quinta-feira, 17 de outubro de 2024

ANITA "TROPICAL"

 

"Tropical" (1917) - Anita Malfatti - óleo sobre tela 77x102cm
https://fcs.mg.gov.br/a-importancia-do-quadro-tropical-para-a-arte-brasileira/

    Há pouco comecei a ler uma biografia* do escritor brasileiro Mário de Andrade. Logo nas primeiras páginas Jason Tércio, o autor, conta do início da amizade do biografado com Anita Malfatti, da troca de cartas entre ela e o Mário de Andrade, e do rompimento dessa amizade, anos depois. Mas um pouco da história de Anita, contada nessa biografia, já foi suficiente para que eu me interessasse em também conhecer um melhor a vida e a obra de Anita Malfatti.
    Com o apoio da família, principalmente de um tio, a paulistana Anita Malfatti (1889-1964) mudou-se para Berlim, na Alemanha, para estudar pintura. Ficou lá por três anos. Com a intensificação dos movimentos políticos e sociais no Velho Continente, que precederam a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Anita trocou a Alemanha pelos Estados Unidos, mais precisamente por Nova Iorque, também para estudar pintura. Viveu em Nova Iorque por um ano e meio. Naquele período, o nacionalismo exacerbado na Europa trouxe reflexos também aqui para o Brasil, onde  os debates a respeito do nacionalismo e da construção da nação brasileira passaram a ser intensos. Pois aqui estávamos construindo um novo país, sob os embalos da nossa Belle Époque tardia, do Rio de Janeiro modernizado por Pereira Passos, do Futurismo e das novas tendências artísticas. Havia pouco o Brasil tinha libertado homens e mulheres escravizados (1888), deixado de ser um Império (1889), ganhado uma Constituição (1891), e começado a construir uma República. E um dos primeiros movimentos ocorridos no final do Século XIX e início do XX foi a busca pela construção de um perfil para a nação, moldado pela tentativa de branqueamento da população brasileira. O grande fluxo de imigrantes europeus que na época aqui aportavam, deixa tudo isso muito evidente.
    Anita, que havia acompanhado os movimentos artísticos de vanguarda na Europa, em especial o Expressionismo, com a ajuda de seu tio e o empenho de alguns então novos amigos que conhecera (dentre eles Di Cavalcanti), realizou em SP, em dezembro de 1917, sua exposição "Pintura Moderna: Anita Malfatti". Essa exposição deu o que falar: acentuou as discussões a respeito da nação brasileira, que foi "turbinada" por uma crítica publicada em jornal pelo escritor, editor, advogado e ativista Monteiro Lobato ("Paranoia ou Mistificação?"), ao sugerir que diversas obras mostradas na exposição de Anita traduziam alguma insanidade. Assim comentava ele:

"(...) veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro (...)".

    Com tudo isso, a repercussão da exposição de Anita, apesar de não ter feito tanto bem a ela, na época, abriu caminho para o Modernismo brasileiro.
    Dentre as obras mostradas na Exposição, "Tropical" - então com o título "Negra baiana" - contrastava com o perfil que, de maneira forçada, queria-se traçar para o brasileiro. "Negra baiana" era totalmente divergente dessa tendência. Na tela, uma mulher traz nos braços um cesto contendo frutos tropicais - banana, mamão, abacaxi, laranja. Ela tem a pele morena, os cabelos escuros, e está vestida com uma blusa clara. Sua postura servil remete à lembrança do modelo de trabalho extinto no país. A expressão de melancolia em sua face parece até ter sido a inspiração para, depois, Paulo Prado comentar na abertura de seu livro "Retrato do Brasil" (1928): "Numa terra radiosa vive um povo triste". Essa tela, portanto, diferente da identidade europeizada que se queria traçar para a nação brasileira, foi, evidentemente, parte estimuladora das discussões em torno da construção da nação brasileira. Tanto que, logo depois, em 1922, a Semana da Arte Moderna trouxe a ideia da antropofagia cultural, e desaguou em interpretações tais como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, e diversas outras com o mesmo grau de relevância.
    Assim, meu raro leitor, quero dizer com tudo isso que a construção do perfil da nação brasileira, iniciada em 1822, com a Independência, atravessou todo o Império, ganhou forças na Primeira República, e, pelo que consigo interpretar, continua em fase de construção - e Anita Malfatti,  precursora do Modernismo, foi também uma das responsáveis por isso. 

50 obras de Anita Malfatti
fonte: https://www.youtube.com/watch?v=6kjMzM0MlVg
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*"Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade" (Estação Brasil, 2019)

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

FALA-ME DE AMOR

 

Em um café (O Absinto) - (detalhe) - 1875-1876 - Edgar Degas (1834-1917)
óleo sobre tela - 92x68 cm - Museu D'Orsay (Paris)

    Edgar Degas (1834/1917) pintou muitas mulheres. Membro do grupo de impressionistas, ao invés de paisagens ou espaços abertos, preferia pintar ambientes fechados, mostrando a vida cotidiana. Gostava muito de pintar bailarinas: fez um grande número de telas a respeito do tema.
    Sempre que folheio livros que trazem suas obras, a tela que mais me pede tempo para observar é a de um casal em uma mesa de café, sentados um ao lado do outro: o homem, de chapéu e paletó escuros, apertando por entre os lábios um cachimbo, dirige o olhar em direção oposta à mulher a cuja presença está indiferente. Ela, de ombros caídos, tendo um copo de absinto à sua frente, transmite melancolia e tristeza no olhar, como se estivesse mendigando atenções.
    Imóvel e em silêncio, examinando atentamente o casal pintado, fico pensando no que poderia ser oferecido àquela mulher, naquele momento, naquele lugar, que tivesse a magia de fazer brotar alguma luz de seu olhar... Não, não creio que pudesse ser algo material; acabo por acreditar que a atenção de seu companheiro, acompanhada de palavras de carinho, certamente poderiam fazer renascer sua beleza e sua alegria... mas aí nem a mensagem do quadro, nem a transformação que poderia ser processada no observador seriam as mesmas...

Lucienne Boyer - "Parlez moi d'amour"
https://www.youtube.com/watch?v=rIAQWr34De0

Parlez-moi D'amour (Jean Lenoir)

 

Parlez-moi d'amour

Redites-moi des choses tendres

Votre beau discours

Mon cœur n'est pas las de l'entendre

Pourvu que toujours

Vous répétiez ces mots suprêmes :

"Je vous aime"

 

Vous savez bien

Que dans le fond je n'en crois rien

Mais cependant je veux encore

Écouter ce mot que j'adore

Votre voix aux sons caressants

Qui le murmure en frémissant

Me berce de sa belle histoire

Et malgré moi je veux y croire

 

Il est si doux

Mon cher trésor, d'être un peu fou

La vie est parfois trop amère

Si l'on ne croit pas aux chimères

Le chagrin est vite apaisé

Et se console d'un baiser

Du cœur on guérit la blessure

Par un serment qui le rassure

Fala-me de amor

 

Fala-me de amor

Diga-me as coisas ternas

Seu belo discurso

Meu coração não se cansa de ouvir

Cuide para que sempre

Você repita estas palavras supremas

"eu te amo"

 

Você sabe

Que no fundo eu não acredito nisso

Mas,  no entanto, eu ainda quero

Ouvir estas palavras que gosto de ouvir

A sua voz em sons carinhosos

Que o murmúrio emocionado

Me embala com sua bela história

E, apesar de mim, quero acreditar no que diz

 

É tão doce

Meu querido tesouro, ser um pouco louco

A vida é por vezes demasiado amarga

se a gente não acreditar em sonhos impossíveis

A dor é rapidamente apaziguada

e consola-se com um beijo

Do coração cura-se o ferimento

Por um juramento que o faz ressuscitar


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

DO ANDAR DE CIMA

 

https://www.craiyon.com/image/uXKT4fnZQqeOB1QzsKGczw

Enviei a uma amiga alguns textos redigidos por mim. Em retorno recebi comentários escritos e áudios gravados: uma companhia generosa para o andar de cima, de onde os problemas do mundo abaixo não nos incomodam. Olhando lá de cima, o barulho, as rivalidades, o ódio, nada disso parece fazer sentido... as ruas, as calçadas, as pessoas nas casas, nas lojas, nas cidades... a vida segue em paz. E à noite, de lá de cima, mirando as estrelas, um espetáculo gratuito se desenvolve. Coloco-me como espectador atento, silencioso, pacificado... Para lá eu vou quando consigo me inserir nos textos poéticos que leio... Para lá eu ia, para ficar pensando... para o andar de cima, para o telhado da velha casa amarela que mora em mim: para lá fui reconduzido ao ler as mensagens que me foram enviadas pela minha amiga...

James Taylor - "Up on the roof" - (Goffin/Carole king)
 https://www.youtube.com/watch?v=sMt2Vh7otQ0

Up On the Roof (G Giffin/Carole King)

 

When this old world starts a getting me down

And people are just too much for me to face

I'll climb way up to the top of the stairs

And all my cares just drift right into space

 

On the roof, it's peaceful as can be

And there the world below don't bother me, no, no

 

So when I come home feeling tired and beat

I'll go up where the air is fresh and sweet

I'll get far away from the hustling crowd

And all the rat-race noise down in the street

 

On the roof, that's the only place I know

Look at the city, baby

Where you just have to wish to make it so

Let's go up on the roof

 

And at night the stars they put on a show for free

And, darling, you can share it all with me

That's what I said

Keep on telling you

 

That right smack dab in the middle of town

I found a paradise that's troubleproof

And if this old world starts a getting you down

There's room enough for two

De cima do telhado

 

Quando esse velho mundo começa a me derrubar

E fica difícil encarar as pessoas

Eu subo até o topo da escada

E todos os meus incômodos vão para o espaço

 

No telhado tudo está em paz

E de lá, o mundo abaixo não me incomoda

 

Então, quando eu chego em casa cansado e abatido

Eu subo para onde o ar é fresco e doce

Eu vou para longe da multidão agitada

E de toda barulheira na rua

 

No telhado, o único lugar que conheço

Olhe para a cidade, meu bem

Onde você só precisa desejar para conquistar

Vamos subir no telhado

 

E à noite as estrelas promovem um show de graça

E, querida, você pode compartilhar tudo isso comigo

Foi isso o que eu disse

E continuo te dizendo

 

Bem ali no meio da cidade

Encontrei um paraíso que é imune a problemas

E se esse velho mundo começa a te derrubar

Há espaço suficiente para dois


quarta-feira, 11 de setembro de 2024

ATÉ QUE A NOITE SEJA ETERNA...

 

Jim Croce - "Hey tomorrow"
https://www.youtube.com/watch?v=Gusg3ND4Lnk


    ... comemorando, cantando, celebrando... promovendo manifestações pacíficas, reivindicando... caminhando, olhando vitrines, fazendo compras: o povo nas ruas! Faixas, bandeiras, jogos de capoeira... pamonha, curau, caldo de cana oferecido por trabalhadores informais... anúncios de ofertas em portas de lojas... pedintes... música, carros de som, luzes... um violonista com uma gaita... o saxofonista de todos os dias rodeado por ouvintes... pequenos diálogos entre estranhos.

    - "E eu... parte do todo..."

    As ruas, os automóveis, o incômodo barulho de motores de motocicletas... No caminho de tanta gente as árvores fazem sombra para que eu, para que todos os passantes, e também para que os cães, todos nós, nos descansemos dos cansaços de caminhadas indecisas...

    - "Há em toda essa dinâmica um rastro, muitos estímulos, e um horizonte..."

    Ao olhar para fora, da janela do meu escritório, e ao ver que o movimento diário se repete, fico buscando entender o que não há como ser entendido, mas inevitavelmente pensado...

    A pulsação de estímulos é intensa... de vida que abraça, que chama, que convida para manifestações de amabilidades e cumplicidade de uns para com outros, mesmo que seja por uma troca involuntária de olhares...

    A noite dá pouso e descanso ao dia. No escuro, com a cabeça no travesseiro, fecho os olhos e fico me perguntando:  

    - Para onde foram os que transitaram pelo meu caminho? Em quantos corações e em quantas lembranças permaneceu um pouco de mim? Quem se despertará na madrugada e se lembrará de ter me visto pelas calçadas? alguém irá pensar: "passou por mim um sujeito que parecia bom..."? Se, porventura, minha imagem reaparecer no sonho ou no pensamento de alguma pessoa, serei luz? ou levarei escuridão?

    - "Ah... o amanhã..."

    No silêncio do meu quarto tento dormir... Os que passaram por mim vão se distanciando sem terem sido abandonados: permaneceram, ficaram guardados... para reaparecerem em algum sonho, em alguma lembrança, em alguma noite... até que, do sono, a noite seja eterna.

Hey Tomorrow (Jim Croce)

 

Hey, tomorrow!

Where are you goin'?

Do you have some room for me?

 

'Cause night is fallin'

And the dawn is callin'

I'll have a new day, if she'll have me

 

Hey tomorrow!

I can't show you nothin'

You've seen it all pass by your door

 

So many times I said I been changin'

Then slipped into patterns of

What's happened before

 

[Chorus]

'Cause I've been wasted

And I've over-tasted

All the things that life gave to me

And I've been trusted

Abused and busted

And I've been taken by those close to me

 

Hey tomorrow!

You've gotta believe that

I'm through wastin' what's left of me

 

Ei, Amanhã

 

Ei, amanhã!

Onde você está indo?

Você tem algum lugar para mim?

 

Porque a noite está caindo

E o amanhecer está chamando

Eu terei um novo dia, se ela me acolher

 

Ei, amanhã!

Eu não posso mostrar-lhe nada

Você já viu de tudo passar por sua porta

 

Tantas vezes eu disse queestava mudando

Em seguida, voltei aos padrões

Do que já havia acontecido antes

 

[Refrão]

Porque eu ando exausto

E me excedi

Em todas as coisas que a vida me ofereceu

E fui bem-visto

Maltratado e desgastado

E fui tomado por aqueles perto de mim

 

Ei, amanhã!

Você tem que acreditar que

Estou desperdiçando o que resta de mim

 


terça-feira, 3 de setembro de 2024

DO SENA AO SAPUCAÍ: A EPOPEIA DE UM NAVEGANTE

 

Abertura dos Jogos Olímpicos, 2024 - Rio Sena
Foto: publicada na página Olympics, do facebook, postada em 23/01/24

para o Rui

Na abertura das Olimpíadas de Paris, o rio Sena foi a "avenida" pela qual desfilaram as delegações dos diversos países participantes. As ruas, as avenidas e os grandes rios foram, ao longo do tempo, e continuam sendo, os locais onde acontecem grandes desfiles cívicos, religiosos, comemorativos... e também muitas manifestações políticas.

Por caminhos batidos por animais, procurando trajetos mais curtos, desviando dos incômodos do calor do sol, dos acidentes do relevo, os homens vão se locomovendo, fazendo nascer ruas que, inicialmente estreitas e sinuosas, dentro de um povoado, são o embrião das grandes avenidas das cidades. De forma análoga, dos pequenos cursos de água, córregos, riachos, regatos, ribeirões, os rios. Assim, por ruas e avenidas, riachos e rios, vamos nos deslocando no espaço público.

"Fado Tropical" - Chico/Ruy Guerra
https://www.youtube.com/watch?v=NfjaFMah7sE

Depois de ter assistido à abertura das Olimpíadas, e depois de ter lido alguns comentários a esse respeito, fiquei imaginando muitas impossibilidades que poderiam até fazer algum observador sensato duvidar da minha sanidade... O curso dos rios, o traçado das ruas… sonhando estar em um pequeno barco, acompanhando o fluxo das águas… do Sena ao Thames, cruzando o Canal da Mancha no mesmo barco; seguindo ao sabor dos ventos até o Danúbio, da Floresta Negra até o Mar Morto… depois até o Reno, navegando dos Alpes até o Mar do Norte… por fim encontrando o Tejo… que, em trajetória inversa à cantada no "Fado Tropical" (Chico/Ruy Guerra), “numa pororoca, depois de cruzar o Atlântico, deságua no Rio Amazonas…”. Do Rio Amazonas, descendo pelo Tapajós, Araguaia, São Francisco, por rios riachos e corredeiras... pelo Paranaíba, pelo Rio Grande... num barquinho muito valente, em "dias de luz, festa de sol”, encontro-me no Rio Pardo... E sigo remando, remando... até que o Pardo, de alguma forma, encontre o Sapucaí. Daí, plantada às suas margens, a cidadezinha… a Cachoeira do Yamaguchi… o pequeno rancho… onde, por tantas vezes, deitado preguiçosamente no chão, olhava o céu… até adormecer de cansaço… sonhando navegar, um dia, pelas águas do Rio Sena…

O Rancho do Yamaguchi, às margens do Sapucaí
Foto: acervo pessoal (década de 70)

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

CLÓVIS, O GUERREIRO

 

Clóvis, o guerreiro (E. Picault - 1890) - (50x76x41 cm)
https://www12.senado.leg.br/tv/programas/colecao-senado/2019/03/clovis-o-guerreiro-e-representado-no-senado-em-escultura-de-bronze

    Émile Louis Picault (1833-1915) foi um artista francês, famoso por esculpir guerreiros, heróis, personagens históricos e mitológicos. Foi muito prolífico. Dentre seus inúmeros trabalhos, no ano de 1890 esculpiu em bronze o primeiro líder bárbaro que uniu grupos, com chefes tribais diversos, em torno do governo de um único rei - com reinado transmitido a seus herdeiros. Esse líder, Clóvis, que viveu de 466 a 511, o primeiro rei dos francos, é considerado o fundador da França - e da sua primeira Dinastia (a Merovíngia).
    "Clóvis, o guerreiro", peça esculpida em bronze em 1890, encontrava-se no Palácio dos Arcos - e, posteriormente, no Palácio Monroe (sedes sucessivas do Senado brasileiro), na cidade do Rio de Janeiro. Com a transferência da capital para Brasília, a peça "Clóvis, o guerreiro" passou a pertencer ao Museu do Senado Federal - onde pode ser vista.
    Não se sabe como a peça chegou ao Senado, no Rio. Ninguém sabe. Eu também não sei. Só sei que, em visita recente ao Museu do Senado, indiretamente pude me afastar no tempo para poder parabenizar o escultor E. Picault pela sua obra, e tocar suas mãos supostamente calejadas, por conexão possibilitada pelo bronze de superfície perfeita esculpido em rei.

Presidentes do Senado, no Império - Museu do Senado
Foto: acervo pessoal (jul/24)

Mobiliário (detalhe) do Museu do Senado
Foto: acervo pessoal (jul/24)

segunda-feira, 3 de junho de 2024

A RECREATIVA

 

Sociedade Recreativa, na Av. Nove de Julho (Foto: acervo pessoal, maio/24)

Sociedade Recreativa (Foto: acervo pessoa, maio/24)

    Ontem passei pela Nove... e, imaginando preservado o calçamento da Avenida, fiquei angustiado ao pensar em suas margens esquecidas em um tempo futuro, distante do meu período de existência... margens tomadas por prédios retos, frios, práticos, altos e impessoais... prédios espremidos construídos onde, um dia, havia existido um prédio diferenciado, um espaço para confraternização - um clube recreativo - às margens da Avenida.

    A Recreativa conta uma... muitas... inúmeras histórias da cidade e de sua gente: histórias de sonhos, lutas e sacrifícios, que ensejaram a formação de laços de amizade e companheirismo entre muitas pessoas.

    A sua sede social, na Av. Nove de Julho, é um prédio e espaço diferenciado? É! Tem valor cultural? Se tem!!! A começar pelos murais feitos nas paredes ao lado da calçada... Internamente, as suas piscinas... as quadras de tênis, o restaurante, os salões de festas... no coração de Ribeirão Preto: um belo cartão postal da cidade... da cidade que se enriquece, que se transforma... mas que - quero crer - saberá preservar e manter de pé suas referências...

Mural na Av. Nove de Julho, à entrada da Recra (Foto: acervo pessoal, maio/24)

Mural na Av. Nove de Julho, à entrada da Recra (foto: acervo pessoal, maio/24)

Mural na Av. Nove de Julho, à entrada da Recra (Foto: acervo pessoal, maio/24)

Mural na Av. Nove de Julho, à entrada da Recra (Foto: acervo pessoal, maio/24)

Mural na Av. Nove de Julho, à entrada da Recra (Foto: acervo pessoal, maio/24)

terça-feira, 28 de maio de 2024

A DIVINA COMÉDIA

 

Dante Alighieri - Portrait of Dante (1495, Sandro Botticelli)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Alighieri

No exato sentido do termo, conforme costumava empregar minha avó quando queria dizer "hábil, esperto", o Dante Alighieri (1265-1321) foi "danado" mesmo: dispôs o inferno, o purgatório e o paraíso, em "A Divina Comédia"*, em estruturas e camadas: creio que ele, ao fazer essa montagem, inspirou-se nas muitas pessoas que haviam passado e que ainda estavam passando pela sua vida. E fez tudo isso com muita arte. Certamente ele também olhou para si mesmo, e tentou se situar naquelas camadas. Fiquei também tentando me situar: em qual estrutura estaria eu? em qual camada? No paraíso não me vi, posto que ando muito humanizado; no inferno, fiquei até com um certo receio de refletir sobre os diversos estágios, mas definitivamente as entidades não devem ter chegado ao consenso de que eu deva ficar por lá, correndo de um lado para outro sem parar, como forma de pagamento pelas minhas omissões e infrações… Mas ainda guardo uma certa esperança de me purificar: assim, em havendo esperança, o inferno, por enquanto, não parece ser o meu destino. Tentei me enxergar no purgatório, e penso que tenho zanzado pelos seus estágios, procurando me purificar, e mantendo uma certa esperança de atingir o paraíso. Assim, ainda nesse embate pela purificação, vou ficando por aqui, mantendo a vontade e o empenho para me tornar cada vez menos imperfeito.

Interlúdio (órgão) - Basílica de São Pedro - 2016
https://www.youtube.com/watch?v=FWXXm34R3HQ

____________________________________ 
*A Divina Comédia (originalmente "Comédia") - foi escrito de 1304 a 1321.

domingo, 5 de maio de 2024

A VINGANÇA DAS ÁGUAS

 

A piscina - foto: acervo pessoal (set/2023)

    Depois de algum tempo voltei aos treinos noturnos de natação. Treinando, movimentando o corpo, vou cuidando de mim, quieto, em silêncio. Dentro d'água sou alvo de uma série de questões que, sem saber de onde vêm, ficam borbulhando em minha mente.

Astor Piazzolla - "Libertango"
https://www.youtube.com/watch?v=vaXNdVTGT0k

    Voltei à piscina para poder atravessar as sombras e o reflexo das luzes que incidem no bailado das águas; voltei para acompanhar a corrida dos azulejos no fundo da piscina... para poder ficar calado, observando... Batendo os braços e as pernas, em silêncio, as ideias vão brotando das águas... E vou respirando... pensando... 25 metros... 50 metros... braços alongados... "João do Rio e Lima Barreto nutriam, um pelo outro, uma grande inimizade... preciso estudar melhor a respeito..."... Respiro... indo e voltando... batendo as pernas de forma ritmada... 200 metros... "as postagens politicas e inoportunas no meu grupo whatsapp de amigos vão promover chateação e mágoas... devo dizer algo?"... 300 metros... batendo as pernas... pensando... "o administrador, antes de ter se manifestado, não ouviu a comunidade... expressou unicamente seu entendimento pessoal... Maquiavel já havia comentado a respeito... o egoísmo, a ânsia pelo poder..."... Mãos em concha... 400 metros... "a Lei de Emancipação, nos Estados Unidos, tampouco cuidou de criar uma política de inserção do negro na sociedade... mas... esse abismo social no Brasil..."... 500 metros... respiro.... "os líderes das grande potências não se manifestam com clareza em relação aos conflitos bélicos em curso pelo mundo... e tanta gente morrendo... os interesses políticos justificam a indiferença?"... Respiro... 600 metros... acelero os movimentos... "o diretor falou pelo grupo sem antes ter consultado os representados... não gostei... essa confusão é temerosa... por quê tanto tato para levantar a questão?"...  800 metros... respiro na borda da piscina... "há paralelos entre o sertão de Guimarães Rosa e o de Darcy Ribeiro?... preciso pesquisar..."... 1000 metros... Sigo nadando, cadenciadamente. Concentro-me nas batidas rítmicas de pernas, no giro dos braços... Respiro.

    Dentro d'água todos os sons e movimentos exteriores se distanciam, são secundários, desinteressantes... Enquanto nado, mergulho nas questões que vão borbulhando sem que eu as formule... Com força, bato as pernas na água... vou girando os braços, dando braçadas... e me pergunto voluntariamente: "Será que as águas promovem essa corrente impetuosa de questões como forma de vingança pela agressão que imponho a elas?" 

    Já na borda da piscina, cansado, respiro devagar e elaboro uma pergunta simples vinda lá do fundo do estômago: "O que será que teremos em casa hoje, para o jantar?"... e saio da piscina sem nenhuma resposta...


terça-feira, 2 de abril de 2024

O PALÁCIO MONROE

 

O Palácio Monroe
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_Monroe

    Para celebrar os cem anos de aquisição dos territórios da Nova França da América do Norte (Luisiana), os Estados Unidos promoveram a Exposição Universal de 1904 na cidade de Saint Louis (no estado do Missouri). Muitos países, dentre eles o Brasil, foram convidados a participar daquela que seria a 18ª Exposição Universal. Até então, as seguintes Exposições Universais, nos respectivos anos mencionados, haviam sido realizadas*: Londres (1851, 1862), Paris (1855, 1867, 1878, 1889, 1900), Porto (1865), Viena (1873), Filadélfia (1876), Sydney (1879), Melbourne (1880), Nova Orleans (1884), Barcelona (1888), Chicago (1893), Bruxelas (1897), e Buffalo (1901).

    Para sediar o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint Louis, o engenheiro militar Francisco Marcelino de Sousa Aguiar projetou um palácio em estrutura metálica, o qual deveria ser montado no local da Exposição e, ao seu final, desmontado e remontado no Brasil. Na Exposição o Palácio foi um grande sucesso, chegando a vencer o principal prêmio de arquitetura.

Pavilhão do Brasil - Exposição Universal de Saint Louis - EUA
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=6248

    Finda a Exposição, o Palácio foi desmontado - conforme previsto. Sua cúpula e as suas estruturas metálicas foram transportadas para serem remontadas na cidade do Rio de Janeiro, onde foi reinaugurado em 1906 para sediar a 3ª. Conferência Pan-Americana. Nessa ocasião, por sugestão de Joaquim Nabuco e do Barão do Rio Branco, o até então chamado Palácio de São Luiz foi renomeado "Palácio Monroe" - em homenagem ao presidente James Monroe, que governou os Estados Unidos de 1817 a 1825, e que, quando presidente, havia propagado a ideia de que fossem coibidas as interferências da Europa na América ("Doutrina Monroe" - "América para os americanos").

    Depois da 3ª. Conferência Pan-Americana, o Palácio Monroe sediou a Câmara dos Deputados de 1914 a 1922; o Senado Federal de 1925 a 1960, e o Tribunal Superior Eleitoral (1945 a 1946). Com a inauguração de Brasília, e consequentemente a transferência da sede do Senado para a Praça dos Três Poderes, o Palácio Monroe passou a ter a função de escritório de representação (do Senado). Alvo de críticas fundadas em ideias de progresso a partir daí, argumentava-se que o Palácio atrapalhava o trânsito, que ia contra as convenções estéticas da época, que impediria a construção de uma linha do metrô, e que acarretava muito gasto público. Assim, em 1975 o Senado devolveu o edifício ao governo federal, e, em 1976, o Palácio Monroe foi demolido. Atualmente, no local, há um chafariz e um estacionamento subterrâneo explorado por empresa privada.

Chafariz que ocupa local onde esteve o Palácio Monroe
https://oglobo.globo.com/cultura/filme-traz-visao-critica-sobre-demolicao-do-palacio-monroe-17742911

    O Palácio Monroe pode ser visto em fotos antigas (muitas delas pela Internet), na imagem do reverso da cédula de 200 réis emitida em 1919, e, por acaso, em uma breve cena tomada por helicóptero, no filme "Roberto Carlos em ritmo de aventura" (1968; Dir. Roberto Farias).

Palácio Monroe - Reverso da cédula de 200 mil reis (1919)
https://sterlingnumismatic.blogspot.com/2015/10/memorias-do-senado.html

    Aqui no Brasil, e em muitos outros países, edifícios ricos em valor artístico, histórico e arquitetônico foram e continuam a ser derrubados em nome da exploração imobiliária e do progresso. Parece até que a ideia de construção já vem diretamente ligada à da destruição - e não da preservação. Quando me deparo com ideias assim, fico pensando que esse pouco valor dado aos símbolos do nosso tempo traduz o descaso que se tem atribuído a tudo aquilo que construímos, e que constitui a nossa própria história... Particularmente carrego comigo uma certa cumplicidade com alguns edifícios que conheci, alguns onde vivi, e outros por onde passei; pois eles, resistindo ao tempo, conseguem guardar em si muito do menino que um dia fui. Sinto uma tremenda aflição quando, às vezes, penso que essas minhas preciosidades poderão, um dia, ser destruídas. Lima Barreto, ao comentar as transformações pelas quais passava a cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX, disse que "(...) não se pode compreender uma cidade sem esses marcos de sua vida anterior, sem esses anais de pedra que contam a sua história"**... e eu, mergulhado nas ideias do grande escritor, vou refletindo e dizendo a mim mesmo: "não posso me compreender sem que possa revisitar, sempre que quiser, os "Palácios" de pedra que aprendi a gostar - e onde deixei um pouco de mim."

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*O Brasil organizou a Exposição Universal de 1922, no Rio, em comemoração aos 100 anos de independência do Brasil.

**Trecho da crônica "O convento", publicada na Gazeta da Tarde em 21/7/1911 - republicada em "Cronistas do Rio" - org. por Beatriz Resende - Autêntica Editora, 2017