Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Foi observando a Malu comer sua ração que comecei a conversar com a minha esposa a respeito do Pateta, do Mickey, do Pato Donald e do Pluto - personagens de histórias em quadrinhos criados por Walt Disney. Inicialmente, meu caro leitor, preciso esclarecer que a Malu é uma cachorrinha que, assim como o Pito, uma calopsita macho, frequentemente hospedam-se em minha casa durante as viagens da minha filha - que é quem os cria (Malu e Pito). Observando a avidez com que a Malu devorava o seu alimento, comentei que talvez fosse solidão o motivo que a estivesse levando a se alimentar daquela maneira; que um animalzinho precisa ter a companhia de um outro animalzinho da mesma espécie. Foi então que nos lembramos dos personagens criados por Walt Disney, e de suas respectivas companheiras: para o Mickey, a Minnie; para o Pato Donald, a Margarida; e para o Pateta, a Clarabela.
"Clarabela"
https://tkoc.fandom.com/pt-br/wiki/Clarabela
Mas... a Clarabela?? Peraí! Deve ter ocorrido alguma confusão. Mickey e Minie são ratos; Donald e Margarida são patos; mas o Pateta, sendo um cachorro, como é que pode querer namorar a Clarabela, que é uma vaca? Falha do Walt Disney? Ou será que Walt Disney quis desenvolver um personagem animal com fixação por um outro animal de espécie distinta?
Criado em 1932 com o nome de Dippy Dawg, somente sete anos depois Dippy Dawg teve seu nome alterado para Goofy (Pateta). O primeiro nome do Pateta - "Dippy Dawg" - sinaliza para a espécie de animal que foi elaborado na mente do seu criador: um cachorro. Afinal, a pronúncia da palavra "Dawg", em inglês, é semelhante a "dog" - que significa, em português, "cachorro". Mas... há aí uma outra confusão: como pode o Pateta, sendo cão, passear com o cachorro de seu amigo Mickey, o Pluto, preso pela coleira? Um cachorro guiando o outro, pela coleira: não é estranho? Bom, o Pateta foi desenhado para agir como se fosse um personagem humano; o Pluto, para representar a figura de um animal de estimação - um cão. Representar personagens é, evidentemente, compreensível; mas o Pateta paquerar a Clarabela, e vice-versa, parece meio esquisito: um cão querer namorar uma vaca? Apesar de achar a Clarabela um tanto quanto espalhafatosa, gosto muito dela - e do Pateta.
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Goofy and Clarabelle - "Chains of love"
https://www.youtube.com/watch?v=m_xrT_2knts
É claro que as vezes a gente vê relacionamentos pacíficos entre animais de diferentes grupos, tal como o que se dá entre a Malu e o Pito, um mamífero e uma ave, quando o Pito estica as asas fora da gaiola e convive numa boa com a Malu. Mas, vejam só a Clarabela: ela joga o seu charme para cima do Pateta quando se desentende com o seu namorado (as vezes "ex"), o Horácio - que é um um cavalo! Não é meio estranho?
"Horácio"
https://disney.fandom.com/pt-br/wiki/Hor%C3%A1cio
Assim, um cachorro (o Pateta) guia outro cachorro (o Pluto), e uma vaca (a Clarabela) que namorou, primeiro, um cavalo (o Horácio), de vez em quando dá bola para um cachorro (o Pateta). Nessa salada oriunda da fertilidade imaginativa dos criadores dos desenhos animados, até aplaudo as confusões. A meu ver, os cartunistas parecem ser grandes visionários: com todo talento que possuem, eles vão fazendo com que a gente vá acomodando todas as (im)possibilidades pensadas nesse nosso mundão - que, abençoado por Deus, que a todos protege, só quer que convivamos bem uns com os outros - humanos, mamíferos, répteis, peixes, aves, anfíbios... canídeos, bovinos, ovinos, equinos, bípedes, aracnídeos, quilópodes, diplópodes, crustáceos, vertebrados, invertebrados e todos os demais gêneros e espécies...
No centro da sala enorme e fria jazia o corpo. Ornado em flores, mãos cruzadas sobre o peito, estendido em sua urna sepulcral com a tez pálida, e ainda assim com o magnetismo mantido pelo que havia sido ao longo dos seus 97 anos, o falecido promovia uma reunião de pessoas em torno de si - como costumava acontecer quando contava histórias. Ao pé do ouvido, ao redor do caixão, uns com outros conversavam baixinho. De pé, ao lado do morto, com a face voltada para baixo e as palmas das mãos para cima, um senhor movia silenciosamente os lábios, como que a fazer uma oração. Quase centenária, a irmã do falecido, ao canto, com olhos solitários, vermelhos e cansados, recebia abraços e apertos de mão daqueles que dela se aproximavam.
Após o sepultamento, sozinho no caminho de volta, fiquei relembrando histórias antigas a respeito de minha avó, de meu pai e seus irmãos, que me haviam sido contadas há muitos anos pelo falecido. Ao chegar em casa pensei em chamar por telefone minha mãe, ou algum dos meus tios, ou ainda alguém que pudesse se interessar em saber como havia sido aquela partida. Com o celular em mãos dei-me conta de que todos os conhecidos meus que haviam tido, ao longo do tempo, alguma proximidade com o falecido, e que poderiam querer saber como havia sido aquela partida, também já haviam se despedido...
Por fim levantei-me do sofá e fui para a sacada do apartamento. Dali, movido por uma certa aflição carregada pela ideia de transitoriedade, deixei os meus pensamentos se perderem nos pequenos pontos de luz que cintilavam no escuro do céu...