quarta-feira, 4 de março de 2015

SOMETHING (ou "Uma noitada no 'Bar do Ademar')


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     É terça-feira, oito e meia da noite, e estou em casa. Ligo o rádio portátil. Giro o dial de um lado para o outro, várias vezes, em diversas faixas de onda, mas não encontro nada aproveitável. Tudo descartável. Quanto maltrato à nossa já judiada inteligência!

     Penso em alguma coisa que me daria prazer em ouvir: uma música com letra inteligente, um programa de violão clássico, uma entrevista com algum pensador, um comentário a respeito de algum livro... alguma coisa... 

     - Ahhhh, isso mesmo: SOMETHING (alguma coisa)!
 
     Ai quem me dera poder ouvir no rádio essa música gravada pelos Beatles, uma, duas, três vezes... bem alto! E que após ouvi-la o locutor, com voz embargada de emoção, dissesse simplesmente "Que maravilha! vamos ouvi-la de novo!

     Lembro-me que, em relação à gravação original de "Something" pelos Beatles, o George e o Eric Clapton, ao vivo no Japão, fizeram a inserção de uma segunda parte no solo... 

(CLIQUE PARA OUVIR)

     Decido. O melhor a fazer é me deixar levar pelas sete cidades do Japão onde o disco foi gravado.

     Mas só as sete cidades do Japão não me bastam. Abri as portas de casa, entrei no carro, ganhei as ruas. Fui por instinto ao "Bar do Ademar", onde há duas pequenas mesas de madeira na calçada - e está sempre vazio. Estacionei bem em frente a uma delas. No balcão onde dois senhores conversavam peguei uma cerveja com um pacotinho de amendoim torrado e uma salsicha em conserva picada no prato. Sentei-me em um banquinho de uma das mesas externas, encostado na parede. Tendo o céu como limite fiquei olhando a noite, a lua, as estrelas. Liguei o aparelho de som do carro. Deixei suas portas abertas. Coloquei para tocar "Something". Bem alto. Olhei para o balcão e vi o Ademar esboçar um sorriso e erguer o polegar da mão direita. Ouvi a mesma música mais uma vez e, em seguida me aquietei e deixei o CD inteiro rolar. E continuei olhando o invisível. Só então me dei conta de que, em uma noite de terça-feira, sem qualquer perspectiva, estava fazendo um passeio por sete cidades do Japão, Londres, Paris, San Diego, Salvador, Uberlândia, São Paulo, Ribeirão, e, inevitavelmente, pelas antigas ruas de Guará... Até que, horas depois, o Ademar com uma vassoura começou a varrer a calçada. Aí então comecei a me perguntar: seria isso uma sugestão dele? um pedido? uma indireta? Não... o Ademar não poderia estar querendo fechar o Bar... a música estava tão boa! Então, para agradá-lo - ou convencê-lo a manter o bar aberto -, coloquei para tocar precisamente "While my guitar gently weeps", também com o George Harrison. Afinal, na segunda estrofe dessa música o George diz exatamente o que o Ademar poderia estar pensando e fazendo: 

"I look at the floor and I see it needs sweeping
(eu olho para o chão e vejo que ele precisa ser varrido)
while my guitar gently weeps"
(enquanto minha guitarra suavemente chora) 

(George Harrison - fonte: http://www.thegearpage.net/board/showthread.php?t=1453519


     Depois de algumas poucas cervejas, pacotes e mais pacotes de amendoim com alimentos em conserva, vi que já era tarde. Eu era o único cliente no bar. Pedi a conta, paguei e fui embora... não sem antes agradecer ao Ademar, com um abraço, pela grande noitada.


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