sábado, 25 de março de 2023

ONDE IRÁ O TEU PENSAMENTO ?

   

"Onde irá o teu pensamento..."
[minha mãe (1931-2017) - acervo pessoal, 2014]

    De pé na cozinha de nossa casa, minha mãe cantarolava. Seu olhar ia distante, muito longe, muito além da janela aberta à sua frente. Por ali, e pela música que costumava cantarolar, ela parecia visitar "seu tempo", seus amigos e amigas... seus colegas, seus alunos... seus pais, meu pai... E era sempre a mesma modinha que a ajudava a temperar o nosso alimento. 

"Quem sabe? (Carlos Gomes) - Soprano: Adriana de Almeida
https://www.youtube.com/watch?v=pIc_Hx-T-lk

"Tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento..."

    ... há duas semanas estive em um recital comemorativo aos 20 anos de instalação do Curso de Música da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Nesse recital, a Profª Drª Yuka de Almeida Prado, soprano, acompanhada pelo Profº Dr. Rubens Russomanno Ricciardi, ao piano, executaram "Quem sabe?", de Carlos Gomes (1836-1896)*.

"Quisera saber agora, quisera saber agora..."

    Ao ouvi-los, da plateia da sala de concertos da tulha do campus da USP, atendi ao chamado... Com os pés descalços e sem camisa, vesti novamente o short branco feito pela minha avó... Devagarinho abri o portão de minha casa... fui entrando... menino, troquei passos em direção à voz de minha mãe, e a encontrei sorridente em frente à mesa posta. O sol, entrando pela janela, iluminava meu pai, minha irmã e minhas avós... todos ali prontos para o almoço de domingo...

QUEM SABE?

Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento

Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento

Quisera, saber agora
Quisera, saber agora

Se esqueceste, se esqueceste
Se esqueceste o juramento

Quem sabe se és constante
Se inda é meu teu pensamento

Minh'alma toda devora
Da saudade, da saudade, agro tormento

Tão longe de mim distante
Onde irá onde irá teu pensamento

Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento

Quisera, saber agora
Quisera, saber agora

Se esqueceste, se esqueceste
Se esqueceste o juramento

Quem sabe se és constante
Se inda é meu teu pensamento

Minh'alma toda devora
Da saudade, da saudade
Ah! Saudade agro tormento

______________________________ 

*Letra de Francisco Leite Bittencourt Sampaio (1834-1859)

domingo, 12 de março de 2023

PERDIDO NO NORDESTE

 

Região Nordeste - Brasil
https://brasilescola.uol.com.br/brasil/regiao-nordeste.htm

    De repente eu me vi no Nordeste. Quem me levou foi o cronista pernambucano Antônio Maria (1921-1964), em "Eles não mudaram"*. Nessa crônica que mencionei ele conta que, certa vez, querendo escrever sobre o paraibano José Lins do Rego, encontrou-o em um bar, no Rio de Janeiro, na companhia do carioca Di Cavalcanti e do jornalista e colecionador caruaruense João Condé. Antônio Maria conta que, à mesa, conversaram sobre o Nordeste, suas tradições regionais, usos e costumes de seu povo; que, saindo do bar, a saudade da região era tamanha que ele e o Zé Lins foram até o bairro de São Conrado para se fartarem de pamonhas e caldo de cana - que tinham o gosto dos antigos engenhos nordestinos. Que aquele banquete foi muito maior que qualquer espécie de fome nordestina, do tamanho de uma ausência compartilhada na companhia um do outro.


Gilberto Gil - "Lamento Sertanejo" (Gil/Dominguinhos)
https://www.youtube.com/watch?v=KbJ4gLyKPes

    Enquanto eu também me lambuzava de açúcar e milho verde nessa viagem ao Nordeste, um amigo que está vivendo em Portugal já há algum tempo chamou-me pelo telefone para uma "conversa informal de compatriotas". Quando disse a ele que estava me deliciando em pamonhas e caldo de cana dos antigos engenhos do Nordeste, ele me contou que trabalhou em um órgão representativo do governo brasileiro, em Marrocos, e que, estando lá, debruçou-se sobre a divulgação da cultura do nosso país por intermédio do livro "Novo mundo nos trópicos"** - coletânea expandida de conferências proferidas em 1944, nos Estados Unidos, por Gilberto Freyre (nordestino do Recife). Finda a nossa conversa, e ainda navegando por histórias do Nordeste, fui à busca do livro da autoria de Gilberto Freyre, mencionado por meu amigo, e pelo qual eu ainda não havia podido viajar.

    Nessa busca, dei-me conta de que, para escrever um outro livro, "Nordeste"***, Gilberto Freyre solicitou ao poeta recifense Manuel Bandeira, a quem ele não conhecia pessoalmente, a composição de um poema alusivo ao tema: e desse pedido nasceu "Evocação do Recife":

“(...)
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
(...)”

    A partir desse poema, entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira desenvolveu-me uma amizade fomentada por uma correspondência que se estendeu por muitos anos... Essa correspondência - vim a descobrir em seguida - foi organizada e reunida por Silvana Moreli Vicente Dias no livro "Cartas Provincianas - correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira" (Global, 2017). 

    Não resisti. Curioso em saber quais assuntos dominavam as conversas por carta entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, contatei uma livraria e fiz o pedido do livro organizado por Silvana Moreli, o qual acaba de chegar às minhas mãos.

    Diferente de dizer que estou feliz, preciso dizer que estou um tanto quanto desesperado e confuso diante de tanto assunto e diante de tanta informação que tem me interessado. Afinal, a vida é curta... e o que posso é muito pouco: em uma só existência, não há tempo suficiente...

____________________ 

*"Eles não mudaram" - crônica publicada em "O Globo", em 21/ago/1955, e publicada no livro "Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria" (Todavia, 2021 - organização: Guilherme Tauil).

**"Novo mundo nos trópicos" (Global, 2011) - é uma versão ampliada de um livro anterior de Gilberto Freyre: "Brazil: an interpretation, publicado em 1945 em Nova Iorque.

***"Nordeste" (Global, 2013 - 1ª edição digital)


terça-feira, 7 de março de 2023

RUY CASTRO NA ABL

 

Estou aqui extasiado. Extasiado porque acabei de ler o discurso que foi proferido pelo Ruy Castro em sua posse na Academia Brasileira de Letras. Extasiado porque gosto dos trabalhos do Ruy Castro. O Ruy é um cultuador e ao mesmo tempo escultor da alma brasileira tão bem torneada em "Estrela solitária", em "Carmen", em "Chega de Saudade", em "A noite do meu bem"... na Bossa Nova, nas noites do Rio... no samba-canção... Gosto do Ruy Castro, dos seus livros, da sua coluna na Folha, dos programas que gravou em rádio... Em seu discurso, um passeio pela Cadeira 13. Encanta: o fogo, a roda, a palavra... Encanta a mim, particularmente, por "ilusões da vida", do Francisco Otaviano, inspirador do Vinícius em "como dizia o poeta...": "quem passou pela vida em branca nuvem (...) só passou pela vida, não viveu"; encanta ao falar do Rouanet, seu antecessor, na aposta pela cultura... ao citar, inclusive alguns dos nossos queridos pontos de referência: Tom Jobim, Antônio Maria e Rubem Braga... Que passeio! Belíssimo discurso: rico, inteligente e elegante. Ao Ruy, todos os nossos aplausos.