quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

ORFEU E EURÍDICE




Vaso grego (detalhe) (aprox. 450 a.C.) - "Orfeu tocando sua harpa" 
https://user.phil.hhu.de/~holtei/surprise/popups/January07.htm


"Vai tua vida, pássaro contente,
vai tua vida, que eu estarei contigo"
(Monólogo de Orfeu - Vinícius de Moraes)


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"Valsa de Eurídice" (Vinícius de Moraes) - Baden Powell
https://www.youtube.com/watch?v=S6q9OldVVgg


     Em um dos 15 livros de "Metamorfoses", Publius Ovidius Naso, ou simplesmente Ovídio (43 a.C./17 d.C), narra o mito de Orfeu. Na mitologia grega, Orfeu, um poeta muito talentoso, ganhara de seu pai uma lira e tornara-se um músico dedicado. Quando ele a tocava, as pessoas, os animais e a natureza ficavam encantados, apaziguados e fascinados com sua melodia. Perdidamente apaixonado, Orfeu estava prestes a se casar. No entanto, uma picada de serpente ocasionou a morte de sua noiva, Eurídice. Orfeu, então, desceu ao mundo dos mortos para tentar resgatá-la. Hades, deus dos mortos, e Perséfone, sua esposa, comovidos com a história e extasiados com o som da lira de Orfeu, decidiram atendê-lo, mas com uma condição: que ele não olhasse para ela até que chegassem ao mundo superior. Mas Orfeu não resistiu e, no caminho, olhou para Eurídice. Consequentemente, pela desobediência, Eurídice foi levada de volta ao mundo dos mortos.

     Inspirado nessa narrativa, em 1954 Vinícius de Moraes escreveu a peça "Orfeu da Conceição", na qual transpôs o mito de Orfeu para a favela carioca.


cartaz 1
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/teatro/orfeu-da-conceicao

     Em "Orfeu da Conceição", todas as personagens normalmente são representadas por atores da raça negra; o instrumento é o violão, e não a lira. Com cenários de Oscar Niemeyer, Vinícius de Moraes escreveu as letras das músicas para a peça, que estreou no Rio de Janeiro em 1956, e Antônio Carlos Jobim as musicou. Na trilha sonora estavam: Ouverture; Monólogo de Orfeu; Um nome de mulher; Se todos fossem iguais a você; Mulher, sempre mulher; Eu e o meu amor; Lamento no morro.

     "Ouverture", que, na abertura da peça, corresponde à apresentação dos temas das principais personagens, foi feita sobre a "Valsa de Eurídice", a qual, quando composta pelo Vinícius, tinha uma outra finalidade: servir de presente para sua filha, Suzana de Moraes, que bacharelava no ginásio*.

     Na peça, Orfeu assim se despediu de Eurídice, sua amada, quando ela o deixa para rever sua mãe:

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"Monólogo de Orfeu" - Vinícius de Moraes
https://www.youtube.com/watch?v=lTlF_8QIHmQ

     Depois a peça ganhou asas: em 1959 virou filme - o premiado "Orfeu Negro"**, que foi refilmado*** em 1999.

     A peça deu uma dimensão internacional para a cultura e para a realidade de nosso país, inclusive com a inserção de folias de carnaval. Volta e meia releio "Orfeu da Conceição", e ouço a trilha sonora musicada por Tom Jobim. A cada releitura que faço me dou conta da falta que faz o nosso querido poeta, Vinícius de Moraes, e da infinidade de metamorfoses que sua obra promoveu e continua promovendo.

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*O próprio Vinícius contou essa história em um show realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador/BA, no ano de 1973. O show "O poeta, a moça e o violão" está acessível em https://www.youtube.com/watch?v=oijNgbjC8gc&t=2328
**"Black Orpheus" ( Brasil, França, Itália, 1959. Dir.: Marcel Camus)
***""Orfeu" (Brasil, 1999. Dir. Cacá Diégues; música de Caetano Veloso)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A SOBREVIVÊNCIA DAS UTOPIAS


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E DEPOIS REVER
"Imagine" - John Lennon


     Fiquei muito incomodado com uma mensagem que foi repassada ontem, em um grupo de amigos, via whatsapp. A mensagem* trazia o prenúncio de novos velhos tempos. Novos porque mirava o futuro; velhos porque propunha uma volta a tempos de triste memória.

     Na referida mensagem* não havia a indicação da autoria. Nela, o autor listava muitos artistas, professores, escritores, atores e pensadores brasileiros, e afirmava que eram comunistas que atentavam contra a democracia; que todos eles viviam à custa do capitalismo para difundir o comunismo e o socialismo.

     Abro aqui um parêntese.

     Aos que não se recordam, convém lembrar que houve no Brasil um tempo marcado pela censura e por arbitrariedades. Alguns artistas notáveis, pensadores, professores, intelectuais enfim, foram vítimas de Atos governamentais que deles retiraram o direito de exercer livremente suas atividades profissionais: professores não podiam ensinar; cantores não podiam cantar; escritores não podiam publicar; atores não podiam atuar. Em consequência disso muitos deles foram forçados a deixar o país, por não mais encontrarem aqui oportunidades de trabalho. E, pior, uma geração foi doutrinada a não questionar.

     Está evidente que o autor da mensagem não considerou que a própria Constituição Federal do Brasil estabelece a liberdade de manifestação do pensamento; que ela acrescenta, ainda, que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política.

     Pois bem.

     Se os intelectuais mencionados na mensagem são ou não comunistas, nada de mal há nisso: é um direito que lhes assiste - podem fazer suas escolhas, pensar e livremente manifestar seu pensamento e suas convicções.

     Parece que o autor da mensagem carregou para si a estranha ideia de ser detentor do espírito crítico para poder analisar e escolher por mim - e por nós todos - o que deva ser lido, assistido, pensado e concluído. Fica parecendo que ele acredita que não temos maturidade suficiente para fazermos nossas próprias escolhas.

     Não bastando essa crença, o autor da mensagem foi além: propôs ainda que nada mais, vindo dos intelectuais relacionados, seja lido, assistido, divulgado: que não assistamos seus programas de televisão, que não leiamos suas colunas nos jornais, que não compremos seus livros, que não assistamos suas peças de teatro, que não compremos seus CDs.

     Ao ler tal proposta, lembrei-me da censura que deu causa a tantos males em nosso país. Pareceu-me que o autor estava querendo, também, tirar de todos nós o direito de fazermos nossas próprias escolhas e de formarmos nossa própria convicção em relação ao confronto de ideias.

     No final, pedindo que a mensagem fosse compartilhada, o autor concluía dizendo que referidos pensadores estavam atentando contra a democracia; que eles viviam à custa do capitalismo para difundir o comunismo e o socialismo.

     Caro amigo, caro leitor: oxalá tenhamos todos o bom senso e o juízo crítico sensível a tal ponto de percebermos que a ideia de pensamento único, propagado por um novo "leviatã", anda solto no ar.

     Pensar, propagar e debater ideias, significa propor utopias. O que está contido na letra da belíssima canção "Imagine", composta por John Lennon, não é a proposta de uma utopia? A função do intelectual, do pensador, não é outra senão esta: a de propor utopias. E o sentido da vida, ah, sim... o sentido da vida está no caminhar, na busca de novos horizontes. Trata-se, portanto, e em suma, do livre direito ao exercício de sonhar. E as utopias consistem justamente nisso, em sonhar. A utopia não é um objetivo final, mas sim um constante e incessante processo de busca.


Astronomia
Fonte: http://mundogeografico.com.br/curso/

     Não convém que aplaudamos e propaguemos a proposta de infantilização de nossas mentes. Somente o livre debate de ideias pode nos mostrar os caminhos que valem a pena serem trilhados. E cabe a cada um de nós, livremente, fazermos nossas próprias escolhas. É claro que, para que os debates ocorram, faz-se necessário que ouçamos e respeitemos opiniões diferentes das nossas. O boicote proposto à livre manifestação do trabalho e do pensamento é, indubitavelmente, a oferta de um mesmo "cálice" retrógrado e generalizado.

     Torço e espero que o governo brasileiro, que, democraticamente eleito, bem ou mal, é agora o meu governo e o governo de todos, tenha maturidade para aceitar, debater e avaliar, de forma sensata, todas as propostas de construção de um país mais justo e solidário que vierem a ser formuladas por sonhadores e pensadores de quaisquer tendências políticas; que, enfim, as escolhas que forem feitas, sejam aquelas que privilegiem o livre caminhar e a sobrevivência das utopias.

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*A mensagem: "Alcione; André Singer; Barbara Gancia; Beth Carvalho; Camila Pitanga; Carlinhos Brown; Chico Buarque; Chico César; Chico Pinheiro; Cristiana Lôbo; Delfim Netto; Dinho Ouro Preto; Emir Sader; Fábio Konder Comparato; Felipe Santa Cruz; Fernanda Torres; Fernando Morais; Frei Betto; Gilberto Gil; Gregorio Duvivier; Guilherme Boulos; Jô Soares; José de Abreu; JucaKfouri; Kennedy Alencar; Laerte Coutinho; Leandro Karnal; Leonardo Attuch; Leonardo Boff; Leonardo Sakamoto; Letícia Sabatella; Luís Carlos Bresser-Pereira; Luis Fernando Verissimo; Luis Nassif; Luiz Carlos Barreto; Luiz Gonzaga Belluzzo; Luiza Trajano (Magazine Luiza); Marcelo Adnet; Marcio França; Maria Rita Kehl; Marieta Severo; Marilena Chaui; Mário Sérgio Cortella; Mino Carta; Miriam Leitão; Osmar Prado; Pablo Villaça; Paulo Betti; Paulo Henrique Amorim; Paulo Nogueira Batista Jr.; Pedro Bial; Preta Gil; Reinaldo Azevedo; Renato Janine Ribeiro; Serginho Groisman; Tico Santa Cruz; Tonico Pereira; Viviane Mosé; Vladimir Safatle; Xico Sá; Wagner Moura - Não comprem mais nada deles. Não assistam (a) seus  programas, não leiam suas colunas. Não comprem seus livros, não vão às suas peças de teatro, não comprem seus CDs.. Eles precisam saber que não será impune atentar contra a Democracia. Viver as custas do Capitalismo e difundir Comunismo/Socialismo, é no mínimo falta de caráter. - *NÃO ESQUEÇA DE COMPARTILHAR!!!*
**Em pesquisa realizada na internet, o site a seguir mencionado atribui a autoria do referido artigo ao economista Rodrigo Constantino (http://www.chumbogordo.com.br/22881-silencio-a-gente-ja-nao-sabe-nem-se-tambem-pede-a-eles-para-ficar-melhor-sem-ruidos/)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

INCOMODADO


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
"A Televisão" - Chico Buarque
https://www.youtube.com/watch?v=PBkIp5WmO5I


     Tudo está muito bem arranjado. Tudo sempre esteve assim, bem arranjado. A qualquer momento posso erguer a cabeça, redirecionar o olhar e me harmonizar com o que me rodeia: as árvores, os jardins, os vizinhos, as casas, o movimento nas ruas, os cafés, as pessoas... Mas não devo me distanciar dos interesses e valores presentes. Para não me tornar retrógrado e ultrapassado devo permanecer de cabeça baixa, sem observar, sem notar, sem ter tempo para pensar, sem me atentar para o mundo ao meu redor... 

     - Não se tem mais paciência para atenções ao mundo ao redor...

     As distâncias foram vencidas... De cabeça baixa, o planeta encolheu, a vida encolheu, eu encolhi...

     Sigo olhando para baixo; limito o meu campo de visão a uma tela em forma de retângulo. Seis por doze; setenta e dois centímetros quadrados: essa é a área de captação da minha visão - limite de inspiração para minhas emoções.

     Sobre a superfície dessa tela o mundo gira em um deslizar de dedos; nela, o planeta dá voltas sem sabor, sem perfume, sem calor. Na esteira das forças que conduzem a sua dinâmica o planeta segue girando... passo eu, passamos nós: alma congelada, alma esvaziada, alma anestesiada; alma esmagada, alma virtual.


"Melancholy" (2012) - Albert Gyorgy
Fonte: https://www.jornalterral.com.br/mt/o-vazio-existencial

     - Facilitou!, admito. Aplaudo todas as facilidades. Também faço e preciso fazer uso de tudo o que a tecnologia proporciona.

     Ah... mas essa erosão promovida pela tecnologia, essa indiferença, essa ausência de sensibilidade em relação ao que está por trás da tela... essa necessidade de se ter, para ser, a própria imagem deslizando pelas redes sociais...

     - Isso incomoda!