quinta-feira, 10 de novembro de 2016

IDEIAS ABSURDAS


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
(e assista depois de ter lido)
(Pink Floyd - "The Wall" - fonte: https://www.youtube.com/watch?v=fvPpAPIIZyo)


     A eleição do Trump conta muito do que anda rolando nas mentes dos cidadãos norte-americanos e dos cidadãos de muitos outros países. Em sua campanha eleitoral o Trump propagou a xenofobia, a segregação, a homofobia e o nacionalismo exacerbado. Pelo menos, salvo melhor juízo, foi isso que entendi de suas manifestações. Mas, movido pelo lema "make America great again"*, temos que admitir que foi autêntico em suas falas.


(Fonte: http://thehill.com/blogs/ballot-box/gop-primaries/271330-trump-wins-georgia-super-tuesday)

     Sua proposta vencedora, traduzida por muros que segregam e decretos que expulsam, trouxe um forte indício de intolerância. Uma política assim nada mais é do que a representação de uma tendência isolacionista que paira sobre as chamadas grandes potências mundiais. Tal ocorreu com o plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Européia; tal tem ocorrido na França com a propagação das ideias conservadoras de Marine Le Pen, e na Rússia de Putin.

     Pelo andar da carruagem o mundo dito globalizado está propenso a abrir-se no trânsito de mercadorias, mas a fechar-se em compartimentos que dificultam a integração e a convivência pacífica de pessoas de diferentes origens e credos. Essa propensão, indiscutivelmente, só pode ter o ódio como consequência. Parece que estão querendo que o homem seja tomado como um produto industrial, nascido de um mesmo processo de estampagem, com o mesmo desenho, a mesma pintura, as mesmas dimensões, o mesmo tratamento térmico - e o mesmo potencial de consumo.

     Mas não somos peças. Somos seres com origens e formações culturais diversas. Essa pequena ideia já é suficiente para compreendermos que precisamos saber respeitar as diferenças, aceitar e conviver em harmonia com toda espécie de diversidade. Estendendo a proposição de Sérgio Buarque de Hollanda**, pelo simples fato de habitarmos o mesmo planeta, entendo que "ninguém está investido de poder algum para fazer com que sejamos seres desterrados aqui na Terra" - seja na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, na Síria, no Brasil, ou em qualquer lugar no mundo.

     Do contrário, e se assim o permitirmos, no controle de qualidade do processo de fabricação chegará um dia em que cada um de nós será descartado coercitivamente do lote produzido e sepultado na vala dos mortais, ouvindo a ideia absurda de que somos peças estampadas em desconformidade com o projeto padrão.

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*faça os Estados Unidos grande novamente
**"somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra" - Sérgio Buarque de Hollanda. "Raízes do Brasil" - Ed. Companhia das Letras, 26ª Ed., 1995 - pg. 31

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

OBLIVION*


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
("Oblivion" - Astor Piazzolla)
https://www.youtube.com/watch?v=dF-IMQzd_Jo

"A vida é suficientemente longa,
e com generosidade nos foi dada
para a realização das maiores coisas
se a empregamos bem."
(Sêneca)


     No espaço aéreo da cidade grande, enclausurado no apartamento onde vivo, fico olhando o lustre no teto.


("O lustre" - foto: arq. pessoal)

     Do teto às janelas; delas, às janelas dos prédios vizinhos. Algumas delas abertas, porém sem nenhum sinal de vida. As horas que se vão passando carregam consigo a sensação angustiante de desperdício de tempo.

     Qualquer ruído, qualquer som, alguma voz que eventualmente ouvisse poderia me servir de estímulo para alguma busca. Nada ouço, porém.

     De súbito o acionamento de uma válvula de descarga de algum apartamento do prédio e o fluxo de água pela tubulação dão sinais de vida. Esses barulhos distantes, quase imperceptíveis, preenchem tanto o meu vazio quanto o meu silêncio.

     Penso no casal que vive no apartamento imediatamente acima do meu. Octogenários aposentados desde longa data, ele, médico neurologista, ela professora de piano. Nunca os visitei. Nas poucas vezes que nos vimos no elevador nós nos cumprimentamos e sorrimos. Quando penso neles eu os imagino sentados em suas poltronas, um ao lado do outro, esperando, quase adormecidos. Moram sós. Não tiveram filhos.

blog old couple holding hands
(Fonte: http://graceburrowes.com/blog/2015/09/play-it-where-it-labels/)

     O barulho de água fluindo pela tubulação acendeu-me o desejo de levar a eles a possibilidade de um pensamento bom, a lembrança de um momento feliz. Instintivamente vou buscar minha caixinha de som, abro a janela da sala, e com o aparelho suspenso pelas minhas mãos para o lado de fora aciono a tecla PLAY. Retiro das profundezas do esquecimento o bandoneon do Astor Piazzolla. Quero que o suspiro de seu fole encha de vida os pulmões viventes no apartamento dos meus vizinhos. Desejo imensamente que eles consigam ouvir a música que, pensando neles, pus para tocar; desejo que, ao ouvi-la, seus corações se aqueçam; que, despertando de seu suave cochilo, animem-se em dizer um ao outro: "alguém ouve música". Que sorriam diante da simplicidade dessa ideia, que estendam as mãos um para o outro, e com toques de carinho relembrem histórias de amor que ficaram guardadas nas gavetas do tempo.


*Oblivion - (do inglês) esquecimento, adormecimento, abandono.