quinta-feira, 4 de maio de 2017

BELCHIOR: TUDO OUTRA VEZ


ESCLARECIMENTO INICIAL:
Com a morte do Belchior fiquei me lembrando de uma noite, há muitos anos, quando, após uma apresentação sua, fui ao camarim e pude conversar rapidinho com ele. Dessa conversa guardei a impressão de que havia estado diante de um intelectual, um homem inquieto, que precisava estar em constante mudança para poder ser feliz. Não estranhei quando, em 2009, a mídia noticiou seu sumiço e posterior localização em uma pousada no interior do Uruguai: para mim, ele ainda andava em busca de sua felicidade. Agora, com sua morte, imaginei-o ainda solto pelo mundo, mas comunicando-me que, em algum momento, havia se encontrado. Nesse comunicado fictício que me faz, por carta, ele conta que está voltando para suas raízes -  onde assumidamente pode se encontrar e ser  feliz.


(Fonte - http://www.controversia.com.br/blog/2016/09/18/o-belchior-que-a-critica-vulgar-nao-viu/)


Paris, Maio de 2017

Meu querido amigo:

     O tempo passou mais depressa do que eu imaginava. Passou voando. Ele - o tempo - deveria ter piedade de nós e tratar de nos dar mais tempo para podermos compreender cada manifestação de vida, de cultura e arte que surge em nosso caminho. Pois mesmo depois de tantos anos, parece que foi ontem que deixei o Brasil para poder me procurar aqui na Europa. 

     Com o carinho de alguém que tem saudade de um amigo distante, enviei a você muitas mensagens e fotos via whatsapp. Passei a maior parte dos meus dias aqui em Paris, mas, não resistindo à proximidade dos locais em relação às nossas distâncias brasileiras, rodei por Versalhes, Rennes, Marselha, e outras cidadezinhas francesas, estendendo ainda as viagens para Florença, Barcelona, Bruxelas, Bruges, Amsterdã, Haia, Londres, Berlim, Viena, Budapeste, Praga, Atenas e muitas outras. 

     Todas as coisas que vi e fiz durante essa procura agora moram apenas nas minhas lembranças. O Portão de Brandemburgo, o museu da Anne Frank, as conversas na livraria em frente à "Science Po", as ruas de Bruges, o Partenon em Atenas, a cidade de Paris vista das escadarias de Sacre-Coeur, os vendedores ambulantes nas imediações da Torre Eiffel, os percursos de bicicleta do studio onde me hospedei até à universidade, as pessoas nas ruas, os artistas em frente aos pontos turísticos, as conversas com amigos e tudo o que vi estão comigo estando eu onde estiver.

     Há poucos dias, me procurando sozinho pela República Tcheca, vi o sol nascer de uma poltrona de ônibus. Pela janela, margeando a estrada estreita, um imenso campo de girassóis encheu o meu coração de verde e amarelo, de alegria, de encanto - e de saudade do Brasil.


(Fonte: http://lifeglobe.net/entry/7418)


     Promover buscas por intermédio de viagens é muito bom; porém fica melhor ainda quando temos alguém com quem compartilhar a emoção que sentimos no exato instante em que vemos algo que nos toca e nos transforma. A gente, assim, feito exilado, tem muito tempo para ficar pensando. E, se pensamos com o coração, descobrimos o valor e o sentido de nossas raízes, da família, dos amigos, e ainda "de quebra" podemos pelo menos tentar traçar nosso próprio destino. Pois foi nesse despertar que senti que era hora de voltar.

     Outra noite, depois disso, ainda aqui em Paris, bebendo e ouvindo música com um grupo de brasileiros, falando sobre distâncias e ausências, buscas e perdas, a saudade bateu forte. Precisava mesmo retornar ao meu país - à minha identidade. Como em um insight, o papo idealista de brasileiros em uma pequena sala estrangeira me despertou e me mostrou que, mesmo com tantas procuras, há um tempo em que a vida nos chama para nos aquietarmos em nosso lugar - e que o universo maior não é físico.

     É certo que andei perdido. Hoje sei que dentro de mim está todo o universo, e que somente em mim mesmo posso me encontrar. Pois então escrevo para te contar que estou voltando. Que preciso voltar. Chego no dia vinte, sexta-feira, onze da manhã, em Guarulhos. Gostaria de te ver logo no desembarque. Quero poder te abraçar, conversar contigo, te mostrar minhas novas composições, e ouvir de ti suas impressões a respeito delas.

     Por ora, distante e com frio, fico na expectativa de podermos nos rever. Receba um grande abraço meu com o entusiasmo de um homem que, despertando de um longo desencontro, aos setenta anos se sente renascer.

     Belchior

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(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
ACOMPANHANDO A LETRA)
"Tudo outra vez" - Belchior
fonte: https://www.youtube.com/watch?v=uUiycm1Mi-I

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TUDO OUTRA VEZ
(Belchior)

Há tempo muito tempo que eu estou longe de casa
E nessas ilhas cheias de distância
O meu blusão de couro se estragou
Ouvi dizer num papo da rapaziada
Que aquele amigo que embarcou comigo
Cheio de esperança e fé, já se mandou

Sentado à beira do caminho pra pedir carona
Tenho falado à mulher companheira
Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil
E um cara que transava à noite no "Danúbio azul"
Me disse que faz sol na América do Sul
Que nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil

Minha rede branca, meu cachorro ligeiro
Sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro
O fim do termo "saudade" com o charme brasileiro
De alguém sozinho a cismar
Gente de minha rua, como eu andei distante
Quando eu desapareci, ela arranjou um amante
Minha normalista linda, ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar

Até parece que foi ontem minha mocidade
Com diploma de sofrer de outra Universidade
Minha fala nordestina, quero esquecer o francês
E vou viver as coisas novas, que também são boas
O amor/humor das praças cheias de pessoas
Agora eu quero tudo, tudo outra vez

Minha rede branca, meu cachorro ligeiro
Sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro
O fim do termo "saudade" com o charme brasileiro
De alguém sozinho a cismar
Gente de minha rua, como eu andei distante
Quando eu desapareci, ela arranjou um amante
Minha normalista linda, ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar

8 comentários:

  1. Cara, que belíssima homenagem ao nosso Bob Dylan. Obrigado. Abraços.

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    1. Obrigado, Beto. Fico contente que tenha gostado. Seja sempre bem vindo ao blog.

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  3. Que beleza! Elias/Belchior falou bonito demais.

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    1. Obrigado, Saint-Clair. Fico contente que tenha gostado.

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