quinta-feira, 13 de agosto de 2020

MARCHA FÚNEBRE

 

Funeral Procession - T. Coleman


     Por intermédio do serviço de alto-falantes do "Cine Guará", a "Ave Maria" de Bach e Gounod colocava a cidade toda na expectativa de um anúncio fúnebre.


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Yo-Yo Ma, Kathryn Scott - Ave Maria (Bach/Gounod)


     Em casa, atenta, minha mãe comentava:

     - "Escuta! Quem será?" E eu ficava quieto, ouvindo a notícia que entrava pela janela da cozinha.

     Ao som da "Ave Maria", uma voz grave, solene e compassada, anunciava:

     - "Faleceu hoje, às 'tantas' horas, o senhor... Deixou filhos, netos..."

     E aquela voz prosseguia com alguns outros detalhes: o local onde o óbito havia ocorrido, o endereço do local onde o corpo seria velado, e o horário previsto para o sepultamento. Era costume, também, serem mencionados: o apelido do falecido, se o tinha; o nome do cônjuge, se casado; os nomes dos filhos, se os tinha; e o nome de alguns de seus parentes.

     O comunicado era repetido diversas vezes, com pausas preenchidas pela "Ave Maria". A notícia passava então a ser o assunto nas rodas de conversa, nas quais eram relembrados fatos passados na vida do falecido e de seus familiares. A cidade mergulhava em uma tristeza profunda.

     Em casa, com a família, em dias assim, não nos sentíamos confortáveis em pronunciar a palavra "defunto". A palavra "pesava". Como não havia um velório municipal (muito menos privado) em Guará, as pessoas que faleciam eram velados em suas próprias residências. Os sepultamentos, por falta de iluminação no cemitério, ocorriam no máximo até as dezessete horas. Assim, quando não fosse possível o sepultamento no mesmo dia do óbito, o corpo continuava sendo velado madrugada adentro, com rodas de terço rezadas em voz alta para que o passar das horas fosse menos moroso.

     No velório, os familiares do falecido e os seus amigos ficavam ao redor do caixão, no centro da sala principal; os visitantes espalhavam-se pela sala e pelos demais cômodos. Alguns conversavam encostados nas paredes do alpendre e da varanda, quando havia espaços assim; outros ficavam na cozinha conversando e tomando do café que era servido; muitos, ainda, ficavam conversando na calçada da casa onde o velório estava sendo realizado.

     Até que o corpo pudesse ser sepultado, muitos eram os comentários a respeito de providências práticas: o corpo seria levado para ser abençoado na igreja, antes de ser conduzido ao cemitério? Os parentes do falecido, que residiam em lugares distantes, conseguiriam chegar à tempo para estarem presentes no momento do sepultamento?

     Dentre todas as preocupações relacionadas com o sepultamento, a que mais me interessava era quanto ao movimento que haveria de ter durante o cortejo. Eu me ocupava em ficar imaginando se muitas pessoas seguiriam o caixão à pé, e - principalmente - se seriam muitos os veículos que acompanhariam o cortejo até o cemitério. Quando o falecido era uma criança com poucas horas ou poucos dias de vida - ou mesmo um natimorto -, o cortejo era bastante modesto e o caixão era revestido com um tecido roxo. Mas se o defunto fosse muito célebre, o movimento era tão grande que eu, muito ingênuo para entender dos grandes pesares da vida, sempre me perdia na minha tão esperada contagem dos veículos que estavam seguindo o caixão.

     Em frente à porta da loja de meu tio passava o cortejo, em seu trajeto da igreja até o cemitério. Desde o momento em que um pequeno aglomerado de pessoas podia ser avistado, na ponta da rua, meu tio e os demais comerciantes baixavam as portas de suas lojas, em sinal de respeito. E ficavam ali, na calçada, esperando.

     Não havia carro funerário que conduzisse o caixão. À frente do cortejo, empurrada por amigos e familiares do falecido, vinha sempre uma pequena plataforma sobre rodas, sobre a qual era colocado o caixão.

carrim doura
Carro para transporte de urna funerária

     Durante a passagem do cortejo meu tio baixava a cabeça e movia os lábios, no que seria, para mim, uma oração silenciosa. Eu, com o pensamento preso em um outro mundo de fantasias, ficava atento à elaboração das minhas estatísticas.

     Muitos anos se passaram. Muitas pessoas daquele tempo já se foram. Desapareceram. Hoje, os carros funerários motorizados aceleraram os cortejos. Já não há tempo para funerais carregados de solenidade e de sentimento. Já nem há mais tempo para abraços e lembranças. Nossas condolências são transmitidas por mensagens eletrônicas. Com elas, sem o carinho de um simples telefonema, "cumprimos nossas obrigações". Vamos ficando. Parece que lembranças tornaram-se desnecessárias em um mundo tão prático. Resta, pois, a escravidão da lida diária. Uma vida sem memórias, sem histórias e sem estatísticas inúteis levantadas por meninos.

     O coração bate. Sentir tornou-se um doloroso incômodo.   

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