domingo, 3 de março de 2013

CARTA AO TOM


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR)
("Carta ao Tom 74" - Toquinho e Vinícius)


     Em 1974 foi lançado o disco "Toquinho & Vinícius". Dentre as onze músicas nele gravadas, uma delas foi "Carta ao Tom 74" - que fez muito sucesso, e é muito cultuada por todos os que gostam do Vinícius. Nessa música o poeta relembra com saudades declaradas o período em que Tom Jobim morava em Ipanema, na Rua Nascimento Silva, número 107, e compara a sua Ipanema daquele tempo (1953 a 1962) com a Ipanema de 1974. Ali ele contrasta a Ipanema que "era só felicidade", que "era como se o amor doesse em paz", com "esse Rio de amor que se perdeu".

(Janela da casa da Rua Nascimento Silva, 107, de onde se via um cantinho de ceu e o Redentor - foto: arq. pessoal - presente recebido do meu amigo Abrahão)

CARTA AO TOM 74

Rua Nascimento Silva, cento e sete
Você ensinando prá Elizete as canções de "Canção do Amor Demais".
Lembra que tempo feliz, ai que saudade,
Ipanema era só felicidade,
Era como se o amor doesse em paz.
Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria, esse Rio de amor que se perdeu.
Mesmo a tristeza da gente era mais bela,
E além disso se via da janela um cantinho de ceu e o Redentor.
É meu amigo, só resta uma certeza,
é preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor.

     Mas o que me chama a atenção nessa música é o seu título: "Carta ao Tom 74". E por que o "74" ? Simplesmente por ter ela sido composta naquele ano? Certamente não foi só por esse motivo.

     No ano de 1964 o Vinícius morava na França, onde era delegado do Brasil na UNESCO. Na véspera de uma viagem sua de lá para cá, ele, "sozinho em um quarto de hotel", em um dia de aniversário da independência do Brasil, escreve uma carta ao Tom. O texto dessa carta é lido por ele no show "Vinicius & Caymmi no Zum Zum", realizado em 1968 na boate Zum Zum, no Rio de Janeiro - e foi gravado depois em disco com o mesmo nome do show. O título da carta, na gravação, é "Carta ao Tom"(1).

     Então, penso eu, "Carta ao Tom 74" tem esse "74" para diferenciá-la da anterior.

     A "Carta ao Tom" é muito  bonita. Nela, distante de sua pátria, sentindo-se só, o poeta deixa-se rodear de amigos pelo pensamento, mostra carências de momento e expectativas futuras - diferente da "Carta ao Tom 74" na qual ele, comparando transformações ocorridas em Ipanema, descreve lembranças e impressões a respeito do bairro.

     Sentado no sofá da sala de casa eu coloco para tocar novamente o "Vinícius e Caymmi no Zum Zum". "Bom Dia Amigo", interpretada pelo Quarteto em Cy, abre o Lado A do disco, e cria um ambiente frio e vazio de "quarto de hotel em uma noite sem qualquer perspectiva". Na sequência, o Vinícius lê a Carta: atentamente, ouço mais uma vez sua leitura... e transcrevo a Carta aqui para que todos nós possamos sentir o mesmo que o poeta sentiu naquele já distante sete de setembro...

("Bom dia Amigo" e "Carta ao Tom" - Do disco "Vinícius e Caymmi no Zum Zum" - 1965)


Porto do Havre, sete de setembro de 1964

Tomzim Querido:

     Estou aqui num quarto de hotel, que dá para uma praça, que dá para toda solidão do mundo. São dez horas da noite e não se vê viv'alma. Meu navio só sai amanhã à tarde e é impossível alguém estar mais triste do que eu. E como sempre, nessas horas, escrevo para você cartas que nunca mando. 
     Deixei Paris para trás com a saudade de um ano de amor, e pela frente tenho o Brasil que é uma paixao permanente em minha vida de constante exilado. A coisa ruim é que hoje é sete de setembro, a data nacional, e eu sei que em nossa embaixada há uma festa que me cairia muito bem com o Baden mandando brasa no violão. Há pouco telefonei para lá para cumprimentar o embaixador e veio todo mundo ao telefone: estão queimando um óleo firme! 
     Você já passou um sete de setembro, Tomzinho, sozinho num porto estrangeiro, numa noite sem qualquer perespectiva? É fogo, maestro!
     Estou doido para ver você e Carlinhos e recomeçar a trabalhar. Imagine que esse ano foi praticamente dedicado ao Baden, pois Paris não é brincadeira. Mas agora o tremendão aconteceu mesmo. A europa teve que curvar-se. Mas ainda assim fizemos umas musiquinhas como "Formosa". Você vai ver. Tudo sambão. Parece até que a saudade do Brasil, quando a gente está longe, procura mais a forma do samba tradicional do que a bossa-nova, não é engraçado? São, como diria o Lucio Rangel, as raízes.
     Vou agora escrever para casa pedindo dois menus diferentes para a minha chegada. Para o almoço um tutuzinho com torresmo, um lombinho de porco, bem tostadinho, uma couvinha mineira e doce de coco. Para o jantar uma galinha ao molho pardo, com um arroz bem soltinho, e papos-de- anjo. Mas daqueles como só a mãe da gente sabe fazer. Daqueles que se a pessoa fosse honrada mesmo, só devia comer metida num banho morno e em trevas totais. Pensando, no máximo, na mulher amada. Por aí voce vê como estou me sentindo nem cá nem la. 
     Fiquei muito contente com o sucesso de "Garota de Ipanema" nos Estados Unidos. E a Astrudinha, hem? Que negócio tao direito! Vamos ver se dessa vez os intermediários deixam algum para nós. 
     Fiquei muito contente também com a noticia do sucesso de "Berimbau" aí no Brasil. Dizem que estão tocando a musiquinha para valer. Isso me alegra muito pelo Baden. E prá que mentir, por mim também. É bom saber que a gente não foi esquecido, que o povo continua cantando as nossas coisas, pois no fundo é pra ele que a gente compõe. Lembro-me tão bem quando fizemos o samba uma madrugada, há uns três anos atras, por aí. Eu disse a Baden: 'isso tem pinta de sucesso!' E ficamos cantando e cantando o samba até o sol raiar...

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(1) Além da gravação em disco, essa carta foi publicada no Livro "Querido Poeta: correspondência de Vinícius de Moraes" - seleção organizada por Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003


7 comentários:

  1. Que sinceridade bacana, a música é feita para esse povo. Grande Vinícius.

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  2. Respostas
    1. Obrigado pela visita ao blog, Paulo. Será sempre bem vindo. Fico contente que tenha gostado. Grande abraço.

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  3. Respostas
    1. Obrigado, Marta. Fico contente que tenha gostado. Grande abraço.

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  4. Essa carta deveria ser de obrigatória leitura, nas aulas de redação, nas escolas: muito bem redigida, em um português de nos fazer inveja.
    Vinicius, com seu jeito carinhoso de enaltecer no diminutivo tudo que lhe era caro, nos brinda, em confidencia, com a lembrança de musicas imortais e de pessoas eternas, como o Tom Jobim (Tomzinho), o Carlos Lyra (Carlinhos) e o Baden Powell.
    Parabéns pelo ótimo blog!
    Muito obrigado por esse resgate de inestimável valor.

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