("Retrato de Jeanne Hébuterne com chapéu grande" - Modigliani, 1917 - fonte: http://amedeo-modigliani.paintings.name/hebuterne-straw-hat.php)
A beleza feminina pode nos levar a sensações diferentes. Sensações e idealizações. Penso nisso ao relacionar três Cecílias conhecidas, da música e da literatura.
A beleza dócil, que traz pureza e dependência à imaginação, está na Cecília do José de Alencar: a Cecy, do Pery. De tão meiga e pura foi objeto de cobiça masculina e desencadeou sequestros e envenenamentos. A cobiça, porém, não junta forças para unir. E foi o Pery, protetor da Cecy, quem amparou sua fragilidade, conduzindo-a mata adentro, pela vida adentro - como que a conduzir o europeu, simbolicamente, para dar início a um convívio pacífico entre índios e europeus. (Carlos Gomes, em música, traduziu muito bem essa jornada na segunda parte da abertura de "O Guarani")
A uma Cecília assim, do século XVII, que guarda a impossibilidade de ser dona da vontade própria, que precisa de alguém para lhe indicar o caminho, contrapõe-se uma outra Cecília, fugaz, inconsequente, livre e instável, que coloca o homem inquieto diante dos seus impulsos; que, em seguida e após um desacerto, volta atrás e ama-o novamente - conforme a “Cecilia” descrita por Paul Simon em uma de suas composições musicais.
Cecilia (Paul Simon) Cecilia, you're breaking my heart you're shaking my confidence daily Oh Cecilia, I'm down on my knees I'm begging you please to come home - come on home Making love in the afternoon with Cecilia, up in my bedroom I got up to wash my face when I come back to bed someone's taken my place Jubilation, she loves me again I fall on the floor and I'm laughing
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Cecília Cecília, você está partindo meu coração você está sacudindo minha confiança, diariamente Oh Cecília, estou de joelhos estou implorando por favor, volte pra casa Fazendo amor à tarde com Cecília, lá no meu quarto Eu me levanto pra lavar o meu rosto quando volto pra cama alguém havia tomado meu lugar Que grande alegria, ela me ama novamente eu caio no chão e me deito rindo |
Além das duas Cecílias, a frágil/dependente e a instável/impulsiva, há uma outra que me parece um grande mistério, que inspira monólogos silenciosos; uma Cecília inatingível, que pode reagir de forma inesperada porque é desconhecida, sendo ou não forte ou frágil, que é observada, somente observada, para que o diálogo não a traga à realidade, como a “Cecília” do Chico Buarque e do Luiz Cláudio Ramos. A essa Cecília nada pode ser dito, pois ela precisa ser inacessível para que seu encanto não seja desfeito.
(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR)
(Video: "Cecilia" - Chico Buarque e Luiz Cláudio Ramos)
https://www.youtube.com/watch?v=1eGWCgDCAkk
Cecília (Luiz C. Ramos/Chico Buarque)
Quantos artistas entoam baladas
pra suas amadas
Com grandes orquestras
Como os invejo, como os admiro
Eu que te vejo e nem quase respiro
Quantos poetas românticos, prosas
Exaltam suas musas
Com todas as letras
Eu te murmuro, eu te suspiro
Eu, que soletro teu nome no escuro
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos
meus lábios, de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias merecem, Cecília,
teu nome espalhar por aí
Como tantos poetas, tantos cantores
Tantas Cecílias com mil refletores
Eu, que não digo, mas ardo de desejo
Te olho te guardo te sigo te vejo dormir
E então, das três, qual retrata a mulher ideal?
Pra mim, nenhuma, isoladamente. Prefiro que em cada mulher resida um pouco de cada uma das três Cecílias - e de tantas outras Cecílias. Que, nessa Cecília idealizada, resida a mulher frágil, a independente, a misteriosa... E que as três Cecílias (e tantas outras mais) coexistam e se despertem, em cada momento apropriado, em uma Cecília só... Mas essa ainda não foi nem escrita e nem cantada...
RP, 29mar2011