terça-feira, 19 de agosto de 2014

EM VENEZA, COM ROSSANO BRAZZI

(CLIQUE PARA ASSISTIR E OUVIR)
("Summertime in Venice", de Alessandro Cicognini - Tema do filme "Quando o coração floresce")


"You only live twice,
 one life for yourself,
 and one for your dreams"*


     Com 25 títulos, a Folha de São Paulo lançou a coleção "Grandes Astros" (do cinema). Semanalmente nas bancas, cada título traz um pequeno livro que conta a vida profissional de um artista de destaque. Acompanha-o o DVD de um filme no qual atuou, e que foi marcante em sua carreira. Assim, todas as segundas-feiras vou às bancas em busca do "astro" da vez. 

     Na última semana saí à procura de Katharine Hepburn - volume 12 da coleção. E foi então que, ao ver o filme do volume 12, chamou-me logo a atenção o seu título: "Quando o coração floresce" (Dir. David Lean, 1955). De imediato lembrei-me de uma conversa que havia tido com a Dona H. - uma vizinha de setenta e poucos anos de idade, que vive só, e que está viúva há mais de vinte anos. Ela me contava com entusiasmo que tinha visto pelo jornal que seria lançada a coleção "Grandes Astros", e que queria assistir novamente "Quando o coração floresce" - que seria um dos filmes que acompanharia um dos volumes.  

     Separei então dois livrinhos com os DVDs do filme: um para mim e outro para dar de presente a ela. Mas, antes, resolvi perguntar a ela, por celular, se já o havia comprado. Entusiasmada com a notícia e com o telefonema, não só me solicitou que comprasse o filme, como também me explicou: 

     - Nele, atua o Rossano Brazzi.

     Não entendi muito bem o motivo que a levou a me dar aquela explicação. Mas ela mesma continuou: 

     - "O Rossano Brazzi era lindo, e quando o filme foi lançado, o meu namorado não queria que eu fosse vê-lo - não sei se por ciúme ou por causa das insinuações amorosas que eram avançadas para a época. Mas eu fui... e terminamos o namoro. Depois voltamos. Passado um tempo nos casamos."


(Katherine Hepburn e Rossano Brazzi em cena de "Quando o coração floresce" - fonte: http://cdn2-b.examiner.com/sites/default/files/styles/image_content_width/hash/45/03/450340e265ab53b338e5290ab4f35dcc.jpg?itok=E7gq8yW3)

     Em casa, naquela noite, fui assistir o filme. Gostei. É uma fantasia de amor na qual Jane (Katharine Hepburn) - uma solteirona americana - viaja sozinha para  Veneza. Lá chegando, depois de instalar-se em uma pensão, conhece e se apaixona por Renato (Rossano Brazzi) um italiano sedutor, dono de um antiquário. 

(Rossano Brazzi - fonte: http://1.bp.blogspot.com/_1XbCsR5voz8/S_Qh8wlWdwI/AAAAAAAAHmc/RushTRTuvck/s1600/summertime2.jpg)

     De fato, no filme, ele atua com perfeição. Elegantemente vestido, aparece um tanto quanto romântico e aristocrático. Imagino que, na época em que o filme foi lançado, o quanto sua figura alimentou as fantasias das jovens de então. E para a Dona H., parece que não foi diferente. Penso que no final daqueles anos 50, apesar de nunca ter viajado para o exterior, por intermédio do filme ela esteve na Itália, passeou pelas ruas e canais de Veneza, caminhou pela praça de São Marcos, e lá viveu com o Rossano Brazzi um grande romance... E isso trouxe a ela a possibilidade de sonhar, de viver sua outra vida embalada por fantasias que trouxeram cor à sua vida real.  

     - O que, senão um livro ou um filme, naquela época, poderia proporcionar a alguém uma viagem tão linda como a que ela viveu em sonhos? - pergunto eu a mim mesmo.

     Os sonhos e as fantasias são necessários. Infelizes aqueles que não podem ou não conseguem sonhar, que não conseguem olhar para as estrelas - para além delas. Os livros e o cinema proporcionam tudo isso sem que seja preciso sair do lugar. Afinal, como na letra do tema do filme "Com 007 só se vive duas vezes"** (gravado por Nancy Sinatra), em se tratando de vida, temos apenas duas: uma para nós mesmos, e outra para os nossos sonhos.

     Poucos dias depois de ter dado o filme à Dona H., fiquei sabendo que seus netos e netas adolescentes estiveram em sua casa, e lá ficaram conhecendo - além do Rossano Brazzi - a cidade de Veneza... onde a Dna. H. revendo a cidade e a sua história de amor, em duas semanas, já esteve por pelo menos três vezes (sem ter deixado a poltrona de sua sala de estar).

("Terrace cafe in Venice" - fonte: http://www.book530.com/painting/160480/Terrace-Cafe-in-Venice.html)


- * "Você vive somente duas vezes: uma vida para você mesmo, e outra para os seus sonhos"
- **"Com 007 só se vive duas vezes" - Reino Unido, 1967 - Dir. Lewis Gilbert. Música tema "You only live twice", escrita por Leslie Bricusse e John Barry.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O MENINO DE ENGENHO QUE NÃO FUI



(CLIQUE PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
(Fábio Zanon - "Mazurka choro", de Heitor Villa-Lobos)

     Em uma manhã ensolarada de sábado, eu e Denise pegamos a estrada para o "Museu Nacional do Açúcar e do Álcool"... aliás, para o "Engenho Central"; ou seja, para a "Usina"...

     - "Epa, que confusão! Afinal, para onde queríamos ir?" 

     Caro (e raro) leitor e amigo. Calma. Por ter me dado a honra de ler e tentar entender, pacientemente, as coisas um tanto confusas e desconexas que venho escrevendo aqui, sei que é muito tolerante em relação a minha pessoa. Agradeço. Por isso acho melhor recomeçar essa história de outra forma, desde o seu princípio, lá do meu escritório, enquanto olhava para o nada. Explico melhor. 

     Dispostos um ao lado do outro, em minha estante estão cinco livros escritos pelo José Lins do Rego: “Menino de Engenho” (1932), “Doidinho” (1933), “Bangüe” (1934), “Usina” (1936), e “Fogo Morto” (1943). Esses livros compõem, na obra do Zé Lins, um período chamado de “Ciclo da cana-de-açúcar”. Sem saber porque, eu os releio com frequência. Gosto de ficar olhando para eles e imaginando um menino, descalço e sem camisa, brincando em um engenho que não conheço e onde não fui. Esses livros e essas ideias me colocam em um período que não vivi, e em uma realidade muito diferente da minha: o mundo e o tempo do engenho.

     Nesses cinco livros o autor começa descrevendo, em “Menino de Engenho”, a vida em um engenho de açúcar, e termina mostrando, em “Fogo Morto”, a decadência e substituição, como modo de produção, do engenho pela usina.

     Tomado por ideias de engenho, usina e transformações sociais, fiquei sabendo da inauguração, entre os municípios de Pontal e Sertãozinho-SP, em dezembro do ano passado, da primeira etapa do projeto do "Museu Nacional do Açúcar e do Álcool".

     E foi aí que eu, como que a recuperar um tempo passado em um local onde não vivi (mas com a alegria de um menino de engenho que só conheci em livros),  e acompanhado da Denise em uma bela manhã de sábado, peguei o caminho para o "Museu".

     Depois de trafegarmos em asfalto, entramos em uma estrada de terra que passava por canaviais e pela fazenda Vassoural. Chegamos então ao antigo Engenho Central, onde está instalado o museu. 

(Vista lateral do engenho-usina-museu - foto: eu e Denise - arq. pessoal - jun/14)
     
     Recebidos e guiados por monitores, revimos e resgatamos, nas histórias do engenho, a história da exploração da cana-de-açúcar no desenvolvimento da economia do nosso país.

(Vista lateral - galpão de descarregamento e pesagem da cana-de-açúcar - foto: arq. pessoal)
     
     Fizemos a trajetória da cana dentro do engenho, desde a sua chegada e passagem pela balança para descarregamento, com posterior alimentação das esteiras, por onde segue para a moagem, e em seguida para o tratamento do caldo, fabricação e ensacamento do açúcar.

(Vista interna - processo de produção - foto: arq. pessoal)
(Vista interna - 1 - processo de produção - foto: arq. pessoal)

     As instalações do engenho-museu são grandiosas. Todo ele foi equipado com maquinaria escocesa do final dos anos 1880, com início de funcionamento em 1906. A produção de açúcar durou até 1964, quando, então, foi substituída pela de aguardente - fabricado até 1974.

     Dos equipamentos parados e expostos, foi doído ver o relógio da torre. De lá retirado, posto sobre o chão, expõe seu cansaço em marcar o tempo, em reter e controlar todas as horas que ditavam o ritmo da produção... ele, que por muitos anos controlou a dinâmica de tudo, agora vencido e sem uso... 

(Relógio da torre mais alta - foto: arq. pessoal)

     Na visão geral que tive ao chegar no engenho-usina-museu, o que se destacou, com imponência, foi o padrão britânico da arquitetura daquele período em suas edificações - com galpões amplos e tijolos aparentes.

(Entrada na área de produção - prédio em padrão britânico de arquitetura - foto: eu e Denise - arq. pessoal)
     
     Gostei da visita. Gostei muito. Penso até que o engenho Santa Rosa e o Carlos de Melo, da obra do Zé Lins, para mim já não serão mais os mesmos - eles passaram a existir, para mim, com maior intensidade. Creio mesmo que gostei de tudo o que vi por eu ter passado a vida rodeado de engenhos inexistentes, nos quais, sem saber, fui um menino.  


(Vista, com chaminé ao fundo - foto: eu - arq. pessoal)

     No final da visita, tomado por uma incontida alegria infantil, encontrei uma goiabeira próxima à chaminé, no fundo do engenho, de onde colhi e devorei "no ato" uma goiaba branca, temperada com o gosto do açúcar que escorreu para as terras que nutriram suas raízes.

(Uma goiabeira próxima à chaminé - foto: arq. pessoal)

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Obs.: aos que tiverem interesse, o site do "Museu" é www.engenhocentral.com.br
Também  http://www.engenhocentral.com.br/apresentacao/apresentacaoMuseucana.pdf

   

terça-feira, 5 de agosto de 2014

UMA SENHORA LIMPA A CIDADE


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ
(Suite 1 para violoncelo, de J. S. Bach - violoncelista: Yo Yo Ma)
     
     As ruas da cidade são o retrato da nossa miséria. Atiramos sobre elas os restos daquilo que desprezamos, como se quiséssemos expor a nossa imperfeição. São pedaços de papel, tocos de cigarro, cascas e caroços de frutas, folhetos promocionais, e tudo o que julgamos desnecessário...

     Eu caminho sempre pela mesma calçada, e muitas vezes vejo uma mesma funcionária do serviço público de limpeza. Ela varre a cidade e, atentamente, realiza seu serviço removendo resíduos que impiedosamente atiramos pelo chão... Todas as vezes que passo por ela tento ser visto para poder cumprimentá-la. Minha vontade é de atrair sua atenção para que perceba que reconheço a importância do seu trabalho, e também para que compreenda que nem ela e nem o resultado daquilo que faz são invisíveis. 

(Funcionária da Limpeza Pública - foto: arq. pessoal - jul/14)
 
     Ao passar por ela me encolho. Sinto vergonha. Vergonha pelo que vejo jogado no chão, e pela postura humilde que ela assume com a vassoura na mão. Mesmo não tendo sido autorizado para tanto, quero pedir-lhe desculpas em nome de todos. Mas ela não me vê - ou cuida para que eu não a veja - ... e segue varrendo, limpando, recolhendo restos, com a mente sabe-se lá onde.

     Imagino a angústia que carrega alguém quando percebe que, de seu trabalho, não vai haver um resultado final. Que todos os dias, depois de algumas horas, ao olhar para tudo o que foi feito, sabe que precisa recomeçar... 

     Mas aquela senhora da limpeza pública já se acostumou com a imperfeição e a indiferença de todos nós. Ela segue varrendo, limpando, recolhendo restos, como se estivesse cuidando do chão de sua própria casa. Sem os estímulos de reconhecimento de quem por ali passa, ela parece não ter noção da essencialidade do que faz. 

     Quanto a nós, que nos anestesiamos da capacidade de enxergar além, resta-nos aprender a realizar nosso próprio trabalho independente de aplausos, como faz aquela senhora... como se fôssemos, cada um de nós, e todos nós em conjunto, músicos de uma mesma orquestra... que, de um palco sem luzes, toca e encanta em um auditório vazio...

(Auditório Cláudio Santoro - Campos do Jordão/SP - foto: arq. pessoal)