Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
O nosso querido poeta Vinícius de Moraes ocupou diversos postos na carreira diplomática brasileira. No exterior, ocupou postos em Los Angeles, Paris e Montevideo. No ano de 1966, como representante do governo brasileiro, recebeu do governo francês a condecoração do grau de "Oficial". Acontece que, no mesmo dia, e na mesma cerimônia, foi também condecorado, como "Cavaleiro", um outro brasileiro: Pelé.
Em crônica publicada no jornal Última Hora, no mesmo ano de 1966, e posteriormente em sua coletânea de crônicas "Para uma menina com uma flor", Vinícius expressou o orgulho e a admiração que sentia pelo nosso craque de futebol.
Condecorado como representante de governo, Vinícius orgulhava-se muito de Pelé; pois diferente dele, Pelé estava sendo distinguido pela Ordem Nacional de Mérito da França não como representante de governo, mas como "representante de si mesmo".
A seguir, a crônica "Um abraço em Pelé" - do nosso querido Vinícius de Moraes. (disponível em https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/prosa/um-abraco-em-pele)
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UM ABRAÇO EM PELÉ
Eu ainda não tive o prazer de lhe ser apresentado, meu caro Pelé, mas agora, com o fato de termos sido condecorados juntos pelo governo de França - você no grau de Cavaleiro e eu no de Oficial: e mais justo me pareceria o contrário - vamos certamente nos conhecer e tornar amigos. Ninguém mais que você merece tão alta distinção, sobretudo por ter sido conferida espontaneamente - pois ninguém mais que você tem levado o nome do Brasil para fora de nossas fronteiras. Da Sibéria à Patagônia todo mundo conhece Pelé; e eu estou certo de que você entraria fácil na lista das dez personalidades mais famosas de nossos dias.
Não posso disfarçar o orgulho que a condecoração me causa, embora seja, de natureza, avesso a honrarias; e orgulho tanto maior porque nela estamos juntos: preto e branco (as cores do meu Botafogo!) e também as cores irmãs de nossa integração racial. Sim, caro Pelé, nós representamos, em face da comenda que nos é conferida, o Brasil racialmente integrado, o Brasil sem ódio e sem complexos, o Brasil que olha para o futuro sem medo porque, apesar dos pesares, é bom de mulher, bom de música, bom de poesia, bom de pintura, bom de arquitetura e bom de bola. Particularmente por isso considero-me feliz de estar a seu lado no momento em que nos colocarem no peito a condecoração.
Que você tenha sido distinguido pela Ordem Nacional do Mérito da França nada me parece mais natural. A França sempre deu um alto valor ao gênio, e você, meu grande Pelé, é um gênio completo, porque o seu futebol representa um reflexo imediato de sua cabeça nos seus pés. Eu não sou gênio, não. Eu tenho que pensar um bocado para que a mão transmita direito o que a cabeça lucubrou. Meus gols são mais raros que os seus. Você é com justa razão chamado o Rei. Quanto a mim, que rei sou eu?
Mas nada disso turva a satisfação que sinto em ser o seu Coutinho nesta nova investida do Brasil na área internacional. Parabéns, meu caro Pelé. Parabéns e o melhor abraço aqui do seu irmãozinho!
Nunca fui fumante. Não me agrada cheiro de fumaça impregnada na roupa, nas mãos, nos cabelos, na ponta dos dedos. E mais: dentes amarelados, tosse, pigarro... Não, não dá. De interessante, no cigarro aceso, só mesmo a fumaça que dá voltas, que fica passeando pelo espaço que circunda o fumante. Se houver algum foco de luz iluminando exclusivamente o fumante, a fumaça fica mais interessante ainda: ela transmite mensagens.
Outro dia, de longe, eu fiquei observando a fumaça produzida pelo cigarro de um fumante que estava sentado, quieto, na varanda de um bar: era azul-viva; mas ficava acinzentada, tétrica, quando, depois de ter transitado pelos pulmões do fumante, era expelida no ar pelo sopro de sua boca. Fumaça de cigarro no ar, para ser observada, requer paciência. Ela fica ali, dança devagar, vai subindo, girando...
O Baden Powell, certa vez, em um estúdio francês, enquanto gravava "Round Midnight", prendia entre os dedos mínimo e anular, de sua mão direita, um cigarro aceso. Enquanto executava... enquanto mergulhava... enquanto voava em "Round Midnight", a fumaça produzida pela queima de seu cigarro criava em torno dele um ambiente metafísico de ligação do humano com o divino, juntando homem a entidades celestiais... E ele, de olhos fechados, comunicava com suas mãos, com seus dedos, com seu violão, toda beleza que um homem é capaz de comunicar quando transcende...
E após ter assistido ao referido vídeo, fui tomado por uma vontade incontida... Não de fumar, mas de fazer gerar fumaça poética... para ficar só, ouvir música.... desenvolver em torno de mim toda poesia que fumaça de cigarro que sobe pode produzir.
Fui então a uma tabacaria, escolhi um cachimbo e um pequeno pacote de tabaco inglês, com tempero de chocolate. Voltei para casa depressa, querendo me sentar sozinho em uma poltrona, ficar ouvindo as gravações do Baden Powell, e, como ele, ficar produzindo fumaça poética pela queima do tabaco ajeitado no fornilho do cachimbo que havia comprado. Cuidei do abajur ao meu lado, criei um ambiente de penumbra; escolhi os meus discos prediletos, uma bebida, e acendi o cachimbo. Senti-me, naquele momento, como uma divindade celestial: eu estava banhado em música, poesia, e fumaça de tabaco temperado com chocolate queimado. Não; eu não me encontrava no paraíso: eu era, na verdade, o próprio paraíso...
O cachimbo, dizem os entendidos no assunto, "é uma forma de transformar um momento de ócio num ritual de meditação e prazer". E era justamente isso o que eu buscava: meditação e prazer.
À primeira música, uma tragada, fumo queimado no ar; à segunda música, tragadas, bebida, e fumo queimado no ar... Penumbra. À terceira música, tragadas, bebida, fumo queimado... e tosse. De súbito fui tomado por uma leveza... uma sensação estranha... uma tontura... Fiquei com a impressão de que estava girando com a fumaça... E não podendo mais me controlar, gritei:
- Denise!!!! Tô gelado. Vou desmaiar!
Ao ouvir-me, mais que depressa minha esposa despertou de seu sono; veio ao meu escritório, examinou o meu estado, tomou-me a mão, percebeu o suor e a temperatura fria do meu corpo. Orientando-me a baixar a cabeça, ela correu até a cozinha e retornou com um copo de leite gelado, com algumas pitadas de sal, em suas mãos:
- Tome isso e apague essa fumaceira. Você não sabe que isso não é para tragar?
Eu não sabia. Depois desse episódio só fui voltar ao cachimbo anos depois, durante o inverno, não para fumar, mas somente para prender entre as minhas mãos o cachimbo aceso, e mantê-las aquecidas... E ficar olhando a fumaça dançar... sentindo no ar aquele cheirinho gostoso de tabaco temperado com chocolate.
Baden Powell - "Round about Midnight" (Thelonious Monk)
Há 32 anos, com 77 de vida, falecia no Rio de Janeiro o capixaba Rubem Braga. Introspectivo, observador e meio casmurro, escreveu crônicas saborosas, marcadas por simplicidade e lirismo. Meu primeiro contato com sua obra foi ainda no curso ginasial quando, em uma aula de Português, fui chamado para ler e analisar "A outra noite" - uma das crônicas escritas pelo Rubem Braga, indicada para estudo no livro didático que o professor havia adotado. Desde então o RB e o seu jeito leve e simples de escrever passou a ser, para mim, uma grande referência. Rubem Braga faleceu em 19 de dezembro de 1990, mas muitas das crônicas que escreveu ainda estão por ser reunidas em livro. Há pouco recebi a notícia de que sua cinebiografia "O voo da borboleta amarela", de Jorge Oliveira, filmado no Espírito Santo, no Rio, e em Braga (Portugal), foi proclamado vencedor de Melhor Documentário do 13º FesTin - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa (Lisboa, de 09 a 14/dezembro/22).
Fico por aqui. Mas não posso deixar de dizer que a ansiedade já é grande para poder assistir ao filme e rever o "velho" Braga - que em sua maturidade, no filme, é interpretado por um ator brasileiro que, em 1950, levou ao teatro a crônica "Ai de ti Copacabana" (e esse ator ainda tem muito a nos contar).