terça-feira, 6 de dezembro de 2011

PONTOS DE REFERÊNCIA


(CLIQUE PARA OUVIR)
("Milonga del Angel", Astor Piazzolla)

     Do outro lado da rua, bem na direção do meu escritório, há três palmeiras imperiais bem altas. Quando me distraio olhando através da vidraça, é para elas que meu olhar se direciona. Essas três palmeiras sempre me trazem outras árvores que, em algum dia, em algum momento, já me serviram de referência.

     Eu me recordo que depois dos muros da minha escola primária, dando para cada uma das suas ruas laterais, havia duas árvores enormes. Não sei dizer se eram seringueiras... Sob suas sombras ficávamos aguardando o início de nossas aulas. Já eram antigas e enormes naquele tempo. Mirando as palmeiras e revendo na memória essas árvores da minha escola primária, o pensamento viaja:

Olha estas velhas árvores, mais belas
do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
vivem, livres de fomes e fadigas;
e em seus galhos abrigam-se as cantigas
e os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
agasalhando os pássaros nos ramos,
dando sombra e consolo aos que padecem!¹

("uma velha árvore na rodovia" - arq. pessoal, jun2010)

     Gosto de rever as árvores que me servem de referência. Ao revê-las tenho de volta tudo o que sua lembrança evoca e suscita. Há sempre comunicação e ensinamentos transformadores entre árvores e homens que observam.

     "Outoniza-te com dignidade, meu velho", concluiu uma amendoeira quando inspirava no Drummond o aprendizado de que "o outono é mais uma estação da alma que da natureza"

     Da mesma forma, quando o Rubem Braga percebeu que um pé de milho empendonou-se em retribuição a um gesto seu, observou com alegria³:

     "(...) não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador (...)."

     E flutuando assim, com o pensamento vagando pelas palmeiras, ressurge-me também a mangueira de tronco forte e galhos frondosos que havia no quintal de minha casa. Cuidávamos bem dela e brincávamos em seus galhos com laços de corda e balanços de madeira. Era com folhas e frutos que retribuía as atenções que a ela dedicávamos. Nas festas de aniversário nós a enfeitávamos de luzes, e sob seus galhos nós nos confraternizávamos com amigos e familiares. Provocada pelo vento, e em madrugadas chuvosas, eu louvava sua existência anunciada pelo barulho de suas folhas. Quando acordávamos nas manhãs que se seguiam, o chão forrado de folhas e frutos caídos evidenciava as batalhas que ela enfrentava para atravessar a noite ao nosso lado.

     As árvores que nos servem de referência têm o poder de congelar nosso tempo interior. De existência mansa e constante, elas acompanham nossa passagem como se  fossem depositárias de nossas histórias e de nosso tempo.

     Aos que me perguntam, situo meu escritório bem em frente às três palmeiras, como se não houvesse mais nada por ali que, estando vinculado a mim, pudesse servir de referência. Porém, explicando a um amigo onde estava situado meu escritório, surpreendi-me ao ouvi-lo concluir que ele se localiza no quarteirão da avenida onde há cinco bananeiras na esquina.

     Essa observação me encantou. Afinal, "árvore nova, histórias novas, vida nova!", pensei.

     Quantas árvores podem encerrar uma identificação relativa à nossa existência? A árvore simboliza a vida em si. Uma nova árvore representa um universo de novas histórias e identificações. Fui procurá-las. Minhas novas árvores. Eram pequenas. Nunca as havia notado. Fiquei contente ao ver que eram novas e que ainda vão crescer e dar frutos. Eu não imaginava que aquelas pequenas bananeiras na calçada de uma avenida de cidade grande poderiam servir de referência a algo relativo a mim.

     Pois agora eu as observo de longe, com atenção e cuidado, percebendo que um cacho de frutos está brotando de uma delas...

("Uma bananeira na esquina" - arq. pessoal, 05dez2011)

____________________________________ 
¹ - Olavo Bilac – “Velhas Árvores”
² - ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala Amendoeira. Rio de Janeiro, 10ª Ed., Record/1986
³ - BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas. Rio de Janeiro, 6ª Ed., Record/1986

RP, 06dez2011

Um comentário:

  1. Elias, realmente no Grupo Escolar tinham duas árvores centenárias, não eram seringueiras...Elas tinham na sua volta um banco feito de alvenaria!!! Uma delas era quase em frente ao bar da Dona Regina (melhor groselha do mundo!!! Que ótima recordação, meu amigo!!!

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