sábado, 14 de abril de 2018

CÁSSIA E LEANDRO


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Chico Buarque, dele e Dominguinhos, "Tantas Palavras" (1983)
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ivTTa-6nCpI

     Cássia e Leandro estão casados há muito tempo. Há mais de trinta anos. Tiveram um casal de filhos - ambos, hoje, maiores, casados e  graduados. Cássia e Leandro residem em um condomínio fechado, em uma casa com piscina e churrasqueira, em um bairro muito bonito na cidade. Sempre trabalharam muito, lutaram para conseguir tudo o que hoje, merecidamente, têm. Sempre deram aos filhos o que de melhor havia para ajudá-los a ter uma formação sólida e humanista. Era bonito ver a família reunida, a relação amorosa, a leveza de trato de um para com o outro, os diálogos à mesa nas reuniões com amigos...

     Depois que os filhos saíram de casa e foram para a universidade, Cássia e Leandro se viram sós naquela casa enorme. Para tentarem amenizar a saudade e a ausência dos filhos, eles se empanturraram de tecnologia: instalaram um televisor em cada cômodo da casa, adquiriram lap tops, iphones, sensores de luz e de som, enfim, toda espécie de aparelho proposto na mídia pelos profissionais do marketing. Sem os filhos junto deles, ao retornarem do trabalho sentavam-se, perdidos, no sofá da sala, ligavam o televisor, e assim permaneciam, um ao lado do outro, ouvindo os telejornais e os comentários políticos, enquanto faziam joguinhos no iphone até adormecerem - muitas vezes no próprio sofá. Eu mesmo ouvi deles essa confissão, em telefonemas que fiz ao Leandro em horários além dos convencionais...

     Há alguns anos reencontrei o Leandro em um café. Conversamos muito. Ele me falou dos filhos que estavam longe, que, com eles, trocava mensagens via whatsapp, e que eles estavam muito bem em suas respectivas profissões. Relembramos histórias, falamos de amigos, conversamos bastante. Contudo, como nunca havia acontecido antes, ouvi dele a queixa de que, entre ele e Cássia, o diálogo havia desaparecido; que pouco conversavam, que já não tinham assunto interessante, que, enfim, apesar dos anos de casamento, pareciam dois estranhos dentro de casa.

     Pelo fato de Leandro e Cássia terem sido sempre bons companheiros um do outro, muito alegres, ativos, cheios de vida, de palavras e de ideias, a notícia me incomodou.

     Passado algum tempo desde aquele nosso último encontro, revi o Leandro, no ano passado, na festa de aniversário dos seus 65 anos de vida. Depois de cumprimentá-lo, conversamos, falamos dos filhos, do trabalho, da família, e ainda combinamos nos visitarmos com maior frequência. Seu convite, no entanto, veio com uma observação: "não temos mais, em casa, televisores, lap tops, forno micro ondas, máquina de café, ou quaisquer outros aparelhos que funcionem ligados na tomada - a não ser três aparelhos de ar condicionado". E continuou: "Fomos assaltados em um começo de tarde; levaram de casa todos os aparelhos eletrônicos". Contou-me, por fim, que desde o assalto, sem os aparelhos que tinham, ele e Cássia passaram a ficar juntos, à noite, na sala de estar ou na varanda da casa, lendo e comentando, um com o outro, trechos das leituras que passaram a fazer. Que, inspirados por tais leituras e comentários, reencontraram as palavras, voltaram a dialogar, retomaram um estilo de vida que havia sido abandonado por eles.


Illustration of a husband and wife talking intently while they write down notes on pads of paper.
https://www.focusonthefamily.com/marriage/communication-and-conflict/when-talking-doesnt-come-easily

     Ao pensar na história do assalto, a impressão que me vem é de que a Cássia e o Leandro foram "recuperados" por um ladrão que, levando deles tudo o que os estava distanciando, trouxe a eles, de presente, a possibilidade de uma reaproximação pelas palavras, pelo diálogo - coisa que aparelho eletrônico nenhum consegue fazer. Torço, então, para que meus amigos, Cássia e Leandro, continuem lendo juntos, conversando, dialogando, saboreando e pronunciando as palavras redescobertas... e que resistam à tentação de adquirirem aparelhos eletrônicos, além dos estritamente necessários.   

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