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(Mercedes Sosa - "Gracias a la vida", de Violeta Parra)
Decidido a participar da vida universitária com maior intensidade, deixei a reclusão monástica da pensão onde morava e fui morar em república com um grupo de colegas da universidade. O responsável pelo convite de mudança foi o meu amigo Fernando - boliviano de Santa Cruz, estudante de engenharia civil. Éramos cinco: cada um de um curso diferente.
Na noite em que fui conhecer a casa juntaram-se todos os moradores e houve uma integração muito grande entre nós - graças a um violão e, em especial, a muitas garrafas de um vinho de qualidade suspeita. Seguimos até o amanhecer nas negociações e investigações uns dos outros. Em primeiro lugar dos interesses tratados estavam o canto, as interpretações, as experiências musicais. Com as portas da casa abertas, a cada música cantada ali dentro um grupo novo de estudantes da nossa universidade, vizinhos dali, entrava sem anunciar. E, juntando-se a nós, sentavam-se e participavam de tudo.
Quando um dos moradores da república, já de madrugada, me trouxe espontaneamente um prato de arroz com feijão requentado, tive a sensação de ter conquistado ali minha vaga. Ao final da minha visita, para que todos soubessem formalmente se eu podia ou não morar ali, o assunto foi colocado em discussão. E a deliberação nada teve a ver com o objeto principal da discussão: foi decidido que “Eu e a brisa”, do Johnny Alf, teria que ser tocada e cantada toda madrugada, e a “Carolina”, do Chico Buarque, podia ser a paixão comum de todos nós. Quanto a eu morar ou não ali – me disseram mais tarde - isso já havia sido aprovado anteriormente. Os demais detalhes de república, dinheiro, coisas práticas etc, outra hora, e com o passar do tempo, seria ajeitado. O importante era que mantivéssemos um bom nível musical dentro daquela casa. Topei tudo; não reivindiquei nada.
Mudei-me no dia seguinte carregado de uma ressaca humilhante. Eu estava feliz, pois todos ali, como eu, conheciam, gostavam e eram movidos a música. Passei então a ocupar um quarto com o Fernando, com endereço na cama de cima do beliche.
(Amigos em frente à república: Lula, Mauro, Fernando, e eu - fonte: JJoaquim)
Reconheço que minhas raízes musicais sempre foram divididas em duas vertentes: de um lado os Beatles e grupos adjacentes, incluindo-se aí o Renato e Seus Blue Caps e a turma da Jovem Guarda; e de outro lado o Chico Buarque, Tom Jobim, Nara Leão, Vinícius de Morais, Vandré e muitos outros.
Mas a partir daí, nessa nova vida, e nos finais de noites de música, desenvolvia-se para mim uma nova vertente musical, mais universalista, mais solidária, mais social, numa voz linda, forte e sensível, vinda de uma fita k7, e a quem eu até então nunca havia me atentado: Mercedes Sosa. Suas músicas tinham um cunho social muito forte. Falavam de um canto para toda a gente, um canto solidário; alertava para a existência de crianças desamparadas pelas ruas; pedia que estendêssemos as mãos ao índio; sugeria que déssemos as mãos para que cantássemos à Liberdade; dava vivas aos estudantes, louvava os cantores, a América Latina... Deitado na escuridão e no silêncio do meu quarto, ouvindo aquela voz forte e delicada vindo de um aparelho de fita K7 colocado no chão, meu coração idealista apertava e crescia imensamente naquela casa materialmente pobre, porém riquíssima de música, poesia e valores humanos: minha alma saía pelo teto, estendia-se pelas ruas, pelas casas, pelas cidades... e invadia a Bolívia, Peru, Paraguai, Nicarágua, países de onde vinham alguns dos amigos estudantes que frequentavam nossa república.
Quanto sofrimento e compaixão eu sentia – e sinto até hoje - ao ouvir as interpretações da Mercedes Sosa: “La Carta” contava os episódios de uma prisão injusta, sem piedade; quantas indagações pelos motivos que levaram Alfonsina a caminhar mar adentro, sem volta, em “Alfonsina y el mar”... A Amanda que saía de uma fábrica e caminhava pelas ruas, em “Te recuerdo Amanda” (do Victor Jara), era a mesma Amanda que nos vigiava do telhado da casa sem forro – pelo menos assim eu fantasiava.
E assim, ouvindo isso noites e noites, eu ficava na cama com a Mercedes Sosa embalando meu sono até que meus olhos, exaustos, adormecessem.
Quase trinta anos passados, ainda mantenho contato com meus colegas de república. Recentemente reencontrei o “Tiãozinho” – engenheiro civil - construindo ruas em uma cidadezinha no norte do Estado de Tocantins... Só não tenho mais notícias do Fernando desde que ele, já graduado, tomou um velho trem, atravessou o pantanal, e voltou para a Bolívia.
RP, 27mai2011