segunda-feira, 27 de julho de 2020

SAUDADE


Ficheiro:Almeida Júnior - Saudade, 1899.jpg
"Saudade" - Almeida Júnior (1899) - Pinacoteca do Estado de SP


     No final de semana que passou, eu estava assistindo pela internet a um colóquio internacional sobre a obra literária e musical de Vinícius de Moraes.  Em um determinado momento um dos participantes deparou-se com a palavra "saudade", e comentou que não a conhecia. Um dos comentaristas, mexicano, notando tal dificuldade, tentou explicar o seu significado.

     Enquanto eu ouvia as explicações, eu me lembrava de uma guarânia composta há muitos anos por Mário Palmério*, no período em que ele exercia as funções de embaixador do Brasil no Paraguai. Essa guarânia foi escrita exatamente para o mesmo fim: explicar o significado da palavra "saudade".

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Oscar Barreto Aguayo - "Saudade" (Mário Palmério)

     Para melhor se fazer entender, Mário Palmério não procurou sinônimos. Ele trilhou o caminho dos sentimentos. Assim, na letra da guarânia, antes mesmo de explicar o significado da palavra "saudade", ele alertou que seria necessário que os significados das palavras "querer" e "ternura" fossem previamente conhecidos. Acrescentou, ainda, que o interessado deveria ter sentido, um dia, a perda de um grande amor. Que só então, dotado de tais requisitos, o interessado teria condição de compreender, ou, melhor ainda, de sentir o seu significado. Ele explicou que tal resultado seria decorrente da perda de um grande amor. Que "saudade", portanto, corresponde ao sentimento advindo daquela perda, a qual traz consigo a noção que se tem de "distância", de "ausência" e de "sofrimento".

     E foi assim então, com objetivo de explicar o significado da palavra "saudade", patrimônio da língua portuguesa, que nasceu essa bela guarânia: "Saudade" - depois do Hino Nacional do Paraguai, a música mais conhecida naquele país.

SAUDADE
(Mário Palmério)

Si insistes en saber lo que es saudade
Tendrás que antes de todo conocer,
Sentir lo que es querer, lo que es ternura,
Tener por bien un puro amor, vivir!

Después comprenderás lo que es saudade
Después que hayas perdido aquel amor
Saudade es soledad, melancolia,
Es lejania, es recordar, sufrir!


__________________________  
* Mário de Ascenção Palmério (1916-1996) - educador, diplomata e romancista. Ocupou a Cadeira 2 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Guimarães Rosa. Embaixador do Brasil no Paraguai de 09/1962 a 04/1964. Transformou Uberaba/MG em cidade universitária, com a criação de diversos cursos superiores.


domingo, 5 de julho de 2020

GOBINEAU


Joseph Arthur de Gobineau

     Durante o período colonial esteve em nosso país um francês meio maluco e, ao mesmo tempo, um tanto quanto interessante. Maluco porque suas ideias eram execráveis, interessante porque, mesmo com tais ideias, acabou conquistando a amizade do nosso Imperador.

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J. P. Rampal - Franz Benda Flute Sonata in F Major

     Esse francês chamava-se Gobineau. Desembarcou aqui no Brasil, à contragosto seu, na qualidade de "embaixador" da França, e aqui permaneceu de 1869 a 1870 - cerca de um ano, portanto.

     Gobineau, que trazia com seu nome o título de Conde, ficou muito conhecido em todo o mundo por suas teorias. Em 1855, antes mesmo de vir ao Brasil, ele publicou um livro intitulado "Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas". Tratava-se de um ensaio no qual ele procurava explicar, sem bases científicas, o motivo pelo qual algumas sociedades progrediam enquanto outras fracassavam.

     No seu ensaio, Gobineau levantou algumas hipóteses: pensou no fanatismo, no luxo e na preguiça, na corrupção de costumes, no abandono dos preceitos religiosos, nos maus governos, e, dentre outras, no envelhecimento das civilizações. Para ele, nenhuma dessas hipóteses justificava a falência de uma nação. Ele acreditava que a justificativa da decadência das civilizações era a questão étnica. Portanto, para ele, a responsável pela degradação de todas as civilizações era a mistura de raças.

     Em virtude da publicação de seu ensaio, Gobineau ficou conhecido como teórico do racialismo - teoria (já ultrapassada) segundo a qual a espécie humana se divide em raças. Assim, na linha de seu entendimento, o Brasil encontrava-se em avançado processo de perdição.

     Imaginem só com que estado de espírito Gobineau desembarcou aqui em 1869! Naquela época a população brasileira era composta por um elevado número de escravos, mulatos e mestiços. Observando o nosso povo e as nossas cidades, assim ele nos descreveu em diversas cartas* enviadas a seus amigos e familiares:

"Salvo o Imperador, não há ninguém neste deserto povoado de malandros"

"Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto".


"Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos".


     Com essa imagem tão preconceituosa em relação ao brasileiro, Gobineau achou o posto no Brasil indigno de seus méritos. E detestou o nosso país! Contudo, ele foi um grande amigo e admirador de d. Pedro II.

     - "Como pode??"

     O que poderia ter feito com que Gobineau e d. Pedro II desenvolvessem uma amizade marcada por diálogo, reuniões, visitas, livre trânsito do francês na Corte brasileira, troca de correspondências e de ideias sobre viagens, romances e poesias? O que teria feito d.Pedro II ter tido paciência de ouvir Gobineau, suas ideias e suas terias?

     Em suas correspondências, assim Gobineau se referia a d. Pedro II: 

"Tenho pena que ele seja Imperador. Tem demasiados talento e mérito para isso".

"Seu maior prazer é ampliar sua instrução e progredir, aplicando-se em possuir toda espécie de conhecimentos".

Dom Pedro II, segundo imperador do Brasil
d. Pedro II

     Todos nós sabemos que d. Pedro II foi um apaixonado pelo Brasil e pelo povo brasileiro; que tornou-se um servidor público exemplar, um estudioso que amava as ciências e as letras, e que cumpria seus deveres sem se deixar levar por paixões**.

     Pois tanto Gobineau quanto d. Pedro II eram eruditos. Ambos compreendiam e discutiam o valor das artes. Em seus encontros eles conversavam sobre livros, viagens, música, esculturas e pinturas. O próprio Gobineau era escultor. Assim, mesmo discordando de muitas das teorias do "embaixador" francês, d. Pedro II gostava de sua companhia.

     Foram, portanto, os livros, a música, a escultura, a literatura e a poesia os responsáveis pela aproximação e pela amizade que existiu entre d. Pedro II e o Conde de Gobineau.

Mima - Joseph Arthur Gobineau — Google Arts & Culture
"Mima" - Escultura em mármore branco (Arthur de Gobineau)
Acervo do Museu Imperial (Petrópolis, RJ)

     Hoje, pensando nessa história, vislumbro um caminho que pode nos desviar da imensa intolerância reinante por todo lado: a arte! Os homens, quando tomados pela inspiração artística, dialogam e convivem de maneira respeitosa e construtiva - mesmo quando suas ideias são divergentes. Pelo menos foi isso que nos mostrou a história que acabei de contar. 

     - Que nos sirva de inspiração!


__________________________ 
*RAEDERS, Georges. O Conde de Gobineau no Brasil. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1988
**CARVALHO, José Murilo de. D. PEDRO II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007