Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Comparando os planos que fazia em anos passados com aqueles que em anos recentes passei a fazer, percebi que foram grandes as transformações que me ocorreram - todas elas promovidas pelo simples passar do tempo.
Hoje quero apenas estar em paz comigo mesmo; quero conseguir levar alegria para o coração daqueles que de mim se aproximarem ou que de mim tiverem notícia.
E, já ultrapassando o limite dos meus quereres, quero poder me colocar em silêncio, observar as coisas ao meu redor, e ter a capacidade de enxergar beleza em cada pessoa, em cada gesto, em cada manifestação de vida.
Aos meus amigos, familiares e leitores, desejo saúde e muitas felicidades no ano novo.
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("Wave", do Tom Jobim - Eu e minha filha Lígia - dez/14 - Foto: arq. pessoal)
Nesses dias que antecedem o Natal e o Ano Novo não só eu, mas todos nós, recebemos muitas mensagens. Fico muito contente e sensibilizado com cada uma delas, e sinto-me endividado com cada pessoa que me lembra de mim e me envia algumas palavras. Tento retribuir o carinho, dizer do quanto elas me fazem bem; mas nem sempre consigo ir além da intenção. E, por tal motivo, carrego uma baita dívida de afetos com uma porção de gente - que tento compensar nos meus gestos ao longo do ano.
Mas mesmo que procure uma forma, não sei como retribuir palavras que me são enviadas por uma pessoa jurídica - uma firma comercial - de forma impessoal e impressa - inclusive na assinatura (quando assinadas). Não consigo detectar nelas nenhum afeto sincero, posto que não há ali pessoalidade alguma.
Fico me imaginando na fila de uma agência bancária, por exemplo, aguardando pacientemente minha vez de falar com o gerente (ou a gerente) da minha conta (que eu sinceramente não sei quem é) para poder manifestar meu agradecimento e retribuir o abraço enviado e os votos de feliz Natal. Imagino que aguardaria na fila por muitos minutos até poder ser atendido. E, chegada a minha vez, eu o ouviria me desejar bom dia. Retribuindo o "bom dia", eu logo começaria por me apresentar:
- "Meu nome é Elias; e sou cliente desta agência".
Na sequência, sem esperar o término de minhas explicações iniciais, e para poder certificar-se da veracidade delas, certamente ele me perguntaria se tratava-se de conta-corrente ou poupança - e qual seria o número.
E depois de verificar pelo computador a idoneidade de minhas primeiras informações, do outro lado da mesa ele me dirigiria um olhar interrogativo buscando saber o motivo de eu o estar procurando. Eu diria com franqueza que havia recebido um Cartão de Natal de sua empresa, e que, por não saber quem havia se lembrado de mim ali, como gesto de agradecimento, queria retribuir o abraço que me havia sido enviado por intermédio dele. Imagino que o gerente não conseguiria deixar de ser protocolar ao me agradecer. E continuaria aguardando, desconfiado, que eu entrasse logo no assunto de minha visita. Percebendo suas mensagens gestuais, eu diria que não estava ali para falar de dinheiro; que a visita devia-se simplesmente ao desejo de retribuir o abraço de Feliz Natal. E, já me levantando da cadeira, solicitaria a ele que também fizesse o mesmo para que pudéssemos nos abraçar em sinal da harmonia e da paz pregadas pelo aniversariante de 24 de dezembro.
O que será que aconteceria? Será que eu seria atendido?, será que eu seria encaminhado para um outro departamento onde haveria alguém com a função única de receber de clientes abraços em retribuição?, ou será que eu seria tratado como um imbecil diante da enorme fila de pessoas afobadas para falar com o gerente?
- "Não sei; ou quase sei..."
Quando uma mensagem de Natal ou Ano novo nos é enviada por uma pessoa jurídica, não é o homem sensibilizado e dotado de sentimentos que age: é um ente fictício que o faz por intermédio de uma lista de clientes. E nós, os clientes de número xis ou ípsolon - os destinatários - somos simplesmente mais um. Por tal motivo, as palavras impressas em cartões enviados por pessoas jurídicas, ao contrário de estarem envoltos em honestidade, chegam carregados de motivações comerciais e padecem de afeto sincero. Mensagens assim acabam por ser apenas um ato de publicidade, de interesse, para que a marca e o nome da empresa vençam as concorrentes mantendo o consumidor para o ano seguinte.
Tomado por esses raciocínios caóticos, a verdade é que creio que toda mensagem em Cartão de Natal e Ano Novo deveria ser pessoal, com destinatário específico - e de preferência manuscrita. Pelo menos a assinatura! Mesmo que fosse enviada com atraso.
Quando penso essas tolices fico achando que Deus - que está em toda parte - fica sentado no sofá da sala de casa olhando para mim e, com um sorriso de sabedoria, chacoalhando a cabeça da esquerda para a direita, tenta fazer com que eu deixe de escrever besteiras; que ele já nem liga mais para o uso e abuso mercadológico e comercial que tem sido feito em seu nome e em nome de seu filho.
Assim que entrei em casa no começo da noite recebi uma mensagem da minha esposa, via whatsapp, me avisando que ia se atrasar para o jantar.
Fui até a sacada do apartamento e, do oitavo andar, olhei a cidade viva e reluzente com as luzes de Natal. Desci pelas escadas e, caminhando devagar, tomei o rumo das ruas do centro. Queria ver a celebração da alegria nessas semanas que antecedem o Natal; ver as pessoas caminhando, viajar nas suas histórias pessoais contadas pela expressão de seus olhares e pelos sulcos em suas faces.
Nas lojas os anúncios luminosos enfeitavam a noite e faziam convites insistentes para a compra de aparelhos de som, ipods, iphones, geladeiras, televisores, computadores, impressoras, e tudo o que se pode imaginar. Os casais, as crianças, as famílias, entravam nas lojas, examinavam os produtos em oferta, conversavam, observavam, ficavam pensando...
Entrei também em uma delas. Era uma grande loja de computadores. Porém não consegui enxergar nada do que estava exposto. A loja havia se transformado no quartinho de despejo do fundo do quintal de minha casa de menino, onde ficavam amontoadas e empoeiradas as velharias da família - um arquivo de madeira, pilhas de jornal, revistas de esporte, coleções de gibis, jogos de botão, uma pequena árvore de Natal, pinceis de pintura, cadernos e livros escolares, carrinhos de corda, uma caixa de engraxate, um violão quebrado, um quadriciclo de latão vermelho que imitava um jipe, um autorama desmontado, uma bicicleta sem corrente, uma vitrola, discos de vinil... e o cheiro de coisa antiga.
Sem querer eu estava remexendo nessas coisas guardadas na memória, pelo simples prazer de reviver o que cada uma delas, um dia, representou para mim...
(Em casa, 1962 - foto: arq. de família)
Abandonados naquele quartinho de
despejo, cada um daqueles objetos me completava a cada vez que eu os
visitava. Mesmo depois de crescido, a simples lembrança de que eles permaneciam lá amontoados fazia bater forte o
meu coração.
E ali, naquela hora, naquela loja, enquanto os aparelhos modernos gritavam "compre, compre, compre", eu só conseguia ouvir as coisas empoeiradas me perguntando tristemente:
- "Por onde tem andado?"
Hoje, no quartinho de despejo, aqueles objetos já não estão mais. Contudo, imaterializados, permanecem na minha lembrança.
Foi então que uma vendedora aproximou-se de mim, mostrou seu sorriso treinado, e me perguntou:
- O senhor já fez o seu pedido para o Papai Noel?
E eu, que já me dirigia para a porta de saída, parei para lhe responder com toda franqueza e seriedade:
- Já sim. Mandei um recadinho ao meu amigo invisível pedindo um pequeno aspirador de pó.
E completementei:
- Estou precisando limpar uma porção de coisas que enchem de alegria o meu coração.
Percebi que ela ficou calada e séria ao ouvir minhas palavras. Envergonhado e sem jeito por ter apagado do seu rosto aquele sorriso, tomei o rumo da porta de saída. Já com os pés na calçada olhei para trás e pude vê-la acenar com os braços, sorrindo um outro sorriso e me dizendo com naturalidade:
Quando ouço "Pois é, prá quê?", fico com a impressão de estar passivamente folheando um jornal. A letra traz cenas do cotidiano e inquietações humanas que, de tão comuns, apesar de intensas, não pintando novos quadros, mantêm vivos aqueles que me foram pintados décadas atrás. Passa o tempo, são desenvolvidas novas tecnologias, mas o homem continua o mesmo - eu continuo o mesmo. E isso me angustia.
De alguma forma essa música mexe comigo.
Quando a ouço, na interpretação do MPB-4, sinto, no peito, um aperto que não sei descrever. Talvez seja pela sensação de angústia, de descaso, de conformismo, que o MPB-4 consegue transmitir em cada estrofe. Pois tudo isso ocorre ao mesmo tempo em que a vida vai passando e o desejo de transformar vai ficando adormecido. Essa indiferença, aliada à luta acomodada na "revolta latente", é o que incomoda.
Quando ouço "Pois é, prá quê?" me lembro do seu autor - o Sidney Miller - e da sua história. Eu ainda era menino. Ele surgiu como compositor, envolvido em festivais; compôs trilhas sonoras para peças teatrais e cinema. Lembro-me também - e especialmente - dos paralelos que foram traçados entre ele e o Chico Buarque, no início da carreira de ambos.
Ouço a música e me entrego à "revolta latente" estampada nos primeiros anos de compositor do seu autor; termino por assistir, ressentido, a descrença por ele assumida no final de sua vida.
(Sidney Miller - fonte: http://www.famososquepartiram.com/2012/09/sidney-miller.html)
Tudo isso vai se diluindo no meu pensamento à medida que, entrando pelo meu coração, a música me consome por inteiro e se desvanece... na fumaça de um cigarro que não fumo.
A voz grave, determinada e forte do cantor que interpreta "ciao amore ciao" faz dessa música uma de minhas favoritas. Mas por muitos anos eu a ouvi e cantarolei sem conhecer sua letra e autoria.
Foi recentemente que, montando uma coletânea de músicas italianas, cheguei ao autor e à sua história. Luigi Tenco, italiano, compôs "ciao amore ciao" para concorrer no festival de San Remo de 1967. Nele, ele e Dalida - cantora de origem egípcia - a interpretaram.
A música não foi classificada para as finais do festival - o qual teve como vencedora "Non pensare a me", com Claudio Villa e Iva Zanicchi.
Em "Ciao amore ciao" Tenco nos fala de alguém que vive no campo, cuidando da terra, da plantação e da colheita.
Il grano da crescere, (o grão para crescer) I campi da arare (os campos para arar)
("Homem com enxada" - Jean-François Millet, 1840 - fonte: http://www.estudosdotrabalho.org/RevistaRET06.htm)
Que, em cada um dos dias vividos lá, a vida se resume em olhar o ceu para tentar saber se vai chover ou fazer sol,...
Guardare ogni giorno, (olhar cada dia)
se piove o c'è il sole (se chove ou faz sol)
... pois as condições do tempo determinam se se vai viver ou morrer.
Per saber se domani (para saber se amanhã)
si vive o si muore (se vive ou se morre)
E um dia, atormentado com essa angústia, esse homem do campo resolve dar um basta e ir em busca de uma outra realidade.
E un bel giorno dire basta, (e um belo dia dizer basta) e andare via (e ir embora)
Por imperiosa necessidade de mudar, ou por simples desejo de atender suas fantasias, ele vai embora. Caminha por mil estradas; desconhece tudo.
E poi mille estrade, (e depois de mil estradas) grigie comme el fumo (cinzentas como a fumaça)
O que encontra é um mundo de luzes para o qual se sente despreparado. Vem-lhe o vazio.
en um mondo di luci (em um mundo de luzes)
sentirsi nessuno (sentir-se ninguém)
Nessa busca ele percebe todas as mudanças que ocorreram em um só dia,...
Saltare cent'anni (saltar cem anos) in un giorno solo (em um só dia)
... desde os meios de locomoção no campo, até aos aviões no céu.
Dai carri dei campi, (das carroças dos campos) agli aeri nel cielo (aos aviões no céu)
Percebendo essa transformação abrupta ele se sente perdido; sente que não é ninguém e que nada sabe fazer... em um mundo que sabe tudo.
Non saper fare niente, (não saber fazer nada) in un mondo che sa tutto (em um mundo que sabe tudo)
("Homem carregando uma pá em um subúrbio de Paris" - Van Gogh, 1887 - FONTE: http://www.wikiart.org/en/vincent-van-gogh/man-with-spade-in-a-suburb-of-paris-1887)
Se analisarmos atentamente essa letra, até aqui, vemos que ela fala muito da realidade de todos nós. Ela mostra o sentimento de insignificância que temos em relação às coisas que rotineiramente fazemos; mostra a sensação de vazio e impotência que com frequência sentimos, além de nos mostrar, também, os movimentos que desenvolvemos em busca de novos estímulos.
Porém os novos caminhos que nos aparecem, em geral e à princípio, pela insegurança que representam, nos metem medo. E o primeiro impulso costuma ser o de abandonarmos as novas ideias e retornarmos ao estado de comodidade.
E isso, precisamente, o autor colocou na letra da música: a vontade inicial de voltar para o estado anterior; para um estilo de vida que pretendia abandonar.
e aver voglia di tornare da te (e ter vontade de voltar para ti)
O autor diz que as condições financeiras daquele homem do campo são o primeiro obstáculo que ele encontra para poder retornar - pois nem para isso tinha dinheiro.
e non avere un soldo, (e não ter dinheiro) nemmeno per tornare (nem mesmo para voltar)
Ao que me parece, o que deve ter ficado por trás de tudo foi a autoestima daquele homem - que, tudo indica, não suportaria assumir seu fracasso.
Por fim, abalado com a constatação de sua realidade e de seu orgulho, ele se despede. Primeiro, da vida que havia ficado para trás....
Ciao amore ciao...
... para depois, em fusão de realidade com ficção - que ora faço -, despedir-se das ilusões e da própria vida.
Ciao amore ciao.
Na mesma noite em que recebeu a notícia de desclassificação de sua música Tenco foi encontrado no hotel onde estava hospedado. Tinha 28 anos de idade. Estava morto. As investigações concluíram por suicídio.
Foi-se o autor; ficou a sua voz
nos discos e gravações que fez; ficou a belíssima música
desclassificada... que nasceu no coração de um jovem poeta que não deu
tempo para que o tempo pudesse lhe mostrar que sua música havia nascido
para se tornar um grande clássico da música popular italiana.
Se pensarmos na história do Luigi Tenco e de sua música, vamos ver nela descritas as muitas lutas que travamos no curso de nossos dias. E vamos então compreender que fracassos e desilusões fazem parte delas, mas
que não podem ser considerados fatores determinantes de nossa vida ou
morte. Para isso necessitamos de equilíbrio e maturidade para aprender, superar e
prosseguir, aceitando os desacertos como possibilidades de aprendizado. Não há nada mais
sensato que o tempo para avaliar nossos feitos.
Ciao Amore Ciao
La solita strada, bianca come
il sale
Il grano da crescere, I campi da arare
Guardare ogni giorno
Se piove o c'è il sole
Per saper se domani
Si vive o si muore
E un bel giorno dire basta e andare via
Ciao amore
Ciao amore, ciao amore ciao
Andare via lontano
A cercare un altro mondo
Dire adio al cortile
Andarsene sognando
E poi mille strade
Grigie come il fumo
In un mondo di luci
Sentirsi nessuno
Saltare cent'anni
In un giorno solo
Dai carri dei campi
Agli aeri nel cielo
E non capirci niente
E aver voglia di tornare da te
Ciao amore
Ciao amore, ciao amore ciao
Non saper fare niente
In un mondo che sa tutto
E non avere un soldo
Nemmeno per tornare
Ciao amore
Ciao amore, ciao amore ciao
Ciao amore
Ciao amore, ciao amore ciao
Tchau Amor, Tchau
A sólita estrada branca como o
sal,
O grão para crescer os campos para arar.
Olhar cada dia
Se chove ou faz sol,
Para saber se amanhã
Se vive ou se morre.
E um belo dia dizer basta... E ir embora.
Tchau amor,
Tchau amor, tchau amor tchau.
Ir embora, longe
Buscar um outro mundo,
Dizer adeus ao pátio
Se ir embora sonhando.
E após mil estradas
Cinzentas como a fumaça,
Num mundo de luzes
Sentir-se ninguém.
Saltar cem anos
Num só dia,
Dos carros nos campos
Aos aviões no céu.
E não entender nada
E ter vontade de voltar para ti.
Tchau amor,
Tchau amor, tchau amor tchau.
Não saber fazer nada
Num mundo que sabe tudo,
E não ter um dinheiro
Nem mesmo para voltar. Tchau amor,
Tchau amor, tchau amor tchau.
Tchau amor,
Tchau amor, tchau amor tchau.