Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Há pouco comecei a ler uma biografia* do escritor brasileiro Mário de Andrade. Logo nas primeiras páginas Jason Tércio, o autor, conta do início da amizade do biografado com Anita Malfatti, da troca de cartas entre ela e o Mário de Andrade, e do rompimento dessa amizade, anos depois. Mas um pouco da história de Anita, contada nessa biografia, já foi suficiente para que eu me interessasse em também conhecer um melhor a vida e a obra de Anita Malfatti.
Com o apoio da família, principalmente de um tio, a paulistana Anita Malfatti (1889-1964) mudou-se para Berlim, na Alemanha, para estudar pintura. Ficou lá por três anos. Com a intensificação dos movimentos políticos e sociais no Velho Continente, que precederam a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Anita trocou a Alemanha pelos Estados Unidos, mais precisamente por Nova Iorque, também para estudar pintura. Viveu em Nova Iorque por um ano e meio. Naquele período, o nacionalismo exacerbado na Europa trouxe reflexos também aqui para o Brasil, onde os debates a respeito do nacionalismo e da construção da nação brasileira passaram a ser intensos. Pois aqui estávamos construindo um novo país, sob os embalos da nossa Belle Époque tardia, do Rio de Janeiro modernizado por Pereira Passos, do Futurismo e das novas tendências artísticas. Havia pouco o Brasil tinha libertado homens e mulheres escravizados (1888), deixado de ser um Império (1889), ganhado uma Constituição (1891), e começado a construir uma República. E um dos primeiros movimentos ocorridos no final do Século XIX e início do XX foi a busca pela construção de um perfil para a nação, moldado pela tentativa de branqueamento da população brasileira. O grande fluxo de imigrantes europeus que na época aqui aportavam, deixa tudo isso muito evidente.
Anita, que havia acompanhado os movimentos artísticos de vanguarda na Europa, em especial o Expressionismo, com a ajuda de seu tio e o empenho de alguns então novos amigos que conhecera (dentre eles Di Cavalcanti), realizou em SP, em dezembro de 1917, sua exposição "Pintura Moderna: Anita Malfatti". Essa exposição deu o que falar: acentuou as discussões a respeito da nação brasileira, que foi "turbinada" por uma crítica publicada em jornal pelo escritor, editor, advogado e ativista Monteiro Lobato ("Paranoia ou Mistificação?"), ao sugerir que diversas obras mostradas na exposição de Anita traduziam alguma insanidade. Assim comentava ele:
"(...) veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro (...)".
Com tudo isso, a repercussão da exposição de Anita, apesar de não ter feito tanto bem a ela, na época, abriu caminho para o Modernismo brasileiro.
Dentre as obras mostradas na Exposição, "Tropical" - então com o título "Negra baiana" - contrastava com o perfil que, de maneira forçada, queria-se traçar para o brasileiro. "Negra baiana" era totalmente divergente dessa tendência. Na tela, uma mulher traz nos braços um cesto contendo frutos tropicais - banana, mamão, abacaxi, laranja. Ela tem a pele morena, os cabelos escuros, e está vestida com uma blusa clara. Sua postura servil remete à lembrança do modelo de trabalho extinto no país. A expressão de melancolia em sua face parece até ter sido a inspiração para, depois, Paulo Prado comentar na abertura de seu livro "Retrato do Brasil" (1928): "Numa terra radiosa vive um povo triste". Essa tela, portanto, diferente da identidade europeizada que se queria traçar para a nação brasileira, foi, evidentemente, parte estimuladora das discussões em torno da construção da nação brasileira. Tanto que, logo depois, em 1922, a Semana da Arte Moderna trouxe a ideia da antropofagia cultural, e desaguou em interpretações tais como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, e diversas outras com o mesmo grau de relevância.
Assim, meu raro leitor, quero dizer com tudo isso que a construção do perfil da nação brasileira, iniciada em 1822, com a Independência, atravessou todo o Império, ganhou forças na Primeira República, e, pelo que consigo interpretar, continua em fase de construção - e Anita Malfatti, precursora do Modernismo, foi também uma das responsáveis por isso.
Em um café (O Absinto) - (detalhe) - 1875-1876 - Edgar Degas (1834-1917)
óleo sobre tela - 92x68 cm - Museu D'Orsay (Paris)
Edgar Degas (1834/1917) pintou muitas mulheres. Membro do grupo de impressionistas, ao invés de paisagens ou espaços abertos, preferia pintar ambientes fechados, mostrando a vida cotidiana. Gostava muito de pintar bailarinas: fez um grande número de telas a respeito do tema.
Sempre que folheio livros que trazem suas obras, a tela que mais me pede tempo para observar é a de um casal em uma mesa de café, sentados um ao lado do outro: o homem, de chapéu e paletó escuros, apertando por entre os lábios um cachimbo, dirige o olhar em direção oposta à mulher a cuja presença está indiferente. Ela, de ombros caídos, tendo um copo de absinto à sua frente, transmite melancolia e tristeza no olhar, como se estivesse mendigando atenções.
Imóvel e em silêncio, examinando atentamente o casal pintado, fico pensando no que poderia ser oferecido àquela mulher, naquele momento, naquele lugar, que tivesse a magia de fazer brotar alguma luz de seu olhar... Não, não creio que pudesse ser algo material; acabo por acreditar que a atenção de seu companheiro, acompanhada de palavras de carinho, certamente poderiam fazer renascer sua beleza e sua alegria... mas aí nem a mensagem do quadro, nem a transformação que poderia ser processada no observador seriam as mesmas...