Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Entro em minha sala de trabalho. Lado a lado estão eles. Todos dispostos a dialogar comigo, uma vez, outra.... quantas vezes mais eu quiser. Pacientemente, incansavelmente, eles me esperam... Nada me cobram, nada me exigem... Anseio por abri-los, um a um, e aceitar deles a proposta que me fazem, para que eu vá além do vazio.
Foto: arq. pessoal
Comprometido com as tarefas do cotidiano, vou adiando... No entanto, a sensação de estar acompanhado das ideias neles contidas, e que me convidam a serem revistas e debatidas, é a mais confortante evidência de que não ando só: estou com os meus livros!
Pobre do cantor de mensagens vazias... pobre do cantor cujos trabalhos nada acrescentam... pobre do cantor que, querendo ser árvore, nunca conheceu a semente. Pobre do cantor que se rende e se desfaz em função do mercado... pobre do cantor cujo canto nasceu para ser esquecido... pobre do cantor que, subindo ao palco, empobrece a plateia... Pobre do cantor de canções descartáveis... pobre do cantor que, antes de cantar, não ouviu o recado do Pablo Milanés, cantado pelo Ruy e pelo Miltinho:
assim tivesse feito, teria pensado melhor antes de macular sua própria biografia... e a música brasileira, atual, não estaria dominada por tanta coisa ruim...
Pobre Del Cantor
(Pablo Milanés)
Pobre del cantor de
nuestros días
Que no arriesgue su
cuerda por no arriesgar su vida.
Pobre del cantor
que nunca sepa
Que fuimos la
semilla y hoy somos esta vida.
Pobre del cantor
que un día la historia
Lo borre sin la
gloria de haber tocado espinas.
Pobre del cantor
que fue marcado
Para sufrir un poco
y hoy está derrotado.
Pobre del cantor
que a sus informes
Les borren hasta el
nombre con copias asesinas.
Pobre del cantor
que no se alce
Y siga hacia
adelante con más canto y más vida.
Pobre del cantor
que no halle el modo
De tener bien
seguro su proceder con todos.
Pobre del cantor
que no se imponga
Con su canción de
gloria, con embarres y lodos.
Pobre Do Cantor
Pobre do cantor de
nossos dias
Que não arrisque
sua corda para não arriscar sua vida
Chico Buarque, dele e Dominguinhos, "Tantas Palavras" (1983) Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ivTTa-6nCpI
Cássia e Leandro estão casados há muito tempo. Há mais de trinta anos. Tiveram um casal de filhos - ambos, hoje, maiores, casados e graduados. Cássia e Leandro residem em um condomínio fechado, em uma casa com piscina e churrasqueira, em um bairro muito bonito na cidade. Sempre trabalharam muito, lutaram para conseguir tudo o que hoje, merecidamente, têm. Sempre deram aos filhos o que de melhor havia para ajudá-los a ter uma formação sólida e humanista. Era bonito ver a família reunida, a relação amorosa, a leveza de trato de um para com o outro, os diálogos à mesa nas reuniões com amigos...
Depois que os filhos saíram de casa e foram para a universidade, Cássia e Leandro se viram sós naquela casa enorme. Para tentarem amenizar a saudade e a ausência dos filhos, eles se empanturraram de tecnologia: instalaram um televisor em cada cômodo da casa, adquiriram lap tops, iphones, sensores de luz e de som, enfim, toda espécie de aparelho proposto na mídia pelos profissionais do marketing. Sem os filhos junto deles, ao retornarem do trabalho sentavam-se, perdidos, no sofá da sala, ligavam o televisor, e assim permaneciam, um ao lado do outro, ouvindo os telejornais e os comentários políticos, enquanto faziam joguinhos no iphone até adormecerem - muitas vezes no próprio sofá. Eu mesmo ouvi deles essa confissão, em telefonemas que fiz ao Leandro em horários além dos convencionais...
Há alguns anos reencontrei o Leandro em um café. Conversamos muito. Ele me falou dos filhos que estavam longe, que, com eles, trocava mensagens via whatsapp, e que eles estavam muito bem em suas respectivas profissões. Relembramos histórias, falamos de amigos, conversamos bastante. Contudo, como nunca havia acontecido antes, ouvi dele a queixa de que, entre ele e Cássia, o diálogo havia desaparecido; que pouco conversavam, que já não tinham assunto interessante, que, enfim, apesar dos anos de casamento, pareciam dois estranhos dentro de casa.
Pelo fato de Leandro e Cássia terem sido sempre bons companheiros um do outro, muito alegres, ativos, cheios de vida, de palavras e de ideias, a notícia me incomodou.
Passado algum tempo desde aquele nosso último encontro, revi o Leandro, no ano passado, na festa de aniversário dos seus 65 anos de vida. Depois de cumprimentá-lo, conversamos, falamos dos filhos, do trabalho, da família, e ainda combinamos nos visitarmos com maior frequência. Seu convite, no entanto, veio com uma observação: "não temos mais, em casa, televisores, lap tops, forno micro ondas, máquina de café, ou quaisquer outros aparelhos que funcionem ligados na tomada - a não ser três aparelhos de ar condicionado". E continuou: "Fomos assaltados em um começo de tarde; levaram de casa todos os aparelhos eletrônicos". Contou-me, por fim, que desde o assalto, sem os aparelhos que tinham, ele e Cássia passaram a ficar juntos, à noite, na sala de estar ou na varanda da casa, lendo e comentando, um com o outro, trechos das leituras que passaram a fazer. Que, inspirados por tais leituras e comentários, reencontraram as palavras, voltaram a dialogar, retomaram um estilo de vida que havia sido abandonado por eles.
Ao pensar na história do assalto, a impressão que me vem é de que a Cássia e o Leandro foram "recuperados" por um ladrão que, levando deles tudo o que os estava distanciando, trouxe a eles, de presente, a possibilidade de uma reaproximação pelas palavras, pelo diálogo - coisa que aparelho eletrônico nenhum consegue fazer. Torço, então, para que meus amigos, Cássia e Leandro, continuem lendo juntos, conversando, dialogando, saboreando e pronunciando as palavras redescobertas... e que resistam à tentação de adquirirem aparelhos eletrônicos, além dos estritamente necessários.