Minha intenção é publicar aqui as coisas que leio, vejo, penso ou observo, e que me fazem sentir que acrescentam. Afinal, as coisas só se tornam inteiramente bonitas quando podem ser compartilhadas e se mostram repletas de significados comuns.
Vinte e cinco de março é, no Brasil, o Dia da Constituição. A escolha (do dia) deu-se pelo fato de que, em 1824, nesse mesmo dia e mês, nossa primeira Constituição foi outorgada. Esta Constituição (a Imperial) estabeleceu no Brasil o sistema monárquico, com a divisão dos poderes nos três tradicionais (desenvolvidos pelo iluminista Montesquieu). Estes três Poderes configuravam o Estado Democrático de Direito. Contudo, esta Constituição estabeleceu também um quarto Poder: o Moderador. Esse quarto Poder era exercido pelo Imperador, o qual poderia intervir nos outros três - portanto, assegurando sua preponderância sobre os demais. Esta Constituição vigorou durante todo o regime monárquico - por 65 anos, portanto - até a proclamação da República, em 1889.
Estabelecimento comercial de imigrantes sírio-libaneses, com seus filhos
Guará, SP - Foto: acervo familiar
Mas vinte e cinco de março, no Brasil, por força da Lei 11.764 de 25/8/2008, também é comemorado o Dia Nacional da Comunidade Árabe. Isso porque, inicialmente, quando os árabes aqui chegavam pelo porto de Santos, estabeleciam-se comercialmente em São Paulo, na Rua 25 de março.
Assim, pela concentração da comunidade árabe nessa rua, especificamente, deu-se a escolha da data. Os árabes (sírios, libaneses - em geral alguns dos povos oriundos do antigo império Otomano) que, inicialmente, e em sua grande maioria, dedicavam-se ao comércio, hoje têm presença marcante na indústria, na literatura, na ciência e nas artes, contribuindo expressivamente com o desenvolvimento do Brasil e, notadamente, com a construção da nossa própria identidade.
"Il y aura un bal, très pauvre et très banal, Sous un ciel plein de brume et de mélancolie"
("Un jour tu verras" - Mouloudji/vanParys)
Gosto de ouvir as gravações musicais do Waldick Soriano. Não, não foi o gênero musical adotado por ele que me cativou: foi a figura do artista - o Waldick, o "Frank Sinatra do Nordeste", o boêmio que levava consigo, em sofisticação ensaiada, toda a nossa indisfarçável carga de fragilidade.
Dos seus registros em vídeo, não me canso de rever o que foi feito em 2006, no Centro Cultural SESC Luiz Severiano Ribeiro, em Fortaleza. Verdadeiro, simples, humano: um baile popular fantasiado de requinte. Naquela comunhão popular eu gostaria de ter estado... com a cabeça transbordando de fantasias e de benevolências bêbedas; com a alma alegre e esperançosa... numa festa simples, pobre e vulgar, como pobres e vulgares somos todos nós...
Puxe uma cadeira, meu amigo; sente-se à mesa, encha o copo de amor e de banalidades. E ao ouvir o Waldick, comungue comigo das suas mais reservadas futilidades, e dos seus mais nobres anseios...
A Senzala e a Casa Grande, no Brasil, estavam muito próximas. Consequentemente, o convívio entre escravo e senhor era inevitável - a ponto do senhor, ocasionalmente, procurar na escrava o remédio para seus impulsos e suas carências.
Mas o senhor, eventualmente, passava longos períodos distante da Casa Grande. E nessas idas e vindas, nesses períodos de ausência, a Sinhá, que também tinha suas carências, ficava sujeita a se engraçar por algum morador da senzala.
E foi também nessa combinação de possibilidades que deu-se a miscigenação aqui no Brasil.
Convém, contudo, meus caros leitores, que não nos esqueçamos: se algum escravo transgredisse os limites a ele impostos, ele poderia ser levado ao tronco para ser açoitado - as vezes até mutilado ou castrado.
Pois o Chico Buarque e o João Bosco, em "Sinhá", nos contam uma história assim: Sinhá estava fora, a banhar-se no açude, justamente quando - assim foi dito - pegaram um escravo na roça. Na versão dele - do escravo -, ele só olhava o arvoredo em busca de sabiás; na versão do senhor, o escravo havia visto Sinhá (banhar-se). O escravo diz que, se ela se despiu e banhou-se, ele não viu nada, pois nem estava mais na roça em busca de sabiás. E mais: ele afirma que, além de já não mais sentir cobiça, nem enxergava bem.
Assim, segundo o escravo, não havia motivo algum para o senhor querer furar seus olhos, aleijando-o em punição.
Mas o fato foi que, ao que parecia, Sinhá havia se engraçado pelo escravo...
E aí?
Aí que essa é somente uma história... Se olharmos para a multidão de escravos sequestrados para o Brasil, em mais de 300 anos, vamos ver que a crueldade por aqui rolou solta: exploração, estupros, torturas, mutilações, açoite, sal em feridas, correntes, marcas de identificação, separação de família, garrote... e o diabo a quatro.
Vamos então ouvir o Chico Buarque e o João Bosco. Eles nos trazem a história contada por um cantor atormentado, "herdeiro sarará e filho de um relacionamento espúrio" de um escravo mandingueiro, por quem uma certa Sinhá ficara enfeitiçada...
Chico Buarque e João Bosco - "Sinhá"
SINHÁ
(Chico Buarque e João Bosco)
Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Pra quê me pôr no tronco
Pra quê me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da Santa Cruz
Eu só cheguei no açude
Atrás do sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava pra Xerém
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Pra que que vosmicê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Pra que que vossuncê
Me tira a luz
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá
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- açude: construção de terra para represar água
- arvoredo: extenso aglomerado de árvores
- Xerém: papa de milho com carne e molho; Distrito do Município de Duque de Caxias, RJ
O Brasil comporta culturas e tipos diversos, que podem ser visualizados nos seus pratos característicos regionais. Quanta riqueza!! É, de fato, um maravilhoso painel de diversidades que propõe (há séculos) a celebração da inclusão, apesar de desvios circunstanciais que nos apequenam.
João Bosco - "Nação" (Aldir Blanc, João Bosco, Paulo Emílio)