Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Eis-me aqui. Vendo espigas de milho. É o que faço para poder sobreviver.
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"La violetera" - do filme "City Lights" - Charlie Chaplin
https://www.youtube.com/watch?v=JVieXBTm10k
Te ofereço uma lembrança. Guarde contigo a leitura que fizeste da minha pessoa, em sua foto. Talvez essa leitura possa conversar com o seu próprio coração. Se isso acontecer, estou certa de que vendedoras de milho de seu país terão motivos para te agradecer...
De alguma forma, pelo vento, pelo ar, ou por qualquer forma de transmissão de energia, eu conseguirei sentir a nobreza de seus gestos... e terei bons motivos para seguir em frente.
Tom Jobim - "Chovendo na roseira" (Double Rainbow)
https://www.youtube.com/watch?v=kAzR6jWWNYk
Ontem, enquanto trafegava por uma rodovia, eu ia observando a paisagem. Lembrava-me de ter passado por ali havia poucas semanas, e que os campos secos, sem vida, judiados pelo calor, haviam apagado minha alegria de ver o sol.
Entregue às razões da natureza, a terra padecia. Sem fontes para fornecer energia, ela fazia sofrer toda a vegetação.
Com a chuva dos últimos dias a terra nutriu-se de forças e voltou a respirar: renovou-se de esperanças de poder verdejar.
Agradecida, a vegetação fez do amarelo queimado a pintura de um verde alegre.
Toda a vegetação, vagarosamente, vestiu-se de beleza... Inspiradas pelo vento, as folhas das árvores dançavam e acenavam alegremente para a alegria dos meus olhos, e para quem quisesse vê-las...
Oxalá fossemos também - e sempre - assim: capazes de inspirar, uns aos outros, esperanças de renovação, e de agradecer, com beleza, sem a necessidade de aplausos.
Veio de Vitória, no Espírito Santo, uma mensagem enviada pelo meu amigo Luiz Carlos. Nela, o Luiz Carlos sugere que eu ouça a voz, as interpretações e as gravações que foram feitas pela Ella Fitzgerald. Ele diz que a Ella lhe faz companhia nas horas de tranquilidade. Juntamente com a mensagem, ele enviou-me o link da gravação de "Summertime", na interpretação da Ella com o Louis Armstrong, juntos. Achei perfeita a sugestão. "Summertime" faz com que a gente, de dentro de nossos próprios cômodos, fique sentado em uma cadeira de balanço na varanda de uma casa do sul dos Estados Unidos, olhando ao longe uma extensa plantação de algodão - como nos tempos da escravidão.
Gosto da Ella. É uma das maiores cantoras de todos os tempos - "uma das". Ela gravou, em 1956, um disco muito bonito com o Louis Armstrong: "Ella and Louis". Nele foram gravadas músicas do naipe de "April in Paris" e "The nearness of you". Este foi o primeiro de uma sequência de três discos que os dois gravaram juntos. Os outros foram "Ella and Louis again" (1957) e "Porgy and Bess" (1959). "Summertime" está no terceiro deles, o "Porgy and Bess". Gosto muito do primeiro deles. Mas gosto de lembrar que a Ella também era apaixonada por música brasileira. Tanto que, em 81, ela gravou um disco inteiro dedicado à Bossa Nova: "Ella abraça Jobim". É um disco bonito e bem brasileiro, a começar pela capa: as ondas formadas no mosaico de pedras das calçadas de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Para mim há uma santíssima trindade negra de cantoras norte-americanas: Sarah Vaughan, Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Recentemente, inseri nesse grupo, na forma de "amém", a Nina Simone. Mas a Nina, na minha avaliação, fica um pouco aquém das demais. Isso porque ela tem um perfil um tanto quanto, digamos, "combativo". E eu, como tenho uma certa preferência pelos perfis femininos mais frágeis e dóceis, deixo-a um pouco aquém das demais. No entanto, a interpretação que a Nina faz de "Wild is the wind" e de "I put a spell on you" dão a ela a credencial para estar próxima (um pouco atrás) das outras três.
Das três, a Sarah Vaughan é a minha mais querida. Gosto de tudo o que ela gravou, em especial dos seus três discos de músicas brasileiras. Em 1970, quando esteve no Brasil pela primeira vez, ela participou de um programa na extinta TV Tupi, cantando "The shadow of your smile" com o Wilson Simonal. A gravação dessa música em estúdio, por razões afetivas, é para mim "a cereja do bolo" em sua obra (bom... mas tem também uma segunda cereja: "Misty"... e uma terceira: "Someone to watch over me"... e uma quarta...)
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Sarah Vaughan - "The shadow of your smile" (Mandel/Webster)
https://www.youtube.com/watch?v=muH8jXJ-FdU
A Billie foi, para mim, de uma garra e de uma fragilidade doídas. A voz sofrida, como sofrida foi sua vida, faz com que eu sempre queira, de alguma forma, quando a ouço, ampará-la. No fundo, no fundo, é ela quem sempre acaba me amparando quando eu a ouço cantar "I'll be seeing you" ou "You've changed".
Se o Vinícius de Moraes encontrou no Tom, no Baden e no Carlos Lyra a sua santíssima trindade, com o Toquinho no "amém", como ele mesmo dizia, eu tenho também o amparo constante da minha "santíssima trindade": Sarah, Billie e Ella, nessa ordem - e com a Nina no "amém".
Com isso tudo quero mesmo é dizer que o Luiz Carlos é um bom sujeito: "diga-me com quem andas que eu te direi quem és". Se ele anda com a Ella, mesmo que seja somente nas horas de tranquilidade, ele tem a minha consideração: está demonstrado, portanto, que ele é um bom sujeito!
Outro dia o meu amigo Clóvis apresentou o poema "Canção", da Cecília Meireles, a um grupo de amigos.
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
(...)
Sensibilizado ao lê-lo, o também meu amigo Luiz Carlos comentou:
- Esse poema é muito bonito... Deveria ser musicado. Em música, ele corre mundo.
Concordei. Afinal, ao se vestir de melodia, harmonia e ritmo, um poema ganha novos veículos de propagação e desprende-se do papel impresso. Musicado, ele pode transitar com maior facilidade pelas estações de rádio, pelos canais de televisão, viajar, ir mais longe... Ou não: tudo depende de quem o ouve ou de quem o lê.
É por isso que, quando devidamente interpretado na leitura, o poema já é música. A palavra, quando atinge as experiências de vida daquele que a ouve ou que a lê, tem o poder de fazer despertar instintos adormecidos; quando reunida com outras palavras, formando frases, pinta e borda emoções, arrepios e sentimentos: as palavras irmanadas assim, formando frases, movem o mundo de quem procura sair do vácuo.
Muitos poemas foram musicados e enriqueceram a música popular brasileira. Lembro-me agora de "Capricho", do Castro Alves, musicado por Francis Hime e gravado tanto pela Nara Leão quanto pelo Quarteto em Cy. Lembro-me também de "Memória", do Carlos Drummond de Andrade: musicado pelo baiano Alcyvando Luz e cantado pelo Quarteto em Cy, voou longe - ou melhor, ganhou a capacidade de fazer com que qualquer ouvinte possa voar longe... O Fagner não passou batido: musicou e gravou "Motivo", da Cecília Meirelles.
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
(...)
Lembram-se da música "Canteiros", gravada também pelo Fagner? ("Quando penso em você, fecho os olhos de saudaaaade")? Vejam só de onde veio:
(...)
Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.
(...)
Pois é. Foi inspirado nesses versos de "Marcha", da Cecília Meirelles, que nasceu "Canteiros" - e que deu uma baita confusão. Mas isso já é outro papo.
TAIGUARA foi um cantor e compositor brasileiro. Filho de artistas, nasceu no Uruguai durante uma turnê de seus pais naquele país.
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Vileta Lara e Robert Clay - "Terra das Palmeiras" (Taiguara)
Taiguara concorreu em festivais de música e fez muito sucesso aqui no Brasil, nos anos 70, com uma série de gravações inesquecíveis: "Hoje", "Amanda", "Modinha", "Helena Helena", "Teu sonho não acabou", e muitas outras.
Considerado símbolo da resistência durante os "anos de chumbo", esteve em exílio forçado na Inglaterra; e, depois de ter regressado ao Brasil, passou por um segundo período de exílio na Tanzânia e na Inglaterra, novamente. Durante o seu primeiro período de exílio, sonhando voltar ao Brasil, ele compôs "Terra das Palmeiras" e a gravou em um disco chamado "Ymira, Tayra, Ipy", em 1976.
"Ymira, Tayra, Ipy" foi recolhido das lojas, pela censura, 72 horas após o seu lançamento. "Terra das Palmeiras", que fala de amor, de distância, de busca e de saudade, dialoga com a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.
Se, na "Canção do Exílio", Gonçalves Dias pintou a natureza brasileira e idealizou uma pátria em busca de uma identidade, em "Terra das Palmeiras", torturado pela saudade, Taiguara comprometeu-se a reinventar um país que, aos seus olhos, havia perdido seu canto e suas cores.... um país que, com contornos verde-oliva, havia assumido uma certa coloração acinzentada.
Por intermédio do serviço de alto-falantes do "Cine Guará", a "Ave Maria" de Bach e Gounod colocava a cidade toda na expectativa de um anúncio fúnebre.
- "Escuta! Quem será?" E eu ficava quieto, ouvindo a notícia que entrava pela janela da cozinha.
Ao som da "Ave Maria", uma voz grave, solene e compassada, anunciava:
- "Faleceu hoje, às 'tantas' horas, o senhor... Deixou filhos, netos..."
E aquela voz prosseguia com alguns outros detalhes: o local onde o óbito havia ocorrido, o endereço do local onde o corpo seria velado, e o horário previsto para o sepultamento. Era costume, também, serem mencionados: o apelido do falecido, se o tinha; o nome do cônjuge, se casado; os nomes dos filhos, se os tinha; e o nome de alguns de seus parentes.
O comunicado era repetido diversas vezes, com pausas preenchidas pela "Ave Maria". A notícia passava então a ser o assunto nas rodas de conversa, nas quais eram relembrados fatos passados na vida do falecido e de seus familiares. A cidade mergulhava em uma tristeza profunda.
Em casa, com a família, em dias assim, não nos sentíamos confortáveis em pronunciar a palavra "defunto". A palavra "pesava". Como não havia um velório municipal (muito menos privado) em Guará, as pessoas que faleciam eram velados em suas próprias residências. Os sepultamentos, por falta de iluminação no cemitério, ocorriam no máximo até as dezessete horas. Assim, quando não fosse possível o sepultamento no mesmo dia do óbito, o corpo continuava sendo velado madrugada adentro, com rodas de terço rezadas em voz alta para que o passar das horas fosse menos moroso.
No velório, os familiares do falecido e os seus amigos ficavam ao redor do caixão, no centro da sala principal; os visitantes espalhavam-se pela sala e pelos demais cômodos. Alguns conversavam encostados nas paredes do alpendre e da varanda, quando havia espaços assim; outros ficavam na cozinha conversando e tomando do café que era servido; muitos, ainda, ficavam conversando na calçada da casa onde o velório estava sendo realizado.
Até que o corpo pudesse ser sepultado, muitos eram os comentários a respeito de providências práticas: o corpo seria levado para ser abençoado na igreja, antes de ser conduzido ao cemitério? Os parentes do falecido, que residiam em lugares distantes, conseguiriam chegar à tempo para estarem presentes no momento do sepultamento?
Dentre todas as preocupações relacionadas com o sepultamento, a que mais me interessava era quanto ao movimento que haveria de ter durante o cortejo. Eu me ocupava em ficar imaginando se muitas pessoas seguiriam o caixão à pé, e - principalmente - se seriam muitos os veículos que acompanhariam o cortejo até o cemitério. Quando o falecido era uma criança com poucas horas ou poucos dias de vida - ou mesmo um natimorto -, o cortejo era bastante modesto e o caixão era revestido com um tecido roxo. Mas se o defunto fosse muito célebre, o movimento era tão grande que eu, muito ingênuo para entender dos grandes pesares da vida, sempre me perdia na minha tão esperada contagem dos veículos que estavam seguindo o caixão.
Em frente à porta da loja de meu tio passava o cortejo, em seu trajeto da igreja até o cemitério. Desde o momento em que um pequeno aglomerado de pessoas podia ser avistado, na ponta da rua, meu tio e os demais comerciantes baixavam as portas de suas lojas, em sinal de respeito. E ficavam ali, na calçada, esperando.
Não havia carro funerário que conduzisse o caixão. À frente do cortejo, empurrada por amigos e familiares do falecido, vinha sempre uma pequena plataforma sobre rodas, sobre a qual era colocado o caixão.
Durante a passagem do cortejo meu tio baixava a cabeça e movia os lábios, no que seria, para mim, uma oração silenciosa. Eu, com o pensamento preso em um outro mundo de fantasias, ficava atento à elaboração das minhas estatísticas.
Muitos anos se passaram. Muitas pessoas daquele tempo já se foram. Desapareceram. Hoje, os carros funerários motorizados aceleraram os cortejos. Já não há tempo para funerais carregados de solenidade e de sentimento. Já nem há mais tempo para abraços e lembranças. Nossas condolências são transmitidas por mensagens eletrônicas. Com elas, sem o carinho de um simples telefonema, "cumprimos nossas obrigações". Vamos ficando. Parece que lembranças tornaram-se desnecessárias em um mundo tão prático. Resta, pois, a escravidão da lida diária. Uma vida sem memórias, sem histórias e sem estatísticas inúteis levantadas por meninos.
O coração bate. Sentir tornou-se um doloroso incômodo.
No final de semana que passou, eu estava assistindo pela internet a um colóquio internacional sobre a obra literária e musical de Vinícius de Moraes. Em um determinado momento um dos participantes deparou-se com a palavra "saudade", e comentou que não a conhecia. Um dos comentaristas, mexicano, notando tal dificuldade, tentou explicar o seu significado.
Enquanto eu ouvia as explicações, eu me lembrava de uma guarânia composta há muitos anos por Mário Palmério*, no período em que ele exercia as funções de embaixador do Brasil no Paraguai. Essa guarânia foi escrita exatamente para o mesmo fim: explicar o significado da palavra "saudade".
Para melhor se fazer entender, Mário Palmério não procurou sinônimos. Ele trilhou o caminho dos sentimentos. Assim, na letra da guarânia, antes mesmo de explicar o significado da palavra "saudade", ele alertou que seria necessário que os significados das palavras "querer" e "ternura" fossem previamente conhecidos. Acrescentou, ainda, que o interessado deveria ter sentido, um dia, a perda de um grande amor. Que só então, dotado de tais requisitos, o interessado teria condição de compreender, ou, melhor ainda, de sentir o seu significado. Ele explicou que tal resultado seria decorrente da perda de um grande amor. Que "saudade", portanto, corresponde ao sentimento advindo daquela perda, a qual traz consigo a noção que se tem de "distância", de "ausência" e de "sofrimento".
E foi assim então, com objetivo de explicar o significado da palavra "saudade", patrimônio da língua portuguesa, que nasceu essa bela guarânia: "Saudade" - depois do Hino Nacional do Paraguai, a música mais conhecida naquele país.
SAUDADE
(Mário Palmério)
Si insistes en saber lo que es saudade
Tendrás que antes de todo conocer,
Sentir lo que es querer, lo que es ternura,
Tener por bien un puro amor, vivir!
Después comprenderás lo que es saudade
Después que hayas perdido aquel amor
Saudade es soledad, melancolia,
Es lejania, es recordar, sufrir!
__________________________
* Mário de Ascenção Palmério (1916-1996) - educador, diplomata e romancista. Ocupou a Cadeira 2 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Guimarães Rosa. Embaixador do Brasil no Paraguai de 09/1962 a 04/1964. Transformou Uberaba/MG em cidade universitária, com a criação de diversos cursos superiores.
Durante o período colonial esteve em nosso país um francês meio maluco e, ao mesmo tempo, um tanto quanto interessante. Maluco porque suas ideias eram execráveis, interessante porque, mesmo com tais ideias, acabou conquistando a amizade do nosso Imperador.
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J. P. Rampal - Franz Benda Flute Sonata in F Major
Esse francês chamava-se Gobineau. Desembarcou aqui no Brasil, à contragosto seu, na qualidade de "embaixador" da França, e aqui permaneceu de 1869 a 1870 - cerca de um ano, portanto.
Gobineau, que trazia com seu nome o título de Conde, ficou muito conhecido em todo o mundo por suas teorias. Em 1855, antes mesmo de vir ao Brasil, ele publicou um livro intitulado "Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas". Tratava-se de um ensaio no qual ele procurava explicar, sem bases científicas, o motivo pelo qual algumas sociedades progrediam enquanto outras fracassavam.
No seu ensaio, Gobineau levantou algumas hipóteses: pensou no fanatismo, no luxo e na preguiça, na corrupção de costumes, no abandono dos preceitos religiosos, nos maus governos, e, dentre outras, no envelhecimento das civilizações. Para ele, nenhuma dessas hipóteses justificava a falência de uma nação. Ele acreditava que a justificativa da decadência das civilizações era a questão étnica. Portanto, para ele, a responsável pela degradação de todas as civilizações era a mistura de raças.
Em virtude da publicação de seu ensaio, Gobineau ficou conhecido como teórico do racialismo - teoria (já ultrapassada) segundo a qual a espécie humana se divide em raças. Assim, na linha de seu entendimento, o Brasil encontrava-se em avançado processo de perdição.
Imaginem só com que estado de espírito Gobineau desembarcou aqui em 1869! Naquela época a população brasileira era composta por um elevado número de escravos, mulatos e mestiços. Observando o nosso povo e as nossas cidades, assim ele nos descreveu em diversas cartas* enviadas a seus amigos e familiares:
"Salvo o Imperador, não há ninguém neste deserto povoado de malandros" "Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto". "Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos".
Com essa imagem tão preconceituosa em relação ao brasileiro, Gobineau achou o posto no Brasil indigno de seus méritos. E detestou o nosso país! Contudo, ele foi um grande amigo e admirador de d. Pedro II.
- "Como pode??"
O que poderia ter feito com que Gobineau e d. Pedro II desenvolvessem uma amizade marcada por diálogo, reuniões, visitas, livre trânsito do francês na Corte brasileira, troca de correspondências e de ideias sobre viagens, romances e poesias? O que teria feito d.Pedro II ter tido paciência de ouvir Gobineau, suas ideias e suas terias?
Em suas correspondências, assim Gobineau se referia a d. Pedro II:
"Tenho pena que ele seja Imperador. Tem demasiados talento e mérito para isso". "Seu maior prazer é ampliar sua instrução e progredir, aplicando-se em possuir toda espécie de conhecimentos".
Todos nós sabemos que d. Pedro II foi um apaixonado pelo Brasil e pelo povo brasileiro; que tornou-se um servidor público exemplar, um estudioso que amava as ciências e as letras, e que cumpria seus deveres sem se deixar levar por paixões**.
Pois tanto Gobineau quanto d. Pedro II eram eruditos. Ambos compreendiam e discutiam o valor das artes. Em seus encontros eles conversavam sobre livros, viagens, música, esculturas e pinturas. O próprio Gobineau era escultor. Assim, mesmo discordando de muitas das teorias do "embaixador" francês, d. Pedro II gostava de sua companhia. Foram, portanto, os livros, a música, a escultura, a literatura e a poesia os responsáveis pela aproximação e pela amizade que existiu entre d. Pedro II e o Conde de Gobineau.
"Mima" - Escultura em mármore branco (Arthur de Gobineau)
Hoje, pensando nessa história, vislumbro um caminho que pode nos desviar da imensa intolerância reinante por todo lado: a arte! Os homens, quando tomados pela inspiração artística, dialogam e convivem de maneira respeitosa e construtiva - mesmo quando suas ideias são divergentes. Pelo menos foi isso que nos mostrou a história que acabei de contar. - Que nos sirva de inspiração!
__________________________ *RAEDERS, Georges. O Conde de Gobineau no Brasil. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1988 **CARVALHO, José Murilo de. D. PEDRO II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007