quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O MUSEU DO DESERTO DO UZBEQUISTÃO... E OS ARTISTAS DA MINHA TERRA


     Para que serve a arte? Poxa, a arte serve para muita coisa: para permitir ao homem a sua realização, para humanizá-lo, para que ele possa externar seu universo... e para muitas outras coisas. Da criação artística do homem sua história e a história do seu tempo podem ser compreendidas e resgatadas. 

     Mas a arte serve também para ser usada como instrumento de adestramento e dominação do homem ou - pior ainda - de um povo todo. 

     Imagine só o que significou em termos de liberdade de pensamento e criação a Revolução Russa de 1917. A partir da tomada do poder pelos bolcheviques as restrições à livre expressão do pensamento - e da arte, por conseguinte - passaram a ser brutais. Escritores não podiam mais escrever ou cantar o que pensavam; artistas não podiam mais pintar o mundo como o enxergavam ou como imaginavam que ele poderia ser.

     Igor Savitsky (1915-1984) - um arqueólogo russo - durante a 2ª Guerra Mundial, esteve em uma das regiões do Uzbequistão (Karakalpakstan). Para lá retornou em expedição em 1950, e por lá viveu até 1957 na condição de arqueólogo-artista/pintor da expedição. Encantou-se com o folclore e as artes aplicadas da região. Os objetos e manifestações de valor artístico que ali encontrava, ele os enviava para os museus de Moscou ou São Petersburgo. Depois, ele mudou de vez para a região e convenceu as autoridades soviéticas de que a região, por sua riqueza folclorica e artistica, necessitava de um museu. Foi assim que, em 1966, foi fundado o Museu de Artes de Nukus - e Stavitsky nomeado seu diretor. A partir daí ele deixou de pintar e passou a procurar obras de arte para adquiri-las, com recursos do estado, para o museu.

("Stalin et Vorochilov au Kremlim" - Aleksandr Guerassimov, 1938 - fonte: nikosolo.viola.net)

     A política cultural do regime comunista de Stálin (de 1924 a 1953) e de seus sucessores, instalada na União Soviética, no entanto, abominava qualquer manifestação artística que não estivesse em sintonia com o realismo socialista - com imagens idealizadas de operários, camponeses e líderes soviéticos. Assim, muitas obras dessa época estavam sendo destruídas, e seus autores presos, executados ou mandados para sanatórios ou gulags(1).

(Cartaz típico do Realismo Socialista - fonte: pt.wikipedia.org)

     Savitsky percebeu que, com isso, uma geração inteira de artistas e da cultura russa estavam condenados a desaparecer. Assim, em nome da liberdade de criação, além dos objetos artísticos e pinturas da região que adquiria para o Museu,  adquiria também - ao invés de destruí-las - obras de arte que não traduziam a vontade do "regime". Ele mesmo conta essa história, em um documentário produzido para a televisão ("The Desert of Forbidden Art" - O Deserto da Arte proibida - dir. Amanda Pope/Tchavdar Georgiev, Rússia/EUA/Uzbequistão, 2010 - trailer no final do texto): 

"Boa parte das obras foram encontradas sob a cama de viúvas de artistas, ocultas em porões, nos estúdios e até no teto de residências abandonadas" 

     No museu, além da existência das obras expostas, Savitsky escondia as não autorizadas. E, de repente, ele percebeu que tinha um vasto acervo de obras de arte sob seus cuidados.

(By Shir-Dor - Nadezhda Kashina 1896/1977 - obra de 1928 - fonte: savitskycollection.org)

("In the former Ghetto" - Bukhara. 1932 - Elena Korovay: fonte: savitskycollection.org)

     Savitsky faleceu em 1984, aos 69 anos de idade - antes do fim da União Soviética, portanto. Em 1991 o Uzbequistão tornou-se uma República independente. A partir daí os diplomatas e jornalistas ocidentais tiveram acesso ao Museu localizado na cidade de Nuskus, inclusive às obras não alinhadas ao regime soviético. Viram, então, que ali está o que há de mais representativo da coleção da arte russa no do século XX.

("Basmach" - Alexey Podkovyrov - 1889/1957 - fonte: savitskycollection.org)

     Foi por ter conhecido a história desse museu** que estou agora me perguntando: "para onde está indo a memória do meu tempo e do tempo passado na cidade onde nasci? Para onde estão indo (ou irão) a arte, a beleza e as manifestações criativas dos artistas de lá? Para onde têm ido as fotos históricas do Clério? a clarineta do "seu" Arthur? os quadros do Zé Américo?... os do Juan? a biblioteca do meu pai? O passaporte do "seu" Kamoto? os textos do professor Joaquim? as memórias manuscritas do meu tio Milim? a bicicleta de três lugares do Nenzinho? a do Perin? o pandeiro do Zoreia? a lista telefônica de apelidos elaborada pelo professor Maneco?..."

     Foi aí que me lembrei do meu amigo Romeu e do seu empenho em preservar a memória da terra onde eu nasci...  

(CLIQUE PARA ASSISTIR O TRAILER DO DOCUMENTÁRIO SOBRE O MUSEU - SEM LEGENDAS EM PORTUGUÊS)
(The Desert of Forbidden Art - trailer)

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*um dos prédios do museu foi fechado; mas esse museu conta com um forte suporte internacional - e está em funcionamento (conforme noticia o site http://caravanistan.com/travel/uzbekistan/nukus-museum-savitsky/)
** Museu Estatal de Arte do Karakalpakstan site do museu:  www.savitskycollection.org
(1) Gulag - sistema penal institucional da antiga União Soviética, que consistia na obrigatoriedade do detento realizar trabalhos forçados

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