sexta-feira, 25 de novembro de 2011

UÍSQUE ESCOCÊS


Quando o David –um dos meus anfitriões na Inglaterra- me disse que iríamos para a Escócia, passando pela fronteira terrestre, logo imaginei uma série de formalidades burocráticas. Passaporte, visto de entrada, investigações, perguntas sobre dinheiro etc etc.

        - “Mas, David” – eu disse a ele -, “não tenho visto para entrar na Escócia!”

Sem explicar nada ele sorriu para mim com jeito de quem estava fazendo alguma “arte”. Na verdade, logo descobri que estava mesmo. Mas era uma arte “doméstica”, digamos. Não poderíamos demorar. Afinal, ele havia saído de casa exclusivamente para ir buscar-me em um escritório, e em seguida voltaria direto para casa. Sua esposa nos aguardava.

        Com um sorriso de jovem octogenário, e ainda sem explicar nada, ele acelerava o carro e seguia em frente. Passamos por um restaurante em uma rotatória na estrada e ele chamou-me a atenção para a placa onde estava o seu nome e a sua publicidade: “The first and the last”.

        - “The first” – esclareceu-me ele -  “porque é o primeiro restaurante para quem vem da Escócia; e “The last” – complementou -,  “porque é o último para quem sai da Inglaterra”.   


Sem saber o que iria ver nessa fronteira, fiquei pensando e visitando meu imaginário. Uma fronteira entre países me remete a um  bloqueio no meio de uma estrada, policiais, cães de guarda, muros altos, funcionários burocratas mal encarados. É interessante como nosso imaginário funciona. Não é por menos! Afinal, as imagens das fronteiras que vemos em fotos nos nossos jornais não são nada boas: fronteira de Israel com o Líbano; fronteira do México com os Estados Unidos; fronteira da Coréia do Norte com a Coréia do Sul...

Em uma questão de minutos, menos de cinco, o David me apontou a bandeira de Escócia.
  
- Pronto, chegamos! – disse-me ele.

- Ué, mas é aqui? É isso? Só isso? – comentei espantado.
(Fronteira: Inglaterra / Escócia - a caminho de Eyemouth - arq. pessoal - 07/out/11)
(Placa na rodovia: Benvindo à Escócia - arq. pessoal - 07/out/11)

Não podia acreditar. Era tudo muito simples. Não tinha nada além de uma placa, uma bandeira bem alta, e uma pequena mureta simbólica na qual estava escrito: “Scotland” de um lado, e “England”, do outro.

Por sugestão do David encostei-me na muretinha, com um pé na Escócia e o outro na Inglaterra: fotografamos. Fotografamos a bandeira, a mureta, a placa, a estrada, tudo... Fiquei feliz e emocionado por estar ali. 

 (Com um pé em cada país: Inglaterra / Escócia - arq. pessoal, 07/10/11)

Fomos breves porque estava começando a chuviscar. Minha vontade era de ficar por muito tempo com um pé em cada país, para fazer durar aquele momento.

Ainda com as costas na muretinha eu me lembrava do meu tio Náufal. Ele, além de ser “um bom papo”, era um bom consumidor de uísque escocês e costumava dizer:

- Uma boa conversa é sempre regada a uísque. Mas tem que ser escocês...

Com essas lembranças vi que o David entrou no carro. Voltei “prá real” e entrei depois dele.

- “Nós voltaremos aqui outras vezes”, disse-me ele.

Seguimos para sua casa com a sensação de termos feito algo bom, algo que se eternizaria. Minutos depois, saindo do carro com o paletó molhado de chuva, sou apresentado à sua esposa, Audray. Ela, após os cumprimentos e observando nossa roupa molhada, sorriu e nos ofereceu:

- “Vocês querem chá ou uísque escocês?”

De imediato e instintivamente respondi: “uísque escocês, of course!”

Fui servido em dose dupla, sem gelo. Em nome de tudo e de todos levantei-me da cadeira, ergui o copo e fiz um brinde:

- A um mundo sem barreiras, aos meus anfitriões, e à amizade entre os povos: Cheers!

E começamos a conversar...

 (Com meus anfitriões, no "The first and the last" - arq. pessoal, 08/10/11)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A RUA E O PIANO EM UM DIA DE FINADOS

("Le lac de come" - C. Galos op.24) 

Em dia de finados a memória dos mortos promove a reunião dos que ainda estão. Retorno à minha terra. Na avenida de entrada me recebem as casas e as árvores alinhadas, verdadeiras testemunhas do meu tempo ali estancado. Elas fazem emergir não simples lembranças, mas especialmente presenças permanentes e intensas que o ritmo das cidades maiores não consegue levar.

Sou do interior. Aprendi, por natureza, a dar ouvidos e atenção ao que se manifesta ao meu redor. Nada me é indiferente. Em um infinitésimo de segundo um detalhe qualquer provoca a ressurreição de sons familiares e constantes que se foram: o badalar de um sino de igreja, o apito de um trem, um rangido de porta... Tudo, enfim, embutido em meu arsenal de vivências, reaparece involuntariamente para promover uma confraternização do que foi com o que tem sido.

Seguindo pela entrada, cruzando as palmeiras que substituíram os trilhos da estrada de ferro, virei à esquerda para a minha rua. Todos estavam lá: as árvores, os portões, os postes, os fios de eletricidade. Parei em frente da minha casa de infância e, ao sair do carro, ouvi acordes de piano. Por um instante aqueles sons me confundiram; por um momento não sabia dizer se os acordes eram sons do passados ou presentes.

(Minha rua - 02/11/2011 - foto: arq. pessoal)

Houve um tempo na minha rua em que as teclas de um piano davam vida às suas tardes preguiçosas. Valsas, serestas, canções russas, tardes inteiras, repetidas vezes... "Le lac de Come", "Branca", "Tardes de Lindóia", "Olhos Negros"... Eram poucos os pianos, apenas um maestro, uma professora, muitas alunas - dentre elas minha mãe e minha irmã. 

Fiquei parado na porta do carro, atento, tentando identificar a sequência de acordes que ouvia: "Tico-tico no fubá", do Zequinha de Abreu! Eram acordes reais, presentes. O andamento estava lento, mas isso não me incomodava. Imaginei que talvez o piano tivesse estado silente por algum tempo, por alguns anos, por algum motivo. Mas o que importava mesmo era que alguém retomava suas teclas, fazia com que elas dançassem, e enchia a rua de alegria.

Compreendo que reiniciar algo requer paciência e determinação. Todos nós temos algum motivo para, em algum momento, nos desviarmos de algo. Mas temos também instintos potenciais que nos fazem revisitar habilidades deixadas de lado. Os dons naturais insistem para que não sejam sepultados, para que sejam retomados para novos recomeços. A habilidade e a sensibilidade para a música fazem a vida ir além do que ela é. "A arte existe porque a vida não basta", diz, com sabedoria, Ferreira Gullar. Instintivamente, no meu pensamento, complementa Arthur da Távola: "Música é vida interior; e quem tem vida interior jamais padece de solidão."

Ainda ouvindo os acordes de "Tico-tico no fubá" fui recebido na calçada por minha mãe. Ao redor, as árvores e as plantas esbanjavam vitalidade. Fotografei. Foi um privilégio abrir o portão de casa ouvindo o som de um piano, naquela rua, naquela vizinhança. Entrei em casa mais contente, cheio de alegria. Pela música pudemos celebrar a vida ao redor de uma mesa posta com café e bolo de laranja, em dia de finados.

Gostaria que as tardes da minha rua voltassem a ser assim: alguém tocando piano, a vizinhança ouvindo atentamente... Afinal, há ali pessoas de talento que, por inspiração própria e um certo dom que as diferencia, conseguem dar ao seu universo uma dimensão que vai além da ciência. Tornam-se, portanto, sem que o saibam, e sem que tenham essa pretensão, uma doce referência.

RP, 02nov2011