quinta-feira, 17 de outubro de 2024

ANITA "TROPICAL"

 

"Tropical" (1917) - Anita Malfatti - óleo sobre tela 77x102cm
https://fcs.mg.gov.br/a-importancia-do-quadro-tropical-para-a-arte-brasileira/

    Há pouco comecei a ler uma biografia* do escritor brasileiro Mário de Andrade. Logo nas primeiras páginas Jason Tércio, o autor, conta do início da amizade do biografado com Anita Malfatti, da troca de cartas entre ela e o Mário de Andrade, e do rompimento dessa amizade, anos depois. Mas um pouco da história de Anita, contada nessa biografia, já foi suficiente para que eu me interessasse em também conhecer um pouco da vida e da obra de Anita Malfatti.
    Com o apoio da família, principalmente de um tio, a paulistana Anita Malfatti (1889-1964) mudou-se para Berlim, na Alemanha, para estudar pintura. Ficou lá por três anos. Com a intensificação dos movimentos políticos e sociais no Velho Continente, que precederam a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Anita trocou a Alemanha pelos Estados Unidos, mais precisamente por Nova Iorque, também para estudar pintura. Viveu em Nova Iorque por um ano e meio. Naquele período, o nacionalismo exacerbado na Europa trouxe reflexos também aqui para o Brasil, onde  os debates a respeito do nacionalismo e da construção da nação brasileira passaram a ser intensos. Pois aqui estávamos construindo um novo país, sob os embalos da nossa Belle Époque tardia, do Rio de Janeiro modernizado por Pereira Passos, das novas tendências artísticas, do Futurismo. Havia pouco o Brasil tinha libertado homens e mulheres escravizados (1888), deixado de ser um Império (1889), ganhado uma Constituição (1891), e começado a construir uma República. E um dos primeiros movimentos ocorridos no final do Século XIX e início do XX foi a busca pela construção de um perfil para a nação, moldado pela tentativa de branqueamento da população brasileira. O grande fluxo de imigrantes europeus, que na época aqui aportavam, deixa tudo isso muito evidente.
    Anita, que havia acompanhado os movimentos artísticos de vanguarda na Europa, em especial o Expressionismo, com a ajuda de seu tio e o empenho de alguns então novos amigos que conhecera (dentre eles Di Cavalcanti), realizou em SP, em dezembro/1917, sua exposição "Pintura Moderna: Anita Malfatti". Essa exposição deu o que falar: acentuou as discussões a respeito da nação brasileira, que foi turbinada por uma crítica publicada em jornal pelo escritor, editor, advogado e ativista Monteiro Lobato ("Paranoia ou Mistificação?"), ao sugerir que diversas obras mostradas na exposição de Anita traduziam alguma insanidade. Assim comentava ele:

"(...) veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro (...)".

    O fato foi que, com tudo isso, a repercussão da exposição de Anita, apesar de não ter feito tanto bem a ela, na época, abriu caminho para o Modernismo brasileiro.
    Dentre as obras mostradas na Exposição, "Tropical" - então com o título "Negra baiana" - contrastava com o perfil que, de maneira forçada, queria-se traçar para o brasileiro. "Negra baiana" era totalmente divergente dessa tendência. Na tela, uma mulher traz nos braços um cesto contendo frutos tropicais - banana, mamão, abacaxi, laranja. Ela tem a pele morena, os cabelos escuros, e está vestida com uma blusa clara. Sua postura servil remete à lembrança do modelo de trabalho extinto no país. A expressão de melancolia em sua face parece até ter sido a inspiração para, depois, Paulo Prado comentar na abertura de seu livro "Retrato do Brasil" (1928): "Numa terra radiosa vive um povo triste". Essa tela, portanto, diferente da identidade europeizada que se queria traçar para a nação brasileira, foi, evidentemente, parte estimuladora das discussões em torno da construção da nação brasileira. Tanto que, logo depois, em 1922, a Semana da Arte Moderna trouxe a ideia da antropofagia cultural, e desaguou em interpretações tais como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, e diversas outras com o mesmo grau de relevância.
    Assim, meu raro leitor, quero dizer com tudo isso que a construção do perfil da nação brasileira, iniciada em 1822, com a Independência, atravessou todo o Império, ganhou forças na Primeira República, e, pelo que consigo interpretar, continua em fase de construção - e Anita Malfatti,  precursora do Modernismo, foi também uma das responsáveis por isso. 

50 obras de Anita Malfatti
fonte: https://www.youtube.com/watch?v=6kjMzM0MlVg
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*"Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade" (Estação Brasil, 2019)

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