Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
O que faria uma pessoa inteligente que estivesse chegando no Brasil em 1898, dois anos do final do século XIX, com um cinematógrafo em mãos? E se essa pessoa, com esse cinematógrafo em mãos, estivesse adentrando a Baia de Guanabara a bordo de um navio? E se fosse um dia ensolarado? Diante de tanto estímulo visual, para onde essa pessoa direcionaria seu olhar? A Oeste veria a cidade do Rio de Janeiro; a Leste, Niterói; ao Norte, a Ilha do Governador... E ali, diante de seus olhos, o Pão de Açúcar e o Morro da Urca. Para não se esquecer de nada...
Foi isso mesmo que essa pessoa, chamada Afonso Segreto, fez: a partir do navio no qual viajava, vindo da Europa, registrou em imagens que se moviam a entrada na Baia de Guanabara. Era o dia 19 de junho de 1898. Apesar de algumas controvérsias, as imagens que captou naquele dia são consideradas as primeiras imagens cinematográficas tomadas no Brasil.
A partir daí o cinema brasileiro foi montado e projetado sob ideias e propósitos diversos: do cinema mudo passamos aos "posados" e "cantados", adaptamos textos literários para as telas; por diversos cantos do Brasil pensamos e trabalhamos o cinema (ciclos regionais); projetamos nas telas as chanchadas; expusemos nossa realidade no "cinema novo"; zombamos de tudo e de todos no "cinema marginal"; apelamos para a pornochanchada; e depois de um período de grandes dificuldades, voltamos a insistir com o cinema nacional para, no presente, nos encontrarmos jogados no fundo de um abismo.
Mas... resistimos! Há mentes brilhantes e cineastas geniais no Brasil. Pela telona, e com o estímulo do Estado, o nosso povo, as nossas paisagens e a nossa cultura podem correr mundo. Somos o país que queremos fazer - ou que pelo menos tentamos.
Nesse 19 de junho, as nossas homenagens ao cinema brasileiro.
Do final do ano de 1999 até o falecimento do apresentador, em 2008, eu costumava assistir, semanalmente, a um programa na TV Senado chamado "Quem tem medo da música clássica?"
O programa, que ia ao ar tarde da noite, era apresentado pelo então senador fluminense, poeta, professor e advogado, Artur da Távola - pseudônimo de Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros (1936-2008). Foi nesse programa que conheci um pouco da história de muitos dos grandes compositores e suas obras, assisti a alguns concertos gravados por orquestras renomadas, e conheci muitos instrumentos musicais.
Há anos a TV Senado montou e comercializou um kit contendo DVDs com as gravações de alguns desses programas. Na época eu quis adquirir esse kit para poder rever, sempre que quisesse, os programas gravados que tanto me agradavam, mas nunca consegui encontrá-lo.
Lembrei-me desse programa agora porque estava lendo "Vida de Cinema", livro do cineasta Cacá Diegues (Ed. Objetiva, 2014), no qual o autor fala de sua vida e de seu trabalho, e comenta sobre as pessoas que o influenciaram e que foram importantes em sua trajetória: o Artur da Távola foi um deles. Posso inclusive dizer que, sem que o tivesse sabido, o Artur da Távola, por intermédio desse programa da TV Senado (e, posteriormente, pelos seus livros), assim como tanta gente, também foi importante para a minha formação.
Bom... tudo isso para contar que quero deixar guardado aqui pelo menos um dos programas que assisti, como se estivesse reservando para mim o privilégio de poder revê-lo sempre que o desejar.
Espero que todo aquele que tiver acesso a esta pequena publicação também possa se sentir inspirado a viajar pela música clássica, desenvolvendo, inclusive, um gosto significativo por ela. Recomendo que o vídeo seja assistido à luz de apenas um pequeno abajur, em silêncio, na companhia de ninguém mais a não ser de si mesmo... Se for madrugada, melhor ainda. Afinal, nas palavras do próprio Artur da Távola, "música é vida interior, e quem tem vida interior, jamais padece de solidão".
Em 1910, para retratar a boemia e a marginalidade portuguesas da época, José Malhoa* pintou um quadro ao qual deu o nome de "O Fado"**. Nesse seu trabalho, o artista mostra o ambiente interno de uma tasca portuguesa. Nela, um fadista com sua guitarra, em um banco de madeira, canta para uma mulher que está sentada em uma cadeira, com um cigarro entre os dedos de sua mão direita e com a perna esquerda pousada sobre o banco no qual o fadista está sentado. Com o cotovelo do braço esquerdo sobre a mesa a mulher sustenta sua cabeça com a palma da mão, e tem a face voltada para o fadista. Com ele, ela parece estabelecer uma comunicação de perfeita sintonia e cumplicidade: cantando, ele expõe o seu fado; ela, inspirada pelo canto que ouve, parece que se derrama em pensamentos melancólicos - como melancólicas são as histórias narradas nas letras dos fados.
CLIQUE NA SETA
Amália Rodrigues - "Fado Malhoa"
https://www.youtube.com/watch?v=toe-KBYP7N4
Amâncio, um famoso fadista*** na época, e uma mulher de má reputação que ficou conhecida como Adelaide da Facada (porque tinha no rosto uma cicatriz), foram modelos e inspiração para o artista.
Por intermédio da criatividade portuguesa, a obra artística até ganhou vida. Em uma curta fantasia****, a fadista Amália Rodrigues, observando o quadro, "entra" nele, como se ela mesma fosse a Adelaide da Facada, levanta-se da cadeira, e canta um fado: o "Fado Malhoa".
Fado Malhoa
(José Galhardo/Frederico Valério) Alguém que Deus já lá tem, pintor consagrado
Que foi bem grande e nos doi já ser do passado
Pintou numa tela com arte e com vida
A trova mais bela da terra mais querida
Subiu a um quarto que viu à luz do petróleo
E fez o mais português dos quadros a óleo
Um Zé de Samarra, com a amante a seu lado
Com os dedos agarra, percorre a guitarra
E ali vê-se o fado
Faz rir a ideia de ouvir com os olhos, senhores
Fará, mas não p'ra quem já o viu mas em cores
Há vozes da Alfama naquela pintura
E a banza derrama canções de amargura
Dali vos digo que ouvi a voz que se esmera
Boçal dum Faia banal, cantando a Severa
Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa
Boémia e fadista aquilo é de artista
Aquilo é Malhoa
Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa
Boémia e fadista aquilo é de artista
E aquilo é Malhoa
Sempre gostei desse quadro, e muitas vezes me imaginei conhecendo-o de perto. Ele tornou-se um clássico: tanto que é reproduzido em muitos trabalhos em azulejos trabalhados em azul, comuns no país.
"O Fado" - trabalho em azulejo - Foto: arq. pessoal
Os azulejos pintados são uma marca da cultura portuguesa. Tanto que há, no país, muitos edifícios públicos e igrejas (inclusive um museu - o Museu do Azulejo, em Lisboa) decorados com trabalhos feitos em azulejo, que contam a história de seu povo, de suas lutas e de seus personagens.
No final do ano passado, em viagem a Portugal, eu e minha mulher fomos caminhar pelo bairro de Alfama, em Lisboa. Em uma de suas ruelas encontramos uma tasca deliciosamente aconchegante: as mesinhas decoradas com toalhas vermelhas sobre a mesa, postas para o jantar, e a figura do quadro de José Malhoa em destaque, ao fundo, pintada em cerâmica. Senti como se aquele aparente aconchego fosse o convite perfeito que precisávamos para passar a noite ali.
"A Tasca" - Foto: arq. pessoal
E assim fizemos. Encantados com o ambiente, ficamos ali para o jantar e para ouvir um fadista cantar, mergulhados no clima de nostalgia inspirado pelo local e pela música.
Ao final da noite fomos agradecer ao gerente da tasca pelo jantar. Comentando com ele sobre "O Fado" em azulejo, na parede da tasca, ouvimos dele a informação de que o quadro original de José Malhoa ficava em exposição permanente no Museu do Fado, a duzentos metros dali.
"O Museu do Fado" - Foto: arq. pessoal
Na tarde do dia seguinte voltamos a Alfama. Além de gostar de museus, eu tinha agora um motivo a mais para conhecer o Museu do Fado. Descemos apressadamente a ruela da zona histórica de Lisboa, onde havíamos estado na noite anterior, e seguimos em frente até chegar ao Largo do Chafariz - endereço do Museu do Fado. Foi ali então que, por um bom tempo, deixei passear os meus olhos no original daquele quadro de que tanto gosto, e que simboliza muito da cultura do povo português: "O Fado", de José Malhoa. Como recordação, além de muitas fotos, trouxe dez cartões-postais com a imagem do quadro para a minha coleção. _____________________________________ *José Vital Branco Malhoa (1855-1933) foi um pintor, desenhista e professor português. **"O Fado" - óleo sobre tela, 150 cm de altura e 183 cm de largura ***na época, início do século XX, "fadista" era sinônimo de "marginal" ****Este pequeno filme, de 1947, pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=ZNCfktEU5L8&list=RDZNCfktEU5L8&start_radio=1&t=6