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(Vinicius e Toquinho - "Nature boy", Eden Ahbez)
De dentro do trem olhei para Londres com um aperto no coração. Imaginava a cidade sob o risco de bombardeio. Estranhamente, ao descer na plataforma, eu carregava a fantasia de que ouviria pelos alto-falantes vozes graves e austeras orientando os que chegavam a respeito das condutas a serem seguidas para que ficassem protegidos.
De mala nas mãos, pés nas escadas do trem, olhos nas estruturas do prédio e no movimento das pessoas apressadas, via-me, na porta daquele trem, prisioneiro ou fugitivo de um exército invasor. Chegavam-me sensações que não eram minhas, e que me transformavam em personagem de filmes assistidos e histórias lidas que retratavam uma outra época.
Sem me dar conta disso eu havia me colocado dentro de uma crônica escrita pelo Vinícius de Morais(1), e de cuja leitura, pelas imagens que suscita, gosto muito. Nela o Vinícius conta que foi para a Inglaterra no ano de 1938 na condição de primeiro brasileiro a receber bolsa de estudos para Oxford, proporcionada pelo Conselho Britânico. Antes de seguir para Oxford, contudo, ficou alguns dias em Londres. Ali, em uma época em que havia na Europa um clima de guerra, sentia-se muito isolado. Ele relata que, naqueles dias, aos vinte e quatro anos de idade e fechado em seu quarto, só tinha olhos medrosos para observar os pés da humanidade que passavam apressados pela janela do quarto de porão onde morava. Conta, ao final, que descobriu a segurança e a proteção do império britânico quando, numa tarde, ao tentar atravessar uma rua de Londres, sentiu uma pressão imperiosa e amiga da mão de um policial sobre seu ombro, para fixá-lo ao solo por alguns instantes, e para impedi-lo de atravessar no momento errado. Ele conclui dizendo que o policial, logo depois, retirou a mão de seu ombro, retribuiu seu sorriso de gratidão, e deixou-o livre para partir com segurança.
Com essas imagens soltas na cabeça, perguntava a mim mesmo quantas viagens uma pessoa pode fazer sem nem mesmo ter que deixar o lugar onde se encontra. Londres, Paris, Xangai, Beirute, Manaus ou Pioneiros... todos estes lugares, pensava, podem estar muito além ou exatamente dentro de cada um; pensava em momentos diferentes, em épocas diferentes que podemos experimentar quando deixamos o pensamento fluir: o momento do piloto quando despejou sobre Hiroshima a primeira bomba atômica, o momento de Cabral quando avistou o Brasil pela primeira vez... Quantas transformações podem nos ocorrer em um infinitésimo de segundo! Tornamo-nos mais humanos? menos amargos? mais dóceis e solidários?, menos hostis?... Os estímulos de vida nos remetem a muitos lugares, épocas e situações - reais ou fictícios. As descobertas, porém, decorrem da reflexão amadurecida, da nossa sensibilidade diante da realidade, e do nosso desejo de nos transformarmos em seres humanos melhores...
Foi aí que meu guia e anfitrião, Kelvin, assim como o policial na crônica do Vinícius, trouxe-me de volta à realidade segura, cordial e planejada pelos ingleses. Estávamos em King’s Cross Station, era 26 de setembro de 2011, e o relógio marcava 05:44 horas da tarde.
- “Welcome to London!”, disse-me ele com um sorriso no rosto e um tapinha de boas vindas no meu ombro.
- “Thank you, my friend!”, respondi com entusiasmo e admiração.
Olhei com meus próprios olhos para aquelas pessoas à minha frente e para a grandiosidade da estrutura metálica da estação: eu estava chegando em uma cidade repleta de símbolos, histórias e significados a serem desvendados.
De volta à realidade, sem, contudo, naquele momento, poder compartilhar com meus entes queridos as descobertas que estavam apenas começando a acontecer, eu estava feliz. Muito feliz.
(Eu, em um trem - setembro, 2011- arq. pessoal)
(1) “Porque amo a Inglaterra” - publicada em “Vinícius de Moraes – poesia completa e prosa” – Ed. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1985
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