sexta-feira, 28 de julho de 2017

GUARÁ, 1968: A ELEIÇÃO MUNICIPAL QUE EU VI


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
Elis Regina - "Sábiá", de Chico e Tom
vencedora, nas vozes de Cybele e Cynara, do FIC - Festival Internacional da Canção de 1968


Aos "turquinhos" de Guará


     Com a "revolução" de 1964, sob o pretexto de reorganizar o país, os Comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, e ainda o Presidente da República, com respaldo do então chamado Conselho de Segurança Nacional, passaram a editar "Atos Institucionais". De 1964 a 1969 foram editados dezessete deles: todos colocados hierarquicamente acima das demais leis - acima da Constituição, inclusive.

     O Ato Institucional nº 2, de outubro de 1965, além de instituir a eleição indireta para Presidente da República, dentre outras disposições, extinguiu os partidos políticos então existentes e deu as diretrizes para a fundação de novos. Logo em seguida foram criados a ARENA* e o MDB**. A ARENA, para dar apoio ao governo militar, e o MDB para maquiar a falta de democracia no Brasil e fantasiar alguma oposição ao regime militar.

     Em Guará, com a proximidade das eleições municipais de 1968, as forças tradicionais da cidade se aliaram, seguiram os propósitos do governo chamado revolucionário, e fundaram a ARENA. Por outro lado, um pequeno grupo de idealistas que se reunia no lendário "Bar do Zé Berto" decidiu fazer oposição ao regime instituído, e fundou o diretório municipal do MDB. E foi assim que, para as eleições municipais de 1968, em Guará, ARENA e MDB lançaram seus candidatos - tanto à Câmara Municipal quanto à chefia do Executivo.

Frequentadores do "Bar do Zé Berto", na década de 70 (em seu segundo endereço)
foto do arquivo do Dr. Marco Antônio Migliori no facebook

     Em virtude do MDB guaraense, naquela eleição, estar sendo apoiado pela maioria dos descendentes de imigrantes árabes na cidade, a sua candidatura ficou apelidada de "ala dos 'turquinhos'" - pois era essa a forma costumeira de se referir aos imigrantes sírio-libaneses e seus descendentes.

 Propaganda política do candidato do MDB na eleição municipal de 1968
em Guará/SP - detalhe de foto cedida por Lígia Cavasini

     De minha casa, pela rádio AM de Ituverava - comarca onde era procedida a apuração - acompanhei a contagem dos votos. O resultado não causou surpresa alguma: a ARENA saiu vitoriosa, tanto no Executivo quanto na composição da Câmara Municipal. Aos "turquinhos" do MDB, em um universo de cerca de quatro mil eleitores, couberam contados 714 votos para a chefia do Executivo - e apenas um vereador eleito (o saudoso professor Maneco Chaud, que hoje dá nome ao plenário da Câmara Municipal).

     Guardo ainda lembranças da noite seguinte à conclusão da apuração dos votos, e do raiar do dia seguinte: minha casa amanheceu literalmente bombardeada por cebolas - um dos símbolos, no Brasil, da culinária árabe -; e o monumento ofertado pelos libaneses à cidade de Guará, na Praça Nove de Julho, repleto de tocos de velas que foram consumidas durante a noite - simbolizando um funeral aos imigrantes sírio-libaneses.


Imigrantes libaneses, em 15/09/63,  no descerramento da placa
no monumento ofertado pelos Libaneses à Cidade,
foto do arquivo de Náufal Mourani e irmãos -


Monumento à Cidade de Guará, ofertado pelos libaneses - foto: arq. pessoal
reinaugurado em 10/05/08 - Pref. Dr. Marco Aurélio, gestão 2005/2008

     Para mim, particularmente, as eleições foram desastrosas: além da chateação pela derrota que eu via latente na expressão de muitos "turquinhos" que conhecia bem e com quem convivia, acabei ficando sem meu cachorro pequinês, sem minha bola de couro, e sem minha bicicleta - furtados que foram naquela noite durante as comemorações dos apoiadores dos candidatos eleitos.

     E os nossos anos de chumbo estavam apenas começando.

     Logo depois, em dezembro do mesmo ano, foi editado o Ato Institucional nº 5, em consequência do qual o Presidente da República ganhou poderes para decretar intervenção nos Estados e Municípios, suspender direitos políticos de quaisquer cidadãos, cassar mandatos eletivos em todos os círculos de poder, e, decretando seu recesso, assumir as funções legislativas do Congresso. Jornais foram censurados, livros e obras considerados subversivos foram retirados de circulação. Muitos artistas e intelectuais foram forçados a se exilar no exterior, levando, desde a partida, a esperança de poder voltar - tal como ficou retratado na belíssima letra de "Sábia"***, vencedora do Festival Internacional da Canção daquele ano.

     Não sei dizer se algum guaraense, forçosamente, teve que deixar o Brasil. Tampouco me aventuro a querer explicar o destino que foi dado ao MDB. Só sei que desde então, até meados da década de 80, passei a ser veladamente aconselhado a evitar o questionamento sobre qualquer assunto que dissesse respeito ao governo do meu país.

___________________________________
*ARENA - Aliança Renovadora Nacional
**MDB - Movimento Democrático Brasileiro
***SABIÁ - música composta por Chico Buarque e Tom Jobim


SABIÁ
(Chico Buarque e Tom Jobim)

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

quinta-feira, 20 de julho de 2017

OLÁ, COMO VAI?


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Chet Baker - "Almost blue"
https://www.youtube.com/watch?v=z4PKzz81m5c


     Eis-me aqui, meu amigo, de olho em você, que me aparece bem ao lado direito da tela do meu computador. Sua foto me conta que estás bem. Nela você sorri. Seu sorriso me alegra. Ao lado de sua foto o sinal verde me diz que estás acessível. Sinto-me motivado a enviar-lhe uma mensagem dizendo que estou contente por vê-lo. Detenho-me por um instante. Fico olhando seu rosto sorridente com as marcas dos ensinamentos trazidos pelo tempo: 

     - "Já não somos mais jovens..." - penso.

     Os minutos se sucedem e continuo te olhando. Penso no quanto ficaria contente se subitamente surgisse em minha tela alguma mensagem sua endereçada a mim. Certamente aí onde você se encontra o sinal que indica meu status, ao lado de minha foto, também lhe diz que estou acessível. Apesar de distantes no tempo e no espaço estamos acessíveis um ao outro.

     Outros minutos foram consumidos e continuo ansiando por uma manifestação sua, alguma mensagem, qualquer coisa pessoal, que me conte de você, que me fale de seus projetos e de suas aflições... que pergunte de mim...

     Esboço no espaço de mensagens a minha saudação: "Olá, como vai?" Ao mesmo tempo me vem o receio de parecer ridículo e inconveniente por puxar papo em um dia útil, por incomodá-lo no seu trabalho. Crescemos juntos. Hoje somos dois senhores amadurecidos, responsáveis e atarefados. Apago o meu rascunho e permanecemos assim, eu e você, acessíveis, sem nada dizermos. Permanecemos "on"... estamos silentes...

     Retomo os compromissos do meu trabalho com a intenção de continuar a fazer o que é preciso que seja feito. Mas não consigo parar de pensar no nosso silêncio.

     - "Estávamos acessíveis... nada dissemos..." - fico pensando.

Тени мужчин
Fonte - https://ria.ru/incidents/20131022/971709860.html

     Nada tínhamos a dizer? Estamos anestesiados? Não nos importa saber o que temos feito de nossas vidas? Houve um tempo em que éramos tão próximos, tão amigos, conversávamos todos os dias...

     Sim, há muito o que ser dito e conversado!

     Decidido a te ler e a te ouvir paro novamente o meu trabalho. Procuro sua foto dentre as muitas outras que me sorriem do lado direito da tela. Quero perguntar de você, falar de mim, de nossas famílias, de nossos amigos, conversar sobre nossos sucessos, expectativas e fracassos... quero rir... quero falar bobagem... Sinto-me alegre ao imaginar o conteúdo de sua resposta à mensagem que ainda nem te enviei.

     Não importa, meu amigo - meu velho e querido amigo. Bateu saudade. Tens que me ouvir; tens que me ler. O que estiver fazendo deverá ser interrompido para que possamos nos comunicar instantaneamente. A atenção, o carinho, as histórias comuns são mais importantes que quaisquer outras coisas.

     Procuro por você novamente no lado direito da tela. Já não te vejo. Já não estás mais ali... já não estás acessível. Perdemos a oportunidade de pelo menos nos cumprimentarmos, de dizermos "olá, como vai? estou aqui!"

     Mais uma vez fui consumido pelo receio de estar sendo infantil ao atrapalhar o trabalho de alguém de quem tanto gosto - e que talvez tenha pensado o mesmo em relação a mim; mais uma vez deixei que nos perdêssemos nos elétrons que viajam dentro dos fios metálicos, nas ondas invisíveis que nos (des)conectam pela internet...   

sexta-feira, 7 de julho de 2017

O ANTÚRIO


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Pena Branca e Xavantinho - "Arruda com alecrim"
Do álbum "Violas e Canções" - 1993


Para uma amiga
que cuida de um antúrio


     Essa história que vou lhes contar aconteceu há muito tempo. Há quase quarenta anos. Deu-se em um lugarejo acanhado, plantado às margens do Sapucaí. Quem a ouve custa crer na sua veracidade. No entanto, a materialidade objetiva do regalo e o depoimento que me foi prestado pelos envolvidos são a prova inequívoca do ocorrido.

     Foi em uma pequena estação rodoviária, antes mesmo do dia amanhecer. Ela partia sozinha para a cidade grande levando em sua bagagem o coração do seu namorado. Seu coração ficava com o rapaz, sozinho, na plataforma de partida.

     Haviam tido uma noite de beijos, abraços e saudades antecipadas. Na escuridão de um pomar, sob o testemunho do luar, olharam para o ceu e prometeram adotar a lua como madrinha daquele amor. De tal forma que, todas as noites, ela lá e ele cá, no mesmo horário, olhariam para a lua na certeza de que, distantes, estariam pensando um no outro.

     Na tarde anterior à partida, sentindo antecipadamente o vazio que iria sentir, ele, que era dado a cuidar de plantas e acreditava em suas propriedades espirituais, colheu uma muda do antúrio que juntos haviam plantado no jardim da casa de sua avó. E assim fazendo escolheu criteriosamente um pequeno vaso com sementes de alecrim ainda não germinadas que sua avó havia plantado. E nesse vaso, com a mesma terra que ele continha, inseriu a muda do antúrio.

Anthurium 'Red Victory'
Red Anthurium - foto em https://br.pinterest.com/pin/250160954273844099/

     No momento da despedida, já na plataforma de partida, entregou a ela aquele mimo com um bilhete: "Prá você não se esquecer de mim". Em seguida pediu a ela que cuidasse do antúrio até que pudessem estar juntos todos os dias. Depois beijaram-se. O sol ainda não havia nascido quando acenaram um para o outro, ela da janela do ônibus, ele de pé na plataforma de partida. 

     Voltaram a se encontrar, lá e cá, depois daquela noite. Ainda puderam, algumas vezes, olhar a lua e regar juntos o vaso com o antúrio. Mas por circunstâncias da vida, da distância e do tempo, cada um seguiu seu destino, viveu novos amores, constituiu sua própria família. Apesar disso não deixaram de manter, veladamente, o interesse pela vida um do outro. 

     Tenho o privilégio de manter contato frequente com ela e de ter sido dele um grande amigo. Ouvi de ambos o mesmo relato. Conversando com ela há alguns poucos anos, depois das derradeiras homenagens que amigos e familiares prestaram a ele, contou-me ela que continuava cuidando do mesmo antúrio; que a planta, como que por magia, sempre acompanhava o estado da saúde debilitada que ele, em vida, tinha: resplandecia e encantava nos bons tempos; debilitava-se e deprimia-se de quando em vez.

  "O antúrio" - foto colhida no facebook
  
     Foi então que percebi todo sentido na escolha que ele havia feito. Não por acaso o vaso com sementes de alecrim fora escolhido. Acreditando no favorecimento das atividades mentais e espirituais que o alecrim poderia proporcionar, ele queria que ela jamais o esquecesse.


     Recentemente eu a revi em casa de amigos. Dentre as muitas coisas que conversamos contou-me ela que, depois de uma longa fase ruim, o antúrio renasceu e está lindo! E que, quanto a ela - segredou-me muito particularmente -, jamais o esqueceu.