Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
O Ruy Castro publicou no jornal Folha de São Paulo, em sua coluna de ontem, uma relação daquelas que ele considera as vinte maiores músicas brasileiras, desde 1925 ("As 20 mais", 31/08/25). Ele avisa que a lista que fez não traduz o seu gosto pessoal, mas - esclarece ele - são músicas que "abriram caminhos, que firmaram um gênero, e consolidaram um ritmo".
Fiquei sabendo desse artigo por intermédio do meu amigo Paulo Sérgio, que o enviou a mim, via WhatsApp, com a sugestão de que eu fizesse a relação das minhas músicas preferidas. Tentei atendê-lo, porém não consegui. É tão difícil fazer uma seleção assim... A gente vai mudando, as canções vão ganhando ou perdendo importância pra gente... Mas relacionei, pra começar, alguns álbuns inteiros, nacionais e internacionais, que são frequentes em meu aparelho de som, pelos quais tenho a maior paixão e não consigo me imaginar sem a possibilidade de poder ouvi-los sempre que quiser... São álbuns que me acompanham desde que os ouvi pela primeira vez, e que fazem com que eu me lembre de algum evento, de alguma situação, de alguma pessoa, de algum lugar:
(1) "Vinícius e Caymmi, no Zum Zum" (Elenco, 1966);
(2) "Elis & Tom" (Philips, 1974);
(3) "Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim" (Reprise, 1967);
(4) "Chega de saudade" (João Gilberto - Odeon, 1959);
(5) "O amor, o sorriso e a flor" (João Gilberto - Odeon, 1960);
(6) "João Gilberto" (Odeon, 1961);
(7) "Amoroso" (João Gilberto - Warner, 1977);
(8) "Solitude on guitar" (Baden Powell - CBS, 1971);
(9) "Violão em Seresta - Rio das Valsas" (Baden Powell - Ideia Livre, 1988);
(10) "Villa por chorões" (diversos - Kuarup, 2002);
(14) "O som brasileiro de Sarah Vaughan" (Sarah Vaughan - RCA, 1978)
....
Há tantos outros... Estes, são álbuns inteiros; outra hora tentarei relacionar as músicas específicas... começarei por "Strangers in the night", na interpretação do Frank Sinatra (que ouvi ainda hoje, de manhã); seguirei com "The shadow of your smile", com a Barbra Streisand; depois, "Ilusão à toa", com o Johnny Alf...
- Não, não vai dar... vai virar uma salada! Te peço desculpas, Paulo Sérgio.
Penso que preciso me organizar melhor. Penso que vou precisar fazer uma lista somente com músicas brasileiras; outra, com músicas estrangeiras... e dentro das estrangeiras, uma lista das gravadas em inglês, outra em francês, mais uma em espanhol, e outra ainda em italiano. Também me ocorreu fazer uma lista dos meus fados prediletos... E já estou aqui me sentindo com o coração partido: sei que, pelos esquecimentos, vou ser injusto com um ou outro álbum, com uma ou outra música - e devo mesmo ter sido ingrato com muitos álbuns que esqueci de colocar na lista que acabei de montar.
Por fim, para que essas listas não fiquem incompletas, para nunca me esquecer do que preciso me lembrar, fico devendo a mim mesmo a explicação escrita dos motivos que fizeram dos álbuns e das músicas relacionadas minhas grandes fontes de memória e inspiração.
- Pensando bem, nesse amontoado de sem-sentido, melhor eu deixar toda essa confusão de lado. Afinal, pra que serve o quebra-cabeça? O que pode interessar a João, a Pedro ou a Maria o sentimento que desperta em mim essa ou aquela música? esse ou aquele álbum musical? Acho que é mais sensato eu tomar uma atitude: vou montar um balcão, manter a gaveta sempre cheia, e sobreviver.
A poltrona esquecida - Foto: acervo pessoal (2018)
A poltrona conta uma história. Conta muitas histórias. Em outros tempos costumava acomodar corpos necessitados de descanso. Eu era criança quando a conheci. No frio, o veludo de sua estrutura agasalhava as partes do corpo daqueles que nela se recostavam - e as almofadas que a decoravam aqueciam as mãos e os braços que as abraçavam.
O tempo passou... Depois de ter servido por mais de 50 anos aos seus antigos senhores, aos jovens, crianças e idosos que os visitavam, ela foi deixada em uma sala fria e escura de condomínio. Nos últimos sete anos, amargou-se da tristeza e da inutilidade que lhe foram impostas.
Esquecida assim, sua madeira enfraquecida adoeceu. Vitimada por um movimento descuidado, fraturou uma de suas pernas e tombou.
Há pouco, seu agora proprietário a revisitou. Ao revê-la, chocado com sua tremenda ingratidão, sensibilizou-se e despertou-se do descaso que havia imposto a ela. Arrependido, hoje busca redenção: procura um profissional que se solidarize com todas as histórias que ela conta.
- "Alguém pode fazer alguma indicação?" - brada em desespero por todas as esquinas.
É preciso que seja um marceneiro competente e atencioso; que seja dedicado o suficiente para conseguir promover a cura de um pé de madeira quebrada. Quando renovada - e isso o seu proprietário promete! -, a poltrona que se encontra enferma e esquecida ganhará um novo revestimento de tecido, alegre, imponente... para que possa continuar oferecendo acolhimento a todos aqueles que se sentirem cansados - até mesmo a esse pobre ingrato que a desprezou.
Enquanto isso, vou remoendo as histórias que a poltrona ainda me conta.
Foto que está circulando no facebook - (Fonte desconhecida)
Para a Vanda,
minha amiga.
Veio do litoral paulista, enviado pela minha amiga Vanda, um presente em forma de inspiração. Tal presente, originário da Costa do Marfim, na África, chegou a ela pelo Oceano Atlântico. Impelido pela lembrança de antigas caravelas dominadoras, e navios negreiros de triste memória, o presente passou por Itanhaém, Santos, São Vicente e São Paulo e, em forma de Reggae, veio bater à minha porta: "Plus rien ne m'etonne" (nada mais me espanta), gravado por Tiken Jah Fakouly.
O presente, pela crítica e reflexão propostas, me fez bem. Ao ouvi-lo, instintivamente fui passear pelo litoral da África - Gana, Nigéria, Benin, Serra Leoa... -, adentrando o seu interior - Congo, Zâmbia, Chade...-, revisitando o projeto de dominação elaborado na Conferência realizada em Berlim nos anos de 1884 e 1885.
Assim como na prepotência de Portugal e Espanha, ao decidirem pelo loteamento do mundo em 1494 (pelo Tratado de Tordesilhas), a cidade de Berlim sediou uma Conferência entre potências mundiais da segunda metade do século XIX, para que estas pudessem planejar a expansão de influências econômicas e dividir mercados e áreas para exploração de recursos naturais e escoamento de produtos manufaturados.
A África era vista, à época, como um continente repleto de possibilidades. E como a competição pela exploração das riquezas naturais africanas, e a disputa pela conquista do mercado consumidor de produtos acabados poderia gerar tensões entre as potências europeias, o então chanceler do império alemão Otto von Bismarck convidou 14 países para se reunirem em Conferência: Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia e Império Otomano - além dos Estados Unidos. Assim, iniciada em novembro de 1884, a Conferência de Berlim terminou em fevereiro de 1885 com o fracionamento da África em regiões para exploração e ocupação europeia do continente.
Para espanto geral, meu caro leitor, não houve nessa Conferência a participação de qualquer representante do continente africano. Estranho, não é? Onde já se viu? Discutem o que fazer do "meu" quintal, promovem a sua divisão, e nem sequer me convidam para debater sobre o assunto, sobre o que é meu? Esse fracionamento acabou acontecendo, portanto, sem o devido respeito aos perfis étnicos e culturais existentes no continente africano - ou seja, "esqueceram", especialmente, que havia gente habitando o continente... gente que, ao final, deixada de lado, saiu enfraquecida.
Trazendo a Conferência de Berlim para os nossos dias, o que podemos perceber é que a história está se repetindo, porém em dimensões muito maiores: restrito a um continente, inicialmente (o africano), a fragmentação em áreas de influência tem por limite, agora, o planeta todo. Ou seja, não tem limite! Essaforma brutal de tentativa de dominação (leia-se "colonização", imposição do imperialismo) que vem se arrastando até os dias de hoje por todos os cantos do mundo causa o mesmo espanto que causou no final do século XIX: quem, hoje, vai explorar o mercado sul-americano? os Estados Unidos, a China, ou a União Europeia? quem vai gerenciar a exploração das riquezas do oriente médio? se um país não se alinhar a outros, esses outros, mais fortes, promoverão retaliações econômicas..... E mais: o desrespeito à soberania e a ingerência estrangeira em muitos países, hoje, são promovidos sob ameaças comerciais, que podem agravar desigualdades econômicas já existentes... E há, ainda, uma forte agravante: já não são mais 14 países; cada um é por si.
- "Muito estranho... muito estranho...
"Nada mais me surpreende", o reggae-presente gravado pelo Marfinense, que me foi enviado pela Vanda, ilustra muito bem a questão:
- "Se você apoiar o bombardeio ao qual submeto o meu vizinho, eu imponho baixas tarifas de importação aos produtos de seu país; se você propagar a ideia de que a moeda referência hoje pode deixar de sê-lo amanhã, eu não compro mais produtos originários de seu país; se você não for condescendente com o meu conceito de liberdade, eu não permito que os seus nacionais coloquem os pés no meu país...
- E assim, meus amigos, assim (des)caminha a humanidade! E que se explodam os homens, as mulheres e as crianças... as instituições, os hospitais, as escolas e a soberania dos mais fracos...
Disseram-me até que estão até de olho no acarajé - posto que o mercado que a iguaria atinge, com a sua comercialização, pode diminuir a possibilidade de lucros dos sanduíches da rede McDonald's.
- "A Bahia que se cuide! Eu, hein?... Antes que seja tarde, vou lá no quintal, quietinho, colher da jabuticabeira alguns de seus frutos...
Louis Armstrong - "What a wonderful world" - Filme (trecho): "Good morning, Vietnam"
https://www.youtube.com/watch?v=FzFIDTs3WtI
Da mansa escuridão onde me encontro, para mirar as estrelas, e com a chegada da noite, fiquei pensando nas pequenas famílias que habitam a Faixa de Gaza, a Ucrânia, a Etiópia, o Iêmen, o Sudão do Sul, a Síria, Mianmar, Israel, Irã... nos campos de refugiados... nas pequenas famílias desamparadas, jogadas pelas calçadas, pelas praças de São Paulo, pelos morros do Rio... pelas ruas das cidades... sob as marquises dos imóveis do bairro onde resido... Fiquei pensando nos pequenos e ridículos grandes poderosos... nos interesses que provocam estragos... E desejei paz e harmonia para nós, aqui em baixo, como se esse simples desejo pudesse promover decisivas transformações...
Embarquei em um navio viquingue. Num frio cortante, de fazer tremer o corpo todo, deixei de lado as costumeiras rotas do Bojador e iniciei meu percurso pelo litoral da Dinamarca, Noruega e Suécia. Mergulhei na neblina… No convés, propulsor da viagem, o pianista Caio Pagano. Deslizou os dedos pelas teclas do mar Báltico de seu instrumento, e a nau atravessou, determinada, a Escandinávia. Finda a travessia, desembarquei no espaço aéreo da praça escura, e saí caminhando pelas ondas de um oceano terrestre que havia inundado o quadrilátero central da cidade. Fui dormir no paraíso.
"Maternidade" - Juan Rocasalbas (1985) - acervo pessoal
Do final dos anos 60 até meados dos anos 80, Rosa Freire d'Aguiar residiu e trabalhou na França como jornalista e correspondente das revistas Isto É e Manchete. Durante os anos lá vividos, traduziu a conjuntura internacional e entrevistou escritores, intelectuais e artistas de destaque, dentre as quais Ernesto Sabato, Fernand Braudel, François Perroux, Georges Simenon, Julio Cortázar e Norma Bengell. Anos depois desse período, desencaixotou algumas entrevistas que havia guardado, e as publicou em livro - ao qual deu o título de "Sempre Paris" (Companhia das Letras, 2023).
Ao iniciar a leitura de "Sempre Paris", justamente no último "dia das mães" (11 de maio), deparei-me em suas páginas com a entrevista que lhe fora concedida pela filósofa francesa Élisabeth Badinter, autora de um best seller, em 1980, na França, e que inspirava uma discussão a respeito do mito do amor materno - "L'amour en plus" (1980), traduzido no Brasil com o título "Um amor conquistado - o mito do amor materno".
Para mim sempre esteve pacífico o entendimento de que "amor de mãe é o mais sublime, é o mais "puro e sincero, 'inocente como a flor'", é diferenciado, é o que advém da "extração" de uma parte daquela que gerou e que é dedicado aquele/a que nasceu - ou seja, é o amor que está além de todos e quaisquer outros tipos ou maneiras de amar.
Admito, contudo, que eu nunca havia pensado a respeito do assunto.
A autora de "L'amour en plus", não negando o instinto maternal, contestava a ideia de que esse amor de mãe seria inato e idêntico em todas as mulheres. Em seu entendimento, "o amor materno é um aprendizado que uma mãe vai tricotando no contato diário com o filho" - mas "pode não surgir", disse ela na entrevista. Um dos pontos abordados na conversa com a jornalista considerava a possibilidade da troca involuntária de um bebê ao nascer, ainda no hospital, e a suposta mãe passar a tratar o bebê a ela apresentado como seu filho natural, direcionando a ele, a esse filho trocado, todo o seu "amor de mãe".
Pois foi justamente pensando nisso que me veio o questionamento a respeito da possibilidade do amor de mãe poder não ser inato, mas naturalmente desenvolvido e construído. Diante de tal hipótese, pareceu-me, então, que "amor construído" pode não se diferenciar de qualquer outro amor que se dedica a alguém - ou seja, o amor que se tem por alguém pode ser tão forte quanto o amor que uma mãe tenha por um filho.
Conversei com seis mulheres a respeito da possibilidade da troca de filho desde o primeiro contato visual entre mãe e "filho" em um hospital, após o nascimento. Surpreendeu-me constatar que, para todas elas, a ideia do amor construído era pacífica - ou seja, tal entendimento superava a ideia do amor inato. E fui adiante nas minhas indagações. Todas elas mantiveram o entendimento de que o amor de pai pelo filho pode ser tão forte, ou igualmente construído, quanto o amor de uma mãe pelo filho que assumiu como sendo seu.
Se formos levar em consideração muitas das notícias que nos chegam, e que tratam da relação mãe/filho, é espantoso ver que há casos de agressão, violência, maus-tratos e negligência materna. E em assim sendo, o que poderia justificar isso? Desequilíbrio mental? Pobreza? Egoísmo? Amor "não desenvolvido"? Nesses casos, onde se situaria o "amor materno"? Não sei... Quando me dedico a pensar nessa e em tantas outras questões que envolvem a natureza humana, sinto-me dominado por um elevado grau de aflição diante da minha ignorância em relação a temas tão sensíveis.
Festa de entrada do rei Henrique II, Rouen, 01/10/1550. Pintor anônimo. Gravura em manuscrito da Biblioteca Municipal de Rouen. À esquerda, na figura, uma ilha montada com árvores e alguns indígenas; à direita, abaixo, uma representação de guerra entre povos indígenas(Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Festa-de-entrada-do-rei-Henrique-II-Rouen-1-o-10-1550-Pintor-anonimo_fig1_344062058
Para a promoção de um projeto de colonização francesa, no Brasil, cerca de cinquenta indígenas foram levados à França, em 1550, pelos navegadores franceses. Na cidade de Rouen, naquele ano, por ocasião da passagem dos Reis Henrique II e Catarina de Médici, foi organizada uma apresentação teatral às margens do Rio Sena, ao longo do qual foram montadas habitações indígenas. Encenava-se uma batalha entre nativos indígenas da colônia portuguesa na América, que apoiavam os franceses, contra outros nativos que não os apoiavam - encenação que resultava na vitória dos apoiadores da França. Essa encenação foi contada por Ferdinand Denis no livro "Uma festa brasileira em Rouen em 1550" (publicado em 1850). Cinco anos depois da "Festa brasileira em Rouen", em 1555, os franceses invadiram a Baía de Guanabara e ali estabeleceram a colônia da França Antártica - de onde foram expulsos em 1567.
Sempre que alguma leitura, alguma imagem ou alguma música me leva ao Geraldo Vandré, a sensação que me ocorre é de algo distante, de eco, de chamado, sem que eu consiga detectar a sua fonte… Fica um aperto no peito, com traços de angústia e de abandono… E penso que a composição musical é rica justamente quando promove um emaranhado de sentimentos e sensações. O violão, ao fundo, em composições do Geraldo Vandré, nem sempre parece acompanhar o canto. Contudo, é uma disparidade assim que transmite mensagens que a gente traduz por busca, procura, desencontro… e, às vezes, por desencanto.
"Tempo tempo tempo" - Foto: acervo pessoal (12fev25)
… troquei passos pelas ruas escuras, atento ao meu redor, ao movimento de estranhos, aos desenhos da minha própria sombra… Acelerei o passo… até chegar ao meu destino: Mariana Junqueira, 623. Pronto. Bauhaus. Ali dentro, em cores, rejuvenesci: vermelho, amarelo… casas, faces… azul, verde… o campo… a cidade… Arte! “Tempo tempo tempo” - exposição de arte montada pela ALARP (Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto).
Depois, no escuro das calçadas, reedificado…segui o meu caminho rodeado de pássaros, flautas, bandolins, rios, fontes, amigos, luar e abraços - que só eu conseguia enxergar.
Caetano Veloso - "Oração ao tempo"
https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA
“Compositor de destinos / Tambor de todos os ritmos / Tempo, tempo, tempo, tempo”.