segunda-feira, 26 de maio de 2014

AS CASAS DE EXUPÉRY



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    (Vital Farias - Canção em dois tempos - 1978)

     Manhã de segunda-feira. A foto de uma casa me fez visitar outras casas... Algumas que conheci, outras que apenas vi... outras ainda que somente pude imaginar.

     A foto me fez lembrar "Terra dos homens"*, do Antoine de Saint-Exupéry.

     Fui à minha estante, localizei o livro, folheei... Em uma determinada passagem ele conta que, aviador, entra em uma casa onde passaria a noite. E, entrando, procura desvendar os mistérios nela contidos:


Fazenda Pedra Branca 1911
Foto em https://www.panoramio.com/photo/99816624

     Ele fala dos limites da casa...

"O muro de um jardim de nossa casa pode encerrar mais segredos que as muralhas da China (...)"  

     ... da impressão geral...

"Ali estava tudo descuidado, adoravelmente em ruínas qual uma velha árvore coberta de musgo que a velhice alquebrou."

     ... dos detalhes internos...

"A sala de visitas tinha uma fisionomia extraordinariamente intensa, como a de uma velha cheia de rugas. Rachas das paredes, rasgões do forro, tudo isso eu admirava, e, acima de tudo, o assoalho que afundava aqui e oscilava mais adiante, como ponte mal segura, mas sempre envernizado, polido, lustroso. Estranha casa que não sugeria nenhuma negligência, nenhuma displicência, e sim um extraordinário respeito. Cada ano juntava, sem dúvida, alguma coisa ao seu encanto, à complexidade de sua fisionomia, ao fervor de sua atmosfera amiga e também aos perigos da viagem que era preciso fazer para ir da sala de visitas à sala de jantar." 

     Faz perguntas, a si mesmo, a respeito da finitude das coisas, das transformações a que são submetidas, do aspecto prático da vida...

"(...) o que aconteceria se uma turma de pedreiros, carpinteiros, marceneiros e estucadores viesse trazer para aquele passado seus instrumentos sacrílegos? Eles fariam em oito dias uma outra casa, uma casa desconhecida onde os antigos donos se sentiriam como visitas. Uma casa sem mistérios, sem recantos, sem alçapões sob nossos pés, sem masmorras ocultas - uma espécie de salão de prefeitura..."

     Ele se mantém atento às histórias que ninguém contou; pensa nas possíveis velharias guardadas...

"(...) já se adivinhava ali que bastava abrir um armário qualquer para que aparecessem maços de cartas amareladas, maços de recibos do bisavô, e chaves em maior número que todas as fechaduras da casa, chaves das quais nem uma, com certeza, serviria em fechadura nenhuma..."

     ... e traduz uma certa cumplicidade com o que só se pode sentir...

"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo."

     Quem, de onde quer que esteja, não consegue carregar em si uma casa onde estão guardadas todas as suas visões afetivas? Uma casa qualquer, marcas de mãos nas paredes, sinais de vida...? E quem, com essa acervo tão rico de sinais, não sofre ao pensar no seu inexorável desaparecimento do mundo real?

     Pela foto e pelo texto do Exupéry, gosto de imaginar que há sempre algo além... que vale a pena buscar, nas coisas, o que nelas se esconde... que é possível, para quem crê, dialogar com fantasmas...

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*SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Terra dos homens. Tradução de Rubem Braga. 28ª ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 



4 comentários:

  1. Amigo Elias, a respeito das casas que são/foram, dentro e fora do ser humano, e da finitude das coisas, aproveito seu belo blog para:
    A hera ainda não havia crescido quando eu a vi pela primeira vez. Era grande, um espanto branco brotando brusco da penedia. Havia um muro alto, de caiação recente, com pedrinhas miúdas incrustadas na argamassa. Toda branca, tão branca sob o sol que regelava o coração. Para além do muro era um brilho quase insuportável de vidraças, cromados, pisos reluzentes e paredes cremosas. Aquele lugar, de terra alva e arenosa, era como uma praia sem mar. E a casa era como um navio que se tivesse perdido num mar ignorado apenas acabado de sair do estaleiro, quando carga, passageiros e tripulação ainda não houvessem nele deixado nenhuma marca. A casa estava por habitar, seus cômodos ainda estavam vazios, à espera, à espera...
    Lembra-se de quando esteve lá, depois, com seu amor. Recorda-se do modo como ele e ela se haviam dado as mãos e percorrido a casa nua, com passos sutis e risos abafados. Aos seus olhos então imaculados, a casa não passava do espanto inexplicado, e a partir desse momento lhe caberia penetrar no seu mistério, devassá-la, profaná-la, até que ela acabasse por emergir no mundo das coisas de todo o dia.
    Indaga-se: quanto tempo depois foi a primeira manifestação dela na casa? Tênue, muito tênue, mas uma presença como teia de aranha que aparece num cantinho do teto, quase invisível, quase imaterial. Lícya, a rebelde, a descontente. Eu devia ter-me dado conta, devia tê-la espanado, censura-se. Mas não, deixei ficar, ah, naquela época já a hera cobria brandamente o muro e algumas das paredes externas. As folhinhas eram claras, tenras, infantis. O branco que espiava por entre os tentáculos hesitantes da hera já não doía a vista nem cegava o coração. Havia como que um abrandamento, uma frouxidão de contornos, um esmaecimento no brilho de vidraças, metal acinzentando.
    Já agora a sala está completamente às escuras. Alicyane anda, anda, ronda, tocando distraidamente em coisas, um papel aqui, o teclado do pc, uma almofada, a renda da cortina. Naquela época, quando, além do vento, outra coisa soprava, reconhecível na crispação quase despercebida das árvores...
    Sim, constata, havia uma aragem de criação, de vida em prosseguimento e em dissolução. Montes de objetos juncavam pisos e paredes, objetos como sofás e berços, latas de refrigerante e cerveja e latões de lixo, escovas de dentes e tapetes, e mais patinetes e pipas e carrinhos, e módulos e casas de boneca e pares de tênis, mochilas velhas e cadernos escolares, e ainda bonés e bicicletas e sonhos recorrentes com enormes sundaes de chocolate e creme e cds e fitas de vídeo e fadas-madrinhas, e grama verde respingada de amanhecer, e sussurros secretos de pequenos animais que se escondem nas sombras, e roupas novas e novos penteados, e antigas fotografias de avós graves, e pessoas entrando e saindo, conversando, jogando cartas, fazendo refeições, tocando violão, cantando, presenciando-se. A casa tinha sido edificada então, pensa com tristeza, e ainda não havia lugar para ratos.
    Já é madrugada, agora. A paisagem faz um grande silêncio visual e a hera cobre tudo, densa, impenetrável. Verde-escuro. O branco sumiu por completo. As vidraças jazem foscas sob a pátina insidiosa do tempo. Paredes, pisos, objetos que restaram, pessoas que partiram, coisas que permaneceram trazem tantas marcas que não mais se reconhecem dentro do momento imóvel que circunda e sustenta a casa, nesse mesmo momento do confronto e do reconhecimento.
    De: 1/2 Xícara de Insanidade (em breve) Rejane Simões
    Obrigada pelo espaço. Abraço forte

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  2. Belo texto. Redação e imagens precisas e impecáveis. Obrigado por compartilhá-lo. Grande abraço.

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  3. Onde está a tecla que me mostra chorar?

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    1. ... sei lá, mas acho que as teclas, todas elas, estão em nosso coração... creio que elas sejam ativadas, independentemente de nossa vontade, na proporção direta de nossa sensibilidade... Obrigado pelo comentário. Seja sempre bem vindo/a.

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