quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

CINE GUARÁ


     Viajando pelas estradas do nosso país a gente vai observando os casebres espetados em locais praticamente inacessíveis... O carro cumpre sua trajetória e as pequenas casas isoladas se aglomeram para formar uma vila, uma cidade... De longe se vê sempre uma igreja em destaque. Eventualmente, às margens do caminho, um pedestre preenche seu tempo e sua fantasia observando o carro que passa, e que o estimula a sonhar.

     Nossas vidas estão ocupadas pela dureza da realidade, pelo nosso espaço limitado, pelo nosso período de tempo contado! 

     Londres, Paris, Tóquio, Nova Iorque, Rio de Janeiro; um novo trabalho, alguém a quem querer bem, modelos de relação familiar; pré-história, a revolução russa, a idade-média, o homem em Marte, a vitória do bem contra o mal; justiça, solidariedade, amor, carinho, honestidade - só existem no som das palavras que as representam, nos livros...

     ... ou no cinema!

     No cinema caminhamos por tantas cidades, conhecemos tanta gente, ultrapassamos as barreiras do ontem e do amanhã, rimos, choramos, nos emocionamos e descobrimos modelos de identificação; no cinema podemos ir onde a imaginação nos levar!

     E foi no cinema que, como Phileas Fogg (interpretado por David Niven), dei a volta ao mundo em 80 dias; que como Dr. Jivago (por Omar Shariff), escondi-me no interior da Rússia; que como Moisés (por Charlton Heston), conduzi um povo; que como Joe Buck (por Jon Voight), tentei vencer em Nova Iorque; que como Marcelo (por Stepan Nercessian), passei minha infância nas ruas e praias de Copacabana...

     Todas essas viagens, e inúmeras outras, devo ao cinema. E, em especial a um cinema que ficava pertinho de casa: O "Cine Guará"!

("Cine Guará, em algum tempo no passado" - Foto postada por José Carlos Souza Oliveira no facebook)


     Dentro dele, com as luzes apagadas, eu podia tudo! Ali, desligava-me de carências, sofrimentos, cidades, pessoas, tempo e som reais, para poder ir além, para poder viver e aprender com a fantasia... Ali, qualquer ruído era incômodo! Refrigerantes e pipoca eram proibidos, pois seus sons nos traziam de volta à realidade... O máximo que se tolerava era um leeeeento desembrulhar de uma bala pipper, toffee ou cevada - as únicas vendidas no cinema - não sem deixar na gente um baita sentimento de culpa pelo barulho que o papel fazia, pois que desmontava a fantasia de quem vivia o filme que estava assistindo.

     Hoje já nem sei o que funciona no prédio do "meu" antigo cinema. Sei que houve um tempo em que ali funcionou uma loja de eletrodomésticos; depois, igreja; em seguida departamento de alguma coisa da administração municipal... 

     Com isso, fico pensando no real e na possibilidade de construção do imaginário nas mentes das pessoas; no que elas podem e estão talhadas a viver, e no que elas conseguem se soltar e aprender a sonhar para poderem ir mais além...

     E é por isso que fico muito incomodado com o desaparecimento de muitas salas de cinema - pois que isso diminui a possibilidade de se poder sonhar. Mas também fico muito incomodado quando, em algum cinema, noto alguém sentar-se na plateia carregando uma bandeja enorme de pipoca com um copo de "ene" litros de coca-cola. Isso significa que o barulho produzido por essa pessoa vai mantê-la na realidade em que vive, tirando dela mesma e de muita gente na plateia a possibilidade de se ver em outra realidade, de se repensar, de se reinventar, de querer ir mais além, e aprender com a fantasia projetada na tela. 

     Oops! Chega de papo! Com as luzes se apagando, e com os sons reais desaparecendo, ouçamos a música acompanhar as cortinas que se abrem...

("Till" - Percy Faith)

... para que possam entrar em cena Charlie Chaplin, Antônio Fagundes, Cécile de France, Anthony Quinn, Sidney Poitier, Juliette Binhoche, Brad Pitt, Nicole Kidman, Cantinflas, Walmor Chagas, Brigitte Bardot, Dustin Hoffman, Morgan Freeman, Ricardo Darin...;

... para que possamos visitar a torre Eiffel, a pirâmide de Quéops, o Coliseu de Roma, a Muralha da China, o Cristo Redentor, Machu Picchu, o Museu de Antropologia da Cidade do México...;

... para que conheçamos Hannibal Lecter, Forrest Gump, Indiana Jones, James Bond, Don Corleone, Scarlett O"Hara, Tarzan...;

... para que possamos assistir "O paciente inglês", "Xingu", "A Partida", "Procurando Sugar Man", "Gandhi", "O pianista", "Por volta da meia-noite"...;   

... e para que também, concomitantemente, se possam abrir nossas mentes e nossas fantasias ao assistirmos um filme que nos inspire a repensar a nossa realidade, buscando deixar uma outra melhor para os nossos filhos.

     Bons filmes a todos!     

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

PRÁ ONDE VAI MEU PORTUGUÊS ?


(fonte: http://www.portaldorancho.com.br/artigos/arte-e-literatura/o-poder-das-palavras)


     Stacey Kent é uma cantora norte-americana. Canta jazz. Descobri-a recentemente quando procurava gravações em francês do "Samba da benção" (do Vinícius de Moraes), e de "Águas de Março" (do Tom Jobim). Pois foi aí que me deparei com a voz doce e delicada dessa cantora, cantando também em francês. Suas gravações de jazz e bossa-nova são lindíssimas. Além de ter colocado em disco clássicos de bossa-nova, gravou, com seu marido - o saxofonista Jim Tomlinson - um álbum inteiro com músicas brasileiras. O álbum chama-se "Jim Tomlinson - brazilian sketches". 

     Providenciei, para poder ouvir a hora que quiser, todas as gravações que pude encontrar da Stacey Kent. E ela tem sido uma grande companhia nos meus devaneios musicais.

     Talvez, por ter se graduado em Literatura Comparada, tenha lido diversos escritores brasileiros e, especialmente, sentido a beleza do som das palavras pronunciadas em português. Tudo indica que por ter chegado à música brasileira e, por ter se envolvido com toda carga emocional contida nas palavras, maravilhou-se com nossa língua. 

     Em passagem pelo Brasil, entrevistada no programa do Jô Soares, falando e cantando em português, assim ela se referiu ao sentido da língua portuguesa em sua vida:


("Coração vagabundo", de Caetano Veloso - por Stacey Kent, no programa do Jô Soares)

"a razão por que eu estou estudando sua língua é por causa dessas palavras, essas letras; sem essas letras na minha vida, minha vida seria muito menos rica". 

     Abro o "facebook" e fico olhando postagens e comentários. Por trazerem palavras e siglas que desconheço, não os entendo bem: "altered beast", "drive-in", "rush", "printer", "SNES", "delete", "scanner", "MBA", "master", "bypass", "charter", "spread"... Claro que a dinâmica de uma língua conta muito; claro que preciso me atualizar... mas, será que não há palavras em português que possam dizer o que tiver que ser dito? Aliás, é bom nos lembrarmos que a cultura e as palavras carregam em si tanto uma expressão de autoestima quanto, também, uma ferramenta de dominação!

     Pensando nisso, lembrei-me de um sambinha gravado pelo Cyro Aguiar em 1972 e que aborda a questão do esquecimento e do desuso em que caiu a língua portuguesa. Em um pequeno trecho diz o seguinte:

"Cansei de tanta coisa importada. Cansei de tanto som envenenado. Cansei, eu que nem sei falar inglês, venho pensando há mais de mês, 'prá onde vai meu português?'. (...) Meu português se perdeu, acabou, de cafona em versos fugiu..." 


("Asfalto falsificado" - Cyro Aguiar)

     Estou certo de que há ainda muito que ser lido em  português para que possamos merecer a línqua portuguesa. Assim como a Stacey Kent, que pela sua formação muito leu e compreendeu, seria bom que cultivássemos o hábito de empregar nossa língua em nossa fala e em nossas escritas, descobrindo e valorizando a maravilha sonora e a densidade de imagens que suas palavras nos inspiram. 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

MORRO VELHO


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
Elis Regina - "Morro Velho", de Milton Nascimento

     O calor da tarde está insuportável. De dentro do carro, preso no trânsito, observo a cidade. A avenida, que já teve de ambos os lados imóveis residenciais, transformou-se em centro econômico, tomada que está por todos os tipos de lojas e ricas agências bancárias. No centro, dividindo as mãos de trânsito da avenida, há um caminho feito de pedras e jardins mal cuidados, com enormes sibipirunas que se sucedem ao longo de sua extensão. O trânsito flui nervoso e preguiçosamente; o carro manca e chacoalha a cada pequeno deslocamento sobre as pedras que revestem o chão. 

     Mas ao ouvir no aparelho de som do carro a Elis Regina cantando "Morro Velho", esse universo de imóveis, carros e pedras em que me encontro transforma-se em riacho, plantação, sombras, meninos e passarinhos. Sua letra e sua melodia me colocam em uma fazenda onde poucas vezes estive... Lá o universo infantil, transparente, sem cor de pele e sem distinção de raças, distante de preconceitos aos olhos de uma criança, é colorido de fantasias...

"Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha - dá pro fundo ver"

     Nessa leveza toda, sentados livremente, os meninos observam com graça tudo que os rodeia.  

"Só poder sentar no morro, e ver tudo verdinho, lindo a crescer"

     E assim desenvolvem-se a amizade, as brincadeiras infantis e a meninice dos dois amigos.

"(...) correndo pela estrada atrás de passarinho
pela plantação adentro crescendo os dois meninos
sempre tão pequeninos (...)"

     Um é branco, e seu pai o proprietário; o outro é negro, filho de um dos trabalhadores da fazenda. O preconceito racial, arraigado na sociedade, é algo que as crianças não têm. Por isso, os dois meninos brincam juntos.

(fonte: http://euamompb.blogspot.com.br/2011/10/clube-da-esquina-os-sonhos-nao.html)

     Com o tempo, porém, a realidade os distancia... 

"Filho do senhor vai embora, tempo de estudo na cidade grande" 

     Fica, no entanto, no coração dos meninos que rompem a trajetória comum de suas vidas, o desejo de que a infância e tudo que a envolve nunca termine...

"Não me esqueça amigo, eu vou voltar.
Some longe o trenzinho, ao deus-dará" 

     Mas a cidade transforma, os indivíduos se transformam, os meninos se transformam; as vantagens e ordens da cidade distanciam... Por isso, ao retornar, o filho do proprietário, herdeiro natural da fazenda, já é outro, já é doutor... E naquilo tudo (e naqueles todos) vai mandar!


"Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha para apresentar
já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar" 

     No entanto aquele cujo pai trabalhava na fazenda, o "seu velho camarada", também cresceu. E, sem ter tido as mesmas oportunidades, simplesmente continua...  

     Da amizade à submissão, a vida prossegue...

"Mas seu velho camarada já não brinca, mas trabalha."

     Olho novamente o trânsito parado na avenida... Um menino paupérrimo e sorridente, com uma bola debaixo do braço, vem à janela do meu carro, fica me olhando, e me coloca de novo na cidade...  O trânsito segue, eu sigo, a vida segue... e o pensamento vai longe:

     - "É preciso olhar pelas crianças; é preciso aprender com elas, enquanto crianças. Ainda há árvores a serem plantadas, ainda há jardins a serem cuidados, ainda há muita infância dispersa pelas ruas; ainda há uma nação a ser construída..."    

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Morro Velho
(Mílton Nascimento)

No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu

Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho de branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho

Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, contra histórias prá moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
Mas seu velho camarada já não brinca, mas trabalha

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

UM BANCO NA PRAÇA


     Ficou um banco na praça. 

     Testemunha dos anos, de lá, com o olhar, atravessava as paredes - que não enxergava...  Ia além delas. Atravessava ruas, cidades e oceano, até tornar-se menino em alguma aldeia sofrida no Oriente Médio - de onde veio.

(Hussein no banco da praça - fonte: Lucas Amauri, postada no facebook)

     Foi-se o tempo, foi-se a aldeia, foi-se o menino, foi-se o homem: foi-se o Hussein - o "Beduíno".

     "Quem contará sua história?"

     Não deixou parentes, não deixou filhos; somente um banco vazio no canto da praça. 

     Hoje, no final da tarde, por ali transitarão apressados os automóveis e as bicicletas; os pedestres caminharão pelas calçadas e os pardais pousarão delicadamente nos jardins. Lá do alto os sinos de São Sebastião badalarão, solenemente, convocando os fiéis para a inflexibilidade da vida. 

(Hussein - Fonte: Dalva Altobelli Silveira, postada no facebook)


(Hussein - 01/fev/14 - seu último dia)