quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O BEIJÓDROMO


"A coisa mais importante para os brasileiros (...)
é inventar o Brasil que nós queremos".
(Darcy Ribeiro)


     Todos nós sabemos o que significa a palavra "oca". Há uma boa explicação desse vocábulo no dicionário Houaiss: "(s.f.) construção de madeira entretecida e coberta por fibras vegetais, geralmente de planta circular, usada pelos indígenas do Brasil como moradia de uma ou mais famílias".

     Mesmo que nunca tenhamos visto uma oca de verdade, certamente por imagens de livro ou jornal já fomos apresentados a uma.

     No entanto, com a dinâmica das transformações que ocorrem no mundo - e que refletem também nas tribos indígenas - o aspecto geral de uma oca não permanece congelado no tempo. Ela é... modernizada. E foi pensando em uma imagem futurística de uma oca que projetou-se e construiu-se na Universidade de Brasília um prédio com o propósito de abrigar o acervo de seu fundador - o Darcy Ribeiro. Quando o projeto ainda estava no papel o próprio Darcy chamou-o, carinhosamente, de "Beijódromo" - referindo-se então à área em torno do prédio que viria a ser o "Memorial Darcy Ribeiro", e que seria utilizada pelos estudantes em suas horas de lazer.

(O Memorial Darcy Ribeiro - a imagem futurística de uma oca - fonte: arq. pessoal)

(Placa de inauguração do "Beijódromo", colocada na frente do prédio - fonte: arq. pessoal)

     Pois outro dia, estando em Brasília, fui à UnB para conhecer tanto o acervo material do seu fundador, quanto o próprio prédio que o abriga.

("O prédio é circundado por um lençol de água" - fonte: arq. pessoal)

     O prédio é circundado por um lençol de água. Logo na entrada, à esquerda, está o balcão de recepção; e do lado direito uma pequena cantina. Meu contentamento por estar ali era tão grande que de imediato me perguntaram se eu havia sido amigo pessoal do Darcy. Esclarecida ao pessoal da recepção toda a curiosidade que surgiu em relação à minha pessoa, segui em frente até um pequeno jardim no centro do prédio. 

("O jardim no centro do Memorial, no centro do qual está o tronco Kuarup"; no piso superior, os livros, discos, fotos e anotações do Darcy - fonte: http://campus.fac.unb.br/arquivo/universidade/item/2386-beij%C3%B3dromo-%C3%A9-pra-beijar)

     Parado e olhando as plantas existentes nesse espaço interno, percebi que "plantado" ali estava um tronco de madeira pintado e enfeitado com penachos, colares, fios de algodão, braçadeiras de penas de arara, e ornamentos indígenas.

(Kuarup, em detalhe - fonte: http://www.significados.com.br/kuarup/)

     Um dos funcionários do "Memorial", que havia me acompanhado até ali, percebeu o meu olhar de admiração voltado para aquele tronco. E sem a menor cerimônia, como que a ler meu pensamento, apressou-se em me explicar que não se tratava de um tronco de madeira qualquer; que aquele tronco era muito especial; que em um belo dia políticos e representantes de povos indígenas lá estiveram e o "plantaram" no jardim; que naquela ocasião, em cerimônia formal, os indígenas dançaram, cantaram e sacudiram chocalhos em frente ao tronco, como que a convidá-lo para a vida, como que querendo que aquele tronco se transformasse em gente.   

     Com muito do acervo material do Darcy guardado no "Memorial", somente a sua presença espiritual faria com que ele se completasse. E foi justamente para trazer de volta o espírito do Darcy que esse seu retorno à vida imaterial aconteceu com a realização daquele ritual indígena: o Kuarup. Pois o Kuarup consiste justamente nisso: trazer os mortos de volta à vida.

     Assim, espero que aqueles que vierem a entrar no "Memorial" se deixem impregnar pelo espírito do Darcy, pela sua eloquência, pela sua paixão pela vida, pelo Brasil e pelo nosso povo. Afinal, naquele local foi realizado o ritual indígena do Kuarup, e o tronco de madeira no centro do jardim transformou-se em algo muito mais significativo do que um simples pedaço de madeira: é o próprio corpo do Darcy, cuja alma habita naquele local. 

     Ao final, tomado de brasilidade, fui embora com o sentimento de que ainda há muito a ser feito pelo nosso país... e com a sensação de que, naquela visita, o espírito do Darcy havia me acompanhado por todos os lados.

(Eu ao lado de foto do Darcy em um painel do piso superior do Memorial, onde está o seu acervo material - foto: arq. pessoal)

*Darcy Ribeiro (26/10/1922 - 17/02/1997) - antropólogo, escritor, político e indigenista, fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

LA RUE GINOUX




(CLIQUE PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)

Ribeirão Preto, 13 de janeiro de 2015

Querido amigo:

     Foi com muita alegria que recebi a sua carta. Nela, acompanhada de uma foto, você me conta como foi sua chegada em Paris. Senti em suas palavras toda alegria que tomou conta de você por estar dando início ao seu trabalho e aos seus estudos nessa cidade. Você sempre buscou isso; você se empenhou para consegui-lo, e agora conquistou o que queria. Saiba que a sua alegria é também a minha alegria - e a alegria de todos os nossos amigos comuns.

     Por intermédio de suas observações a primeira impressão que tive foi de que o parisiense anda meio angustiado; estou errado? Mas não é para menos. Temos acompanhado daqui do Brasil e visto que a cidade ainda agoniza pelos atentados no "Charles Hebdo". E não só a cidade com suas instituições, mas também o próprio parisiense, a França toda, e as pessoas de boa vontade espalhadas por todos os cantos do mundo. Afinal, um atentado contra um ser humano qualquer representa um atentado contra toda a humanidade. 

     Confesso que enquanto lia sua carta eu conseguia viajar pela cidade por intermédio de suas palavras. Desci com você no aeroporto Charles De Gaulle, fiquei angustiado ao me dar conta de que suas malas não haviam chegado, viajei no seu ônibus até o 15º arrondissement, desci com você, e segui ao seu lado caminhando à procura de seu apartamento. 

     Não posso negar que gostaria muito de estar caminhando ao seu lado para também sentir a emoção da procura de sua rua - a Rue Ginoux.

     Aliás, foi motivo de um grande exercício mental aqui a tentativa que fiz para descobrir o porquê do nome de sua rua não me soar estranho. Pois toda vez que abro o mapa de Paris e fico olhando o nome das ruas e avenidas (e tenho feito isso com frequência desde a sua partida), a sensação que tenho é de estar assistindo uma aula de história ou literatura. Isso porque são tantos os nomes conhecidos que parecem até parentes próximos: Emile Zola, Charles De Gaulle, Victor Hugo, e tantos outros. Mas... "Ginoux"... esse nome não me soava estranho.

     Depois de muito pensar me dei conta de que o nome "Ginoux" sempre estivera ligado a obras de arte. Isso porque Van Gogh pintou um quadro muito conhecido e ao qual deu o nome de "L'Arlesiene: Portrait of Madame Ginoux". Você já havia se atentado para isso?

     Assim que, enquanto lia sua carta e vivia daqui suas emoções, pensava também no Van Gogh e nos motivos que o haviam levado a pintar tal quadro. Contam os biógrafos que Van Gogh morou em Arles, no sul da França, em um quarto alugado. E que, ali, ele frequentava um café - o "Café de la Gare". Contam também que a proprietária desse Café chamava-se Marie Julien - a tal "Madame Ginoux". Creio que tenha sido pelo fato da Madame Ginoux ter sido presença constante naquele período da vida do Van Gogh que ele  resolveu eternizá-la. Claro que hoje, para isso, o recurso mais prático é a fotografia; mas nos tempos do Van Gogh pintava-se, desenhava-se, ou esculpia-se. E o Van Gogh a pintou - em duas telas. 

(L'Arlesienne: Madame Ginoux, Van Gogh, 1888 - fonte: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/51.112.3)

(L'Arlesienne: Retrato de Madame Ginoux - Van Gogh, 1888 - fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Van_Gogh_-_L%27_Arlesienne_%28Madame_Ginoux%291.jpeg)

     Você conta que enquanto procurava pela sua rua ia observando os prédios e as muitas pessoas que passavam por você - cada uma delas, indiferente a você, com seu destino e sua história. Mas pelo fato de serem pessoas que passavam por você justamente em seu primeiro dia na cidade, creio eu, a indiferença delas vai passar a ser inversamente proporcional ao significado que elas certamente terão em sua vida. Não tenho dúvidas em relação a isso. Tanto que - você vai ver -, algum dia, muitas daquelas faces reaparecerão em algum sonho seu, tamanha a importância daquela pequena caminhada. 

     Fico imaginando sua ânsia em conseguir realizar com alguém seu primeiro diálogo em francês. E, cá entre nós, eu faria o mesmo que você fez: tentaria atrair a atenção de algum pedestre para poder testar o meu francês perguntando qualquer coisa - "onde está localizada a Rue Ginoux?", por exemplo. 

     - "Excusez moi, madame, savez vous où est la Rue Ginoux ?"

     E, estando em Paris, você conta que foram justamente estas as suas primeiras palavras em francês. Fiquei aqui imaginando você, seu semblante de estrangeiro, procurando situar-se na cidade. E senti também a alegria que você sentiu quando, depois de ouvir a resposta à sua pergunta, você ergueu a cabeça e leu em uma placa: "Rue Ginoux". Senti como se estivesse ao seu lado...

     Você descreveu esse momento de uma forma tão precisa que as batidas do seu coração não poderiam estar indiferentes àquele momento tão precioso. Meu coração também bateu forte aqui quando li esse trecho de sua carta. Certamente, como você disse, seu coração acelerou. E acelerou de tal forma que você pegou seu iPhone e eternizou em foto a visão que teve no momento em que encontrou a rua... a sua rua Ginoux. 

(A foto da Rue Ginoux que recebi - 13/jan/15 - fonte: Gera)

     Pois em uma comparação distanciada pelo tempo, o instinto que te levou a fotografar sua rua foi tal qual o que levou Van Gogh a eternizar em tela, com tinta e pincel, a madame Ginoux. 

     Conheço agora o seu endereço, e também passei a gostar do nome de sua rua: Rue Ginoux - sendo ele em homenagem ou não à Madame Ginoux das telas do Van Gogh.

     Durante todo o tempo em que lia sua carta, fiquei pensando em como seria bom se estivéssemos juntos aí para dividirmos nossas impressões à respeito dessa cidade. Que bons papos teríamos! (Apesar, claro, de minha chatice, para a qual sei que você sempre dá um desconto.)

     Creio que você já deve ter sentido, de outras viagens que fez, o quanto repensamos o Brasil quando nos distanciamos dele. Não é verdade que o redescobrimos? que reconhecemos que temos um grande país a ser construído? E, da mesma forma, não é verdade que, estando longe, intensificamos o amor que sentimos por ele?

     Bom, na expectativa de novas notícias suas vou ficando por aqui, vigiando o tempo, fazendo minhas anotações... Sinta daí todo o contentamento que sinto aqui em saber que você está bem, que você está feliz, e que está realizando um grande sonho que sempre teve.

     Receba um abraço meu, tão grande e tão forte quanto o carinho e a admiração que tenho por você. 

     Elias

P.S.: Um dos sites que conta a história dos nomes dados às ruas de Paris diz que o nome "Ginouox" homenageia o antigo proprietário da área onde está hoje a rua. (http://www.linternaute.com/sortir/rue-paris/rue-ginoux-75015-paris): "Será que ele era parente da tal Madame?"