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("Um homem chamado Alfredo" - Vinícius e Toquinho)
"Há tanta gente sozinha,
que a gente mal adivinha"
(Vinícius e Toquinho em
"Um homem chamado Alfredo)
Logo que me casei, há muitos anos, fui morar em um prédio com vaga na garagem para apenas um carro. Como eu e minha esposa tínhamos cada um o seu próprio carro, precisamos procurar algum lugar para guardar um deles - o meu, evidentemente.
Foi aí que, indicado pelo porteiro do prédio, conheci Damião - dono de um estacionamento vizinho de casa. Acertado o preço, combinamos as regras:
- “Doutor”, disse-me ele, “depois das seis o portão do estacionamento já vai estar fechado, mas o senhor pode entrar e sair a hora que quiser: fique à vontade” – e entregou-me a chave.
Com o passar dos dias percebi que o Damião morava sozinho em um cômodo minúsculo dentro do próprio estacionamento. Ali ele cozinhava, assistia TV, fazia sua higiene pessoal e cuidava da sua roupa.
Nos finais de tarde, quando eu chegava, o Damião vinha para o lado do meu carro querendo puxar assunto. Falava de futebol, de culinária, do movimento do dia... Mas gostava também de falar de sua cidadezinha natal no nordeste, onde viveu até os primeiros anos da adolescência com os pais. Contava que depois veio sozinho para o sul e acabou por fixar-se em Ribeirão Preto, onde já vivia há muito tempo.
Da sacada do apartamento onde eu morava, no início dos finais de semana, eu sempre o via com uma latinha de cerveja na mão observando o movimento. Eu descia, ia até lá onde ele estava, e ficava ouvindo, conversando, e trocando histórias de carros, manobras e motoristas.
Ele me parecia muito só e carente de gente que se dispusesse a ouvi-lo. Nos seus quase setenta anos de idade, calvo, cabelos brancos, barba branca, percebi que vivia na ilusão de ter uma companheira. Dizia que seria bom encontrar alguém para que um cuidasse do outro; que não era bom viver sozinho. Contudo, nas poucas vezes que entrava no assunto, um tanto quanto desiludido lamentava:
- “Não dá, doutor”, dizia ele, “as mulheres hoje estão cheias de problemas, de vaidade; só querem luxo, viver na moleza, explorar a gente. Elas não sabem nem pregar um botão na camisa, quanto mais fazer um franguinho com batata e um arrozinho branco pra gente comer junto”.
Um belo dia, chegando para guardar o carro, vi o Damião aflito, falante e esperançoso. Muito brilho saltava dos seus olhos. Enquanto eu abria a porta do carro, ele se aproximou e disse-me com convicção:
- “Eh, doutor, logo vou ter uma companheira, escolhida a dedo. O senhor vai ter uma surpresa!”
Perguntei a ele quem era ela, o que fazia, que idade tinha, mas ele, sorrindo como quem tranca um segredo dentro do peito, reservou-se ao direito de não revelá-lo. Respeitei seu capricho, mas fiquei curioso, torcendo para que fosse alguém que de fato conseguisse ver no Damião a alma boa que ali morava, sua nobreza de propósitos, sua simplicidade, sua pureza de espírito...
Naquele final de semana sentei-me na sacada de casa lendo um jornal local, no qual havia um anúncio que dizia o seguinte:
HOMEM HONESTO, SOLTEIRO, TRABALHADOR,
SEM VÍCIO, DE BOA IDADE,
PROCURA COMPANHEIRA PARA COMPROMISSO SÉRIO PARA UMA VIDA TODA.
FAVOR MANDAR CARTA COM FOTO. RUA X, nº Y.
Foi aí que notei que o endereço era o do estacionamento.
(Fonte: http://www.divine.vic.gov.au/rights-and-policies/know-your-rights/getting-scoop-disability)
A partir de então fiquei mais atento ainda às conversas com o Damião, querendo que ele tomasse a iniciativa de me contar alguma coisa. Mas os dias iam se passando, e ele não comentava nada. Percebi que o brilho nos seus olhos ia se apagando, e seu entusiasmo diminuindo. Não perguntei nada a ele, e ele também não entrou mais no assunto.
Alguns anos já se passaram desde que me mudei para um bairro distante dali. Eventualmente passo de carro no meio da tarde em frente ao estacionamento do Damião. Buzino e aceno para ele quando o vejo no portão.
Outro dia, em uma padaria, vi o porteiro do prédio que havia me indicado o estacionamento do Damião, e que ainda mantém o mesmo emprego. Perguntei quais notícias tinha dele, e ele me contou que o Damião continuava como sempre: sozinho, com poucos amigos, trabalhando com muita responsabilidade, e morando do mesmo jeito. Contou-me também que nos finais de tarde de vez em quando o vê no portão do estacionamento olhando os carros na rua.
Fiquei contente com a notícia. Quero ainda acreditar que não morreu nele a esperança de receber de algum carro da rua um sorriso de mulher que reacenda seu entusiasmo. Torço para que ele encontre alguém – ou melhor, para que alguém consiga enxergar nessa alma simples e boa um companheiro para a vida toda – conforme dizia o anúncio no jornal.
Penso que são muitas as pessoas assim, soltas na vida, responsáveis, porém sozinhas, esquecidas, solitárias... Entristeço-me ao pensar que pode chegar um dia em que as portas do estacionamento não mais amanheçam abertas; ou que seu dono não mais possa vir à porta olhar os carros transitando; ou ainda que eu não tenha mais motivo para buzinar do meu carro e acenar para um conhecido no portão de um estacionamento...
Quem se lembrará de sua passagem, de suas histórias, de seu projeto de vida?
Já me disseram que o homem é um ser desamparado, em transição, e que precisa de estímulo constante para se sentir vivo. Refletindo sobre a sequência dos dias do Damião, desde a época em que o conheci, fico me perguntando: “qual o sentido de tudo?”; “do que precisa um homem para sentir-se feliz e realizado?”; “o que em nossas vidas verdadeiramente vale a pena?” Creio que cabe a cada um de nós fazermos a busca pelas nossas próprias verdades para, na sequência, conseguirmos encontrar o verdadeiro gosto e sentido da arte de viver.
RP, 03JUNHO2011
Coitado do Damião!!! Que tristeza de vida!!! Por certo ele vive apoiado na esperança de um dia ter alguém!!! Tomara ele encontre!!!
ResponderExcluirPois é... eu soube que ele anda vaidoso, que tem procurado se vestir melhor... talvez isso não seja à toa...
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