontrar, a mesma leveza.... e me levanto... vou à cozinha.... ligo a máquina de café, e preparo uma xícara de cappuccino para oferecer a ela, na sala... Na xícara, todo o meu amor - e o meu sorriso.


RP, 02fev23