segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A GARRAFA

 

Sílvia Maria e Baden Powell - "Canção das flores" (Baden/Paulo César Pinheiro)
https://www.youtube.com/watch?v=t2xDlcLTl88&list=RDt2xDlcLTl88&start_radio=1

    Ficou por muitos anos em uma pequena adega da casa de minha mãe, mesmo depois de sua partida. Ao me atentar encantado para aquela garrafa de vidro que continha vinho verde português, para seu formato meio bojudo com uma saliência na parte superior representando um gancho, apossei-me dela e a trouxe para a minha casa.

    Logo que deixei de olhar a garrafa e passei a examinar o vinho nela contido, percebi que, em função do tempo de armazenamento, sua coloração sugeria um certo comprometimento na qualidade. Na dúvida, enquanto decidia se o consumia ou não, coloquei a garrafa na horizontal, cuidadosamente, dentro de um armário onde mantenho bebidas de qualidade duvidosa.

    Incomodado com a minha indecisão, na semana seguinte voltei à garrafa. Movimentei o líquido suavemente de um lado para outro mas, reexaminando sua coloração, não me senti seguro em consumi-lo. Contudo, aquela garrafa tão bonita parecia não querer me deixar. E então, por essas razões transcendentais que nos ocorrem, decidi me desfazer do vinho e manter a garrafa como enfeite.

    Com um saca-rolhas em mãos parti para a ação. Contudo, ao inserir o saca-rolhas na cortiça, a rolha partiu-se no quarto superior de sua extensão, e a sua parte inferior desprendeu-se do bico, caiu no líquido, e afundou. Sem querer experimentar o vinho, e sem conseguir retirar a rolha do fundo da garrafa, joguei todo o líquido pelo ralo da pia da cozinha, e fiquei com a garrafa vazia e limpa, contendo somente um grande pedaço de rolha dentro dela.

    - O que fazer, meu caro leitor? Sim, fiquei chateado. Como eu poderia retirar aquele pedaço de rolha de dentro da garrafa? 

    Pois bem. Por esses acasos do destino, um belo dia encontrei, no gramado do fundo de minha casa, um espeto de ponta afiada - próprio para ser utilizado em uma churrasqueira. Dei-me conta então de que, com aquele espeto, eu poderia cortar a rolha em pedaços pequenos, os quais poderiam ser eliminados pelo bico da garrafa. E assim eu fiz!

    Depois, com a garrafa em mãos, limpa por fora e totalmente vazia de liquido ou rolha por dentro, fui até uma loja de produtos esotéricos e religiosos onde certamente eu poderia encontrar velas coloridas para se encaixarem no bico da garrafa, formando assim uma pequena lamparina. Logo no balcão de entrada da loja encontrei uma belíssima vela amarela, com aroma delicioso de mel. Para demonstrar minha criatividade à jovem vendedora que se aproximara de mim, indaguei a ela a respeito do destino que se poderia dar àquela garrafa que eu trazia comigo. Com um sorriso espontâneo, e com muita naturalidade, ela me respondeu que colocaria uma flor de cor bastante forte dentro dela, pois assim iria alegrar qualquer ambiente.

    Com uma vela amarela em mãos, e sem dizer à vendedora o que havia me levado a procurar aquela loja, fiquei silenciosamente confrontando a exuberância da juventude com o desencanto e esmorecimento de muitos já não tão jovens... - como eu. Ao fazer tais comparações, e sem dizer nada, encontrei uma maneira de agradecê-la pela ideia. Pois enquanto eu pensava em uma vela na escuridão, queimando no bico da garrafa e sugerindo morte, feito vida que se consome, a jovem pensava em flores e na beleza que sugere vidas que florescem.

    A jovem vendedora ainda me alertou de que eu havia escolhido as velas mais caras, com aroma de mel... que havia outras mais baratas. Foi então que a simplicidade da vendedora e a honestidade de seu sorriso me fizeram decidir: pedi a ela outras cinco velas amarelas, com aroma de mel, e coloquei todas elas em uma sacola de plástico. Paguei pela compra, agradeci comovido pela venda e, já na rua, sem saber o destino que daria às velas, saí em busca de flores para ocuparem o espaço interno daquela garrafa.



A garrafa - foto: acervo pessoal (ago/25)


Nenhum comentário:

Postar um comentário