Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
O meu amigo Rui publicou em jornal um texto que fala de bem-te-vis. Penso que a inspiração para a criação do texto deva ter vindo, para ele, a partir das caminhadas que imagino que faça pelos parques onde mora, estando ele a pé pelas calçadas, caminhos, ou mesmo recluso entre quatro paredes - havendo ou não um bem-te-vi a "voar livre por entre os jasmins", para, em seguida, "pousar em seu coração".
Enquanto lia o texto, ouvi o canto de um bem-te-vi imaginário... e me vi procurando por ele, tentando localizá-lo por sobre as cercas, galhos de árvores, muros e quintais... À medida que a procura acontecia, a despeito da sala que me aprisionava, fiquei pensando em matas, cursos d'água, rios, florestas e passarinhos... Parece que a procura por um bem-te-vi tem a propriedade de promover uma reaproximação, de ensejar uma possibilidade de reencontro do homem com a natureza - tal como acontece quando da leitura de algum texto que trate de passarinhos...
O Rubem Braga certamente vivia à procura de passarinhos - tanto que, um dia, contou uma história a respeito de um menino que queria fazer negócio com um senhor. E ele, o menino, perguntava: "Papai me disse que o senhor tem muito passarinho... tem coleira?... virado?... muito velho?... canta?... o senhor vende... quanto?"
- Bom... mas e você, meu amigo... Você não enxerga o mundo a partir de uma palmeira, do alto dela, quando se lembra que "em sua terra há palmeiras onde cantam sabiás?"... E o sabiá, que você ouviu cantar, vai voltar? Mesmo se expulsos, os sabiás voltam... voltam, cantam e voam... como voaram Cynara e Cybele na interpretação de "Sabiá", no III Festival Internacional da Canção (1968), no Rio de Janeiro: "Vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar, foi lá, é ainda lá, que eu hei de ouvir cantar uma sabiá..." ... e a gente aplaude... ainda hoje aplaude, aplaude...
- Eita Brasil de cantos, de pássaros e de possibilidades! Brasil de vastas extensões de verde, Brasil de passarinhos e de gente que gosta de passarinhos... terra onde, ao ritmo da "sinfonia de pardais", reina "a majestade o sabiá"... onde, de pensar em pássaros e distâncias, doem as mesmas saudades sentidas pelo Vinícius de Moraes, quando convocou pássaros de diferentes famílias para cuidarem da travessia do Atlântico e da entrega, ao destinatário, de sua declaração de amor: "Agora chamarei a amiga cotovia / E pedirei que peça ao rouxinol do dia / Que peça ao sabiá / Para levar-te presto este avigrama: 'Pátria minha, saudades de quem te ama (...)'".
Ficou por muitos anos em uma pequena adega da casa de minha mãe, mesmo depois de sua partida. Ao me atentar encantado para aquela garrafa de vidro que continha vinho verde português, para seu formato meio bojudo com uma saliência na parte superior sugerindo um gancho, apossei-me dela e a trouxe para a minha casa.
Logo que deixei de olhar a garrafa e passei a examinar o vinho nela contido, percebi que, em função do tempo de armazenamento, sua coloração sugeria um certo comprometimento na qualidade. Na dúvida, enquanto decidia se o consumia ou não, coloquei a garrafa na horizontal, cuidadosamente, dentro de um armário onde mantenho bebidas de qualidade duvidosa.
Incomodado com a minha indecisão, na semana seguinte voltei à garrafa. Movimentei o líquido suavemente de um lado para outro mas, reexaminando sua coloração, não me senti seguro em consumi-lo. Contudo, aquela garrafa tão bonita parecia não querer me deixar. E então, por essas razões transcendentais que nos ocorrem, decidi me desfazer do vinho e manter a garrafa como enfeite.
Com um saca-rolhas em mãos, parti então para a ação. Contudo, ao inserir o saca-rolhas na cortiça, a rolha partiu-se no quarto superior de sua extensão, e a sua parte inferior desprendeu-se do bico, caiu no líquido, e afundou. Sem querer experimentar o vinho, e sem conseguir retirar a rolha do fundo da garrafa, joguei todo o líquido pelo ralo da pia da cozinha, e fiquei com a garrafa vazia e limpa, contendo somente um grande pedaço de rolha dentro dela.
- O que fazer, meu caro leitor? Sim, fiquei chateado. Como eu poderia retirar aquele pedaço de rolha de dentro da garrafa?
Pois bem. Por esses acasos do destino, um belo dia encontrei, no gramado do fundo de minha casa, um espeto de ponta afiada - próprio para ser utilizado em uma churrasqueira. Dei-me conta então de que, com aquele espeto, eu poderia cortar a rolha em pedaços pequenos, os quais poderiam ser eliminados pelo bico da garrafa. E assim eu fiz!
Depois, com a garrafa em mãos, limpa por fora e totalmente vazia de liquido ou rolha por dentro, fui até uma loja de produtos esotéricos e religiosos onde certamente eu poderia encontrar velas coloridas para se encaixarem no bico da garrafa, formando assim uma pequena lamparina. Logo no balcão de entrada da loja encontrei uma belíssima vela amarela, com aroma delicioso de mel. Para demonstrar minha criatividade à jovem vendedora que se aproximara de mim, indaguei a ela a respeito do destino que se poderia dar àquela garrafa que eu trazia comigo. Com um sorriso espontâneo, e com muita naturalidade, ela me respondeu que colocaria uma flor de cor bastante forte dentro dela, pois assim iria alegrar qualquer ambiente.
Com uma vela amarela em mãos, e sem dizer à vendedora o que havia me levado a procurar aquela loja, fiquei silenciosamente confrontando a exuberância da juventude com o desencanto e esmorecimento de muitos já não tão jovens... - como eu. Ao fazer tais comparações, e sem dizer nada, encontrei uma maneira de agradecê-la pela ideia. Pois enquanto eu pensava em uma vela na escuridão, queimando no bico da garrafa e sugerindo morte, feito vida que se consome, a jovem pensava em flores e na beleza que sugere vidas que florescem.
A jovem vendedora ainda me alertou de que eu havia escolhido as velas mais caras, com aroma de mel... que havia outras mais baratas. Foi então que a simplicidade da vendedora e a honestidade de seu sorriso me fizeram decidir: pedi a ela outras cinco velas amarelas, com aroma de mel, e coloquei todas elas em uma sacola de plástico. Paguei pela compra, agradeci comovido pela venda e, já na rua, sem saber o destino que daria às velas, saí em busca de flores para ocuparem o espaço interno daquela garrafa.
O Ruy Castro publicou no jornal Folha de São Paulo, em sua coluna de ontem, uma relação daquelas que ele considera as vinte maiores músicas brasileiras, desde 1925 ("As 20 mais", 31/08/25). Ele avisa que a lista que fez não traduz o seu gosto pessoal, mas - esclarece ele - são músicas que "abriram caminhos, que firmaram um gênero, e consolidaram um ritmo".
Fiquei sabendo desse artigo por intermédio do meu amigo Paulo Sérgio, que o enviou a mim, via WhatsApp, com a sugestão de que eu fizesse a relação das minhas músicas preferidas. Tentei atendê-lo, porém não consegui. É tão difícil fazer uma seleção assim... A gente vai mudando, as canções vão ganhando ou perdendo importância pra gente... Mas relacionei, pra começar, alguns álbuns inteiros, nacionais e internacionais, que são frequentes em meu aparelho de som, pelos quais tenho a maior paixão e não consigo me imaginar sem a possibilidade de poder ouvi-los sempre que quiser... São álbuns que me acompanham desde que os ouvi pela primeira vez, e que fazem com que eu me lembre de algum evento, de alguma situação, de alguma pessoa, de algum lugar:
(1) "Vinícius e Caymmi, no Zum Zum" (Elenco, 1966);
(2) "Elis & Tom" (Philips, 1974);
(3) "Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim" (Reprise, 1967);
(4) "Chega de saudade" (João Gilberto - Odeon, 1959);
(5) "O amor, o sorriso e a flor" (João Gilberto - Odeon, 1960);
(6) "João Gilberto" (Odeon, 1961);
(7) "Amoroso" (João Gilberto - Warner, 1977);
(8) "Solitude on guitar" (Baden Powell - CBS, 1971);
(9) "Violão em Seresta - Rio das Valsas" (Baden Powell - Ideia Livre, 1988);
(10) "Villa por chorões" (diversos - Kuarup, 2002);
(14) "O som brasileiro de Sarah Vaughan" (Sarah Vaughan - RCA, 1978)
....
Há tantos outros... Estes, são álbuns inteiros; outra hora tentarei relacionar as músicas específicas... começarei por "Strangers in the night", na interpretação do Frank Sinatra (que ouvi ainda hoje, de manhã); seguirei com "The shadow of your smile", com a Barbra Streisand; depois, "Ilusão à toa", com o Johnny Alf...
- Não, não vai dar... vai virar uma salada! Te peço desculpas, Paulo Sérgio.
Penso que preciso me organizar melhor. Penso que vou precisar fazer uma lista somente com músicas brasileiras; outra, com músicas estrangeiras... e dentro das estrangeiras, uma lista das gravadas em inglês, outra em francês, mais uma em espanhol, e outra ainda em italiano. Também me ocorreu fazer uma lista dos meus fados prediletos... E já estou aqui me sentindo com o coração partido: sei que, pelos esquecimentos, vou ser injusto com um ou outro álbum, com uma ou outra música - e devo mesmo ter sido ingrato com muitos álbuns que esqueci de colocar na lista que acabei de montar.
Por fim, para que essas listas não fiquem incompletas, para nunca me esquecer do que preciso me lembrar, fico devendo a mim mesmo a explicação escrita dos motivos que fizeram dos álbuns e das músicas relacionadas minhas grandes fontes de memória e inspiração.
- Pensando bem, nesse amontoado de sem-sentido, melhor eu deixar toda essa confusão de lado. Afinal, pra que serve o quebra-cabeça? O que pode interessar a João, a Pedro ou a Maria o sentimento que desperta em mim essa ou aquela música? esse ou aquele álbum musical? Acho que é mais sensato eu tomar uma atitude: vou montar um balcão, manter a gaveta sempre cheia, e sobreviver.
A poltrona esquecida - Foto: acervo pessoal (2018)
A poltrona conta uma história. Conta muitas histórias. Em outros tempos costumava acomodar corpos necessitados de descanso. Eu era criança quando a conheci. No frio, o veludo de sua estrutura agasalhava as partes do corpo daqueles que nela se recostavam - e as almofadas que a decoravam aqueciam as mãos e os braços que as abraçavam.
O tempo passou... Depois de ter servido por mais de 50 anos aos seus antigos senhores, aos jovens, crianças e idosos que os visitavam, ela foi deixada em uma sala fria e escura de condomínio. Nos últimos sete anos, amargou-se da tristeza e da inutilidade que lhe foram impostas.
Esquecida assim, sua madeira enfraquecida adoeceu. Vitimada por um movimento descuidado, fraturou uma de suas pernas e tombou.
Há pouco, seu agora proprietário a revisitou. Ao revê-la, chocado com sua tremenda ingratidão, sensibilizou-se e despertou-se do descaso que havia imposto a ela. Arrependido, hoje busca redenção: procura um profissional que se solidarize com todas as histórias que ela conta.
- "Alguém pode fazer alguma indicação?" - brada em desespero por todas as esquinas.
É preciso que seja um marceneiro competente e atencioso; que seja dedicado o suficiente para conseguir promover a cura de um pé de madeira quebrada. Quando renovada - e isso o seu proprietário promete! -, a poltrona que se encontra enferma e esquecida ganhará um novo revestimento de tecido, alegre, imponente... para que possa continuar oferecendo acolhimento a todos aqueles que se sentirem cansados - até mesmo a esse pobre ingrato que a desprezou.
Enquanto isso, vou remoendo as histórias que a poltrona ainda me conta.
Foto que está circulando no facebook - (Fonte desconhecida)
Para a Vanda,
minha amiga.
Veio do litoral paulista, enviado pela minha amiga Vanda, um presente em forma de inspiração. Tal presente, originário da Costa do Marfim, na África, chegou a ela pelo Oceano Atlântico. Impelido pela lembrança de antigas caravelas dominadoras, e navios negreiros de triste memória, o presente passou por Itanhaém, Santos, São Vicente e São Paulo e, em forma de Reggae, veio bater à minha porta: "Plus rien ne m'etonne" (nada mais me espanta), gravado por Tiken Jah Fakouly.
O presente, pela crítica e reflexão propostas, me fez bem. Ao ouvi-lo, instintivamente fui passear pelo litoral da África - Gana, Nigéria, Benin, Serra Leoa... -, adentrando o seu interior - Congo, Zâmbia, Chade...-, revisitando o projeto de dominação elaborado na Conferência realizada em Berlim nos anos de 1884 e 1885.
Assim como na prepotência de Portugal e Espanha, ao decidirem pelo loteamento do mundo em 1494 (pelo Tratado de Tordesilhas), a cidade de Berlim sediou uma Conferência entre potências mundiais da segunda metade do século XIX, para que estas pudessem planejar a expansão de influências econômicas e dividir mercados e áreas para exploração de recursos naturais e escoamento de produtos manufaturados.
A África era vista, à época, como um continente repleto de possibilidades. E como a competição pela exploração das riquezas naturais africanas, e a disputa pela conquista do mercado consumidor de produtos acabados poderia gerar tensões entre as potências europeias, o então chanceler do império alemão Otto von Bismarck convidou 14 países para se reunirem em Conferência: Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia e Império Otomano - além dos Estados Unidos. Assim, iniciada em novembro de 1884, a Conferência de Berlim terminou em fevereiro de 1885 com o fracionamento da África em regiões para exploração e ocupação europeia do continente.
Para espanto geral, meu caro leitor, não houve nessa Conferência a participação de qualquer representante do continente africano. Estranho, não é? Onde já se viu? Discutem o que fazer do "meu" quintal, promovem a sua divisão, e nem sequer me convidam para debater sobre o assunto, sobre o que é meu? Esse fracionamento acabou acontecendo, portanto, sem o devido respeito aos perfis étnicos e culturais existentes no continente africano - ou seja, "esqueceram", especialmente, que havia gente habitando o continente... gente que, ao final, deixada de lado, saiu enfraquecida.
Trazendo a Conferência de Berlim para os nossos dias, o que podemos perceber é que a história está se repetindo, porém em dimensões muito maiores: restrito a um continente, inicialmente (o africano), a fragmentação em áreas de influência tem por limite, agora, o planeta todo. Ou seja, não tem limite! Essaforma brutal de tentativa de dominação (leia-se "colonização", imposição do imperialismo) que vem se arrastando até os dias de hoje por todos os cantos do mundo causa o mesmo espanto que causou no final do século XIX: quem, hoje, vai explorar o mercado sul-americano? os Estados Unidos, a China, ou a União Europeia? quem vai gerenciar a exploração das riquezas do oriente médio? se um país não se alinhar a outros, esses outros, mais fortes, promoverão retaliações econômicas..... E mais: o desrespeito à soberania e a ingerência estrangeira em muitos países, hoje, são promovidos sob ameaças comerciais, que podem agravar desigualdades econômicas já existentes... E há, ainda, uma forte agravante: já não são mais 14 países; cada um é por si.
- "Muito estranho... muito estranho...
"Nada mais me surpreende", o reggae-presente gravado pelo Marfinense, que me foi enviado pela Vanda, ilustra muito bem a questão:
- "Se você apoiar o bombardeio ao qual submeto o meu vizinho, eu imponho baixas tarifas de importação aos produtos de seu país; se você propagar a ideia de que a moeda referência hoje pode deixar de sê-lo amanhã, eu não compro mais produtos originários de seu país; se você não for condescendente com o meu conceito de liberdade, eu não permito que os seus nacionais coloquem os pés no meu país...
- E assim, meus amigos, assim (des)caminha a humanidade! E que se explodam os homens, as mulheres e as crianças... as instituições, os hospitais, as escolas e a soberania dos mais fracos...
Disseram-me até que estão até de olho no acarajé - posto que o mercado que a iguaria atinge, com a sua comercialização, pode diminuir a possibilidade de lucros dos sanduíches da rede McDonald's.
- "A Bahia que se cuide! Eu, hein?... Antes que seja tarde, vou lá no quintal, quietinho, colher da jabuticabeira alguns de seus frutos...
Louis Armstrong - "What a wonderful world" - Filme (trecho): "Good morning, Vietnam"
https://www.youtube.com/watch?v=FzFIDTs3WtI
Da mansa escuridão onde me encontro, para mirar as estrelas, e com a chegada da noite, fiquei pensando nas pequenas famílias que habitam a Faixa de Gaza, a Ucrânia, a Etiópia, o Iêmen, o Sudão do Sul, a Síria, Mianmar, Israel, Irã... nos campos de refugiados... nas pequenas famílias desamparadas, jogadas pelas calçadas, pelas praças de São Paulo, pelos morros do Rio... pelas ruas das cidades... sob as marquises dos imóveis do bairro onde resido... Fiquei pensando nos pequenos e ridículos grandes poderosos... nos interesses que provocam estragos... E desejei paz e harmonia para nós, aqui em baixo, como se esse simples desejo pudesse promover decisivas transformações...
Embarquei em um navio viquingue. Num frio cortante, de fazer tremer o corpo todo, deixei de lado as costumeiras rotas do Bojador e iniciei meu percurso pelo litoral da Dinamarca, Noruega e Suécia. Mergulhei na neblina… No convés, propulsor da viagem, o pianista Caio Pagano. Deslizou os dedos pelas teclas do mar Báltico de seu instrumento, e a nau atravessou, determinada, a Escandinávia. Finda a travessia, desembarquei no espaço aéreo da praça escura, e saí caminhando pelas ondas de um oceano terrestre que havia inundado o quadrilátero central da cidade. Fui dormir no paraíso.
"Maternidade" - Juan Rocasalbas (1985) - acervo pessoal
Do final dos anos 60 até meados dos anos 80, Rosa Freire d'Aguiar residiu e trabalhou na França como jornalista e correspondente das revistas Isto É e Manchete. Durante os anos lá vividos, traduziu a conjuntura internacional e entrevistou escritores, intelectuais e artistas de destaque, dentre as quais Ernesto Sabato, Fernand Braudel, François Perroux, Georges Simenon, Julio Cortázar e Norma Bengell. Anos depois desse período, desencaixotou algumas entrevistas que havia guardado, e as publicou em livro - ao qual deu o título de "Sempre Paris" (Companhia das Letras, 2023).
Ao iniciar a leitura de "Sempre Paris", justamente no último "dia das mães" (11 de maio), deparei-me em suas páginas com a entrevista que lhe fora concedida pela filósofa francesa Élisabeth Badinter, autora de um best seller, em 1980, na França, e que inspirava uma discussão a respeito do mito do amor materno - "L'amour en plus" (1980), traduzido no Brasil com o título "Um amor conquistado - o mito do amor materno".
Para mim sempre esteve pacífico o entendimento de que "amor de mãe é o mais sublime, é o mais "puro e sincero, 'inocente como a flor'", é diferenciado, é o que advém da "extração" de uma parte daquela que gerou e que é dedicado aquele/a que nasceu - ou seja, é o amor que está além de todos e quaisquer outros tipos ou maneiras de amar.
Admito, contudo, que eu nunca havia pensado a respeito do assunto.
A autora de "L'amour en plus", não negando o instinto maternal, contestava a ideia de que esse amor de mãe seria inato e idêntico em todas as mulheres. Em seu entendimento, "o amor materno é um aprendizado que uma mãe vai tricotando no contato diário com o filho" - mas "pode não surgir", disse ela na entrevista. Um dos pontos abordados na conversa com a jornalista considerava a possibilidade da troca involuntária de um bebê ao nascer, ainda no hospital, e a suposta mãe passar a tratar o bebê a ela apresentado como seu filho natural, direcionando a ele, a esse filho trocado, todo o seu "amor de mãe".
Pois foi justamente pensando nisso que me veio o questionamento a respeito da possibilidade do amor de mãe poder não ser inato, mas naturalmente desenvolvido e construído. Diante de tal hipótese, pareceu-me, então, que "amor construído" pode não se diferenciar de qualquer outro amor que se dedica a alguém - ou seja, o amor que se tem por alguém pode ser tão forte quanto o amor que uma mãe tenha por um filho.
Conversei com seis mulheres a respeito da possibilidade da troca de filho desde o primeiro contato visual entre mãe e "filho" em um hospital, após o nascimento. Surpreendeu-me constatar que, para todas elas, a ideia do amor construído era pacífica - ou seja, tal entendimento superava a ideia do amor inato. E fui adiante nas minhas indagações. Todas elas mantiveram o entendimento de que o amor de pai pelo filho pode ser tão forte, ou igualmente construído, quanto o amor de uma mãe pelo filho que assumiu como sendo seu.
Se formos levar em consideração muitas das notícias que nos chegam, e que tratam da relação mãe/filho, é espantoso ver que há casos de agressão, violência, maus-tratos e negligência materna. E em assim sendo, o que poderia justificar isso? Desequilíbrio mental? Pobreza? Egoísmo? Amor "não desenvolvido"? Nesses casos, onde se situaria o "amor materno"? Não sei... Quando me dedico a pensar nessa e em tantas outras questões que envolvem a natureza humana, sinto-me dominado por um elevado grau de aflição diante da minha ignorância em relação a temas tão sensíveis.
Festa de entrada do rei Henrique II, Rouen, 01/10/1550. Pintor anônimo. Gravura em manuscrito da Biblioteca Municipal de Rouen. À esquerda, na figura, uma ilha montada com árvores e alguns indígenas; à direita, abaixo, uma representação de guerra entre povos indígenas(Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Festa-de-entrada-do-rei-Henrique-II-Rouen-1-o-10-1550-Pintor-anonimo_fig1_344062058
Para a promoção de um projeto de colonização francesa, no Brasil, cerca de cinquenta indígenas foram levados à França, em 1550, pelos navegadores franceses. Na cidade de Rouen, naquele ano, por ocasião da passagem dos Reis Henrique II e Catarina de Médici, foi organizada uma apresentação teatral às margens do Rio Sena, ao longo do qual foram montadas habitações indígenas. Encenava-se uma batalha entre nativos indígenas da colônia portuguesa na América, que apoiavam os franceses, contra outros nativos que não os apoiavam - encenação que resultava na vitória dos apoiadores da França. Essa encenação foi contada por Ferdinand Denis no livro "Uma festa brasileira em Rouen em 1550" (publicado em 1850). Cinco anos depois da "Festa brasileira em Rouen", em 1555, os franceses invadiram a Baía de Guanabara e ali estabeleceram a colônia da França Antártica - de onde foram expulsos em 1567.
Sempre que alguma leitura, alguma imagem ou alguma música me leva ao Geraldo Vandré, a sensação que me ocorre é de algo distante, de eco, de chamado, sem que eu consiga detectar a sua fonte… Fica um aperto no peito, com traços de angústia e de abandono… E penso que a composição musical é rica justamente quando promove um emaranhado de sentimentos e sensações. O violão, ao fundo, em composições do Geraldo Vandré, nem sempre parece acompanhar o canto. Contudo, é uma disparidade assim que transmite mensagens que a gente traduz por busca, procura, desencontro… e, às vezes, por desencanto.