segunda-feira, 29 de maio de 2017

EU, DELATOR



(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
Bach - Ária da "Paixão Segundo São Mateus" - BWV 244 -Erbarme Dich
https://www.youtube.com/watch?v=BBeXF_lnj_M


"Cria em mim, Senhor, um coração puro,
e renova dentro de mim um espírito inabalável."
(Bíblia, Salmos 51:10)


     Vi minha irmã conversando com um rapaz em frente ao cinema e fui dizer aos meus pais que ela estava namorando (sem que estivesse). Eu só queria fazer o circo pegar fogo - e a história era um prato cheio para as guerrinhas que acontecem entre irmãos. Como ela era ainda muito jovem, ouviu uma baita lição de moral e ainda foi punida com uma bronca terrível. E eu, hoje pensando no caso, lembrei que ainda tenho o crédito de uma premiação - que na época não recebi. Estávamos no final dos anos 60, e eu tinha meus nove ou dez anos de idade. Com o meu gesto - reconheço - acabara de me tornar um delator. 

     Sempre que ouço falar em delação o primeiro nome de que me lembro é o de Judas Iscariotis: por algumas moedas de prata ele entregou Jesus Cristo aos soldados romanos. No final, arrependido, suicidou-se.


Giotto1
"Beijo de Judas" - 1303/1305 - Giotto
Fonte: https://janeaustenrunsmylife.wordpress.com/2013/03/

     Antes de Judas, antes ainda do nascimento de Jesus Cristo, Brutus já havia traído Júlio César (o imperador romano) e conspirado para o seu assassinato. Brutus tem, assim, a fama de ser o primeiro traidor da história. Suicidou-se, no final.

     Muitos outros traidores apareceram por aí. Lembro-me de alguns.

     Augusto Pinochet traiu Allende no Chile. Foi acusado da prática de diversos crimes, sofreu infarto em prisão domiciliar, e morreu de parada cardíaca.

     Himmler, chefe da polícia nazista, tentou negociar a rendição da Alemanha aos aliados na segunda guerra. Tendo sido um dos responsáveis pela política de aprisionamento em campos de concentração e eliminação em massa, foi considerado criminoso. Também se suicidou.

     Tommaso Buscetta, que na década de 80 buscou refúgio aqui no Brasil, entregou o esquema da máfia na Itália. Como recompensa ganhou proteção especial e um dinheirão: morreu de câncer. No entanto, a máfia não deixou por menos: acabou com a vida de muitos de seus familiares.

     Na história do Brasil há dois "grandes" traidores: Calabar e Joaquim Silvério dos Reis.

     Quando os holandeses, na condição de invasores, aqui estiveram no século XVII, Domingos Fernandes Calabar os auxiliou em suas conquistas. Foi, por isso, taxado de traidor da pátria (apesar de alguns historiadores interpretarem seu envolvimento com os holandeses de forma diferente). Morreu na forca. Seus restos mortais foram esquartejados e espalhados em praça pública - assim como, futuramente, viriam a ser os restos mortais de Tiradentes.

     Joaquim Silvério dos Reis, na Inconfidência Mineira do século XVIII, para escapar de suas dívidas com a Coroa portuguesa, delatou seu amigo Tiradentes e todos os demais inconfidentes. Como premio ganhou do governo português pensão vitalícia e perdão por todas as dívidas.

     Com a deleção premiada, muito em voga hoje em dia, o investigado (ou acusado) ganha legalmente a oportunidade de tirar para si algum proveito: confessa um crime, delata os envolvidos, traz provas e novidades. Com isso é premiado com a redução dos danos na pena que lhe for aplicada.

     Não coloco em questão os méritos ou deméritos desta lei (Lei 12850/13)Mas entendo que ela ajuda muito na persecução criminal. Como consequência, a traição no Brasil passou a ganhar novos adeptos. Nomes como Roberto Jefferson, Delcídio do Amaral, Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa, Alberto Youssef, Marcelo Odebrecht, Joesley Batista e Ricardo Saud entraram para essa lista. E muitos outros também estão sinalizando interesse em engrossar esse caldo.

     Com tanta gente assim, a traição ficou banalizada. Surge um novo traidor-delator a cada dia. Tantos que Silvério dos Reis, que até há pouco ostentava o título de maior traidor do Brasil, corre o risco de perder essa sua posição de unanimidade no rol de nossos "gloriosos" traidores.

     A redução dos danos da pena aplicada aos crimes praticados por delatores pode ocorrer. No entanto estou certo de que a culpa e a pecha de traidor-delator vai acompanhá-los intimamente pelo resto de suas vidas - assim como eu, que mesmo tendo recebido o perdão de minha irmã por aquela delação ocorrida há cerca de cinquenta anos, ainda hoje carrego no fundo da minh'alma o remorso, o peso e a vergonha de um dia ter sido um delator.

     Daí que, na esperança de ainda receber uma premiação pelo crédito de delator que tenho, e inspirado no Salmo 51:10 da Bíblia, peço a minha recompensa:

    - "Cria em mim, Senhor, um coração puro, e renova dentro de mim um espírito inabalável".

sábado, 20 de maio de 2017

ROSEMARIE



(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
("Rosemarie" - Flying Machine)
https://www.youtube.com/watch?v=_vGFQXo2O98


Maninha,

     Da última vez que te vi você estava arrasada. Você chegou perto de mim em prantos. Sofria uma dor de amor que não tinha tamanho. Eu nada pude fazer senão te dar um abraço de amigo e te ouvir... ouvir o pouco que você conseguia dizer em soluços. Você não percebeu mas chorei suas lágrimas juvenis com minhas lágrimas adultas acobertadas por palavras que não consegui dizer.

     Compreendo o quanto foi doído para você. Em especial por ter acontecido em uma fase tão cheia de sonhos e idealizações em sua vida. E você, ainda tão jovem, tanta coisa pela frente...

     Imagino o quanto ainda esteja sofrendo. Sei que doeu. Doeu porque veio acompanhado de decepção, da sensação de ter sido trocada, de ter sido deixada de lado por alguém que não aprendeu a te conhecer. Doeu porque as decepções vão nos aproximando da natureza humana - e enxergar fundo dói.

Crying Girl by sas117
(Foto: http://sas117.deviantart.com/art/Crying-Girl-217104390)

     Ao mesmo tempo foi bom que tivesse acontecido, que tudo tivesse aparecido de forma clara. Amar é bom, mas é necessário que o amor venha acompanhado de reciprocidade, de admiração, de companheirismo... e requer tempo. O amor unilateral não faz sentido.

     Se tudo terminou é porque não valia a pena.

     Não vejo mais nenhum sentido em saber que você continua triste.

     Que tal então, Maninha, atender o pedido tão bonito, antigo e atual do "Flying Machine" em "Smile a little smile for me"? Volte a sorrir; me diga que voltou a sorrir. É um recomeço! Seu coração entenderá. Os olhos, ao refletirem esse esboço de esperança, vão ficar carregados do brilho e da alegria que são o retrato do seu encanto. 

     Te envio daqui um beijo: um beijo desse seu amigo de cabelos brancos que muito te admira, te quer bem, e quer te ver sempre feliz.

     Elias


Smile A Little Smile For Me
You really should accept
This time he's gone for good
He'll never come back now
Even though he said he would
So, darling, dry your eyes
So many other guys
Would give the world I'm sure
To wear the shoes he wore

Oh, c'mon smile a little smile for me, 
Rosemarie
What's the use in cryin' ?
In a little while you'll see, Rosemarie
You must keep on tryin'

I know that he hurt you bad
I know, darling, don't be sad and
Smile a little smile for me, Rosemarie, Rosemarie
I guess you're lonely now
Love's comin' to an end
But, darling, only now
Are you free to try again
Lift up your pretty chin
Don't let those tears begin
You're a big girl now
And you'll pull through somehow

Oh, c'mon smile a little smile for me, Rosemarie
What's the use in cryin'?
In a little while you'll see, Rosemarie
You must keep on tryin'

I know that he hurt you bad
I know, darling, don't be sad and
Smile a little smile for me, Rosemarie, Rosemarie
Smile a little smile for me, Rosemarie, Rosemarie

Dê um pequeno sorriso para mim

Você realmente deveria aceitar
Desta vez ele se foi de vez
Agora ele não voltará mais
Embora ele dissesse que voltaria
Então, querida, enxugue seus olhos
Muitos outros rapazes
Dariam o mundo - estou certo
Para estar no lugar dele
Oh, vamos lá, sorria um sorriso para mim, Rosemarie
De que adianta chorar?
Em um momento você verá, Rosemarie
Você realmente deveria tentar

Eu sei que ele a machucou muito
Eu sei, querida, não fique triste e
Sorria um pequeno sorriso para mim, Rosemarie...

Eu acho que você está solitária agora
O amor chegou a um fim
Mas, querida, somente agora
Você está livre para tentar novamente
Levante esse belo queixinho
Não deixe as lágrimas começarem
Agora você é uma garota crescida
E você sobreviverá de alguma maneira

Oh vamos lá sorria um sorriso para mim, Rosemarie
De que adianta chorar?
Em um momento você verá, Rosemarie
Você realmente deveria tentar

Eu sei que ele a machucou muito
Eu sei, querida, não fique triste e
Sorria um pequeno sorriso para mim, Rosemarie...
Sorria um pequeno sorriso para mim, Rosemarie...


quinta-feira, 4 de maio de 2017

BELCHIOR: TUDO OUTRA VEZ


ESCLARECIMENTO INICIAL:
Com a morte do Belchior fiquei me lembrando de uma noite, há muitos anos, quando, após uma apresentação sua, fui ao camarim e pude conversar rapidinho com ele. Dessa conversa guardei a impressão de que havia estado diante de um intelectual, um homem inquieto, que precisava estar em constante mudança para poder ser feliz. Não estranhei quando, em 2009, a mídia noticiou seu sumiço e posterior localização em uma pousada no interior do Uruguai: para mim, ele ainda andava em busca de sua felicidade. Agora, com sua morte, imaginei-o ainda solto pelo mundo, mas comunicando-me que, em algum momento, havia se encontrado. Nesse comunicado fictício que me faz, por carta, ele conta que está voltando para suas raízes -  onde assumidamente pode se encontrar e ser  feliz.


(Fonte - http://www.controversia.com.br/blog/2016/09/18/o-belchior-que-a-critica-vulgar-nao-viu/)


Paris, Maio de 2017

Meu querido amigo:

     O tempo passou mais depressa do que eu imaginava. Passou voando. Ele - o tempo - deveria ter piedade de nós e tratar de nos dar mais tempo para podermos compreender cada manifestação de vida, de cultura e arte que surge em nosso caminho. Pois mesmo depois de tantos anos, parece que foi ontem que deixei o Brasil para poder me procurar aqui na Europa. 

     Com o carinho de alguém que tem saudade de um amigo distante, enviei a você muitas mensagens e fotos via whatsapp. Passei a maior parte dos meus dias aqui em Paris, mas, não resistindo à proximidade dos locais em relação às nossas distâncias brasileiras, rodei por Versalhes, Rennes, Marselha, e outras cidadezinhas francesas, estendendo ainda as viagens para Florença, Barcelona, Bruxelas, Bruges, Amsterdã, Haia, Londres, Berlim, Viena, Budapeste, Praga, Atenas e muitas outras. 

     Todas as coisas que vi e fiz durante essa procura agora moram apenas nas minhas lembranças. O Portão de Brandemburgo, o museu da Anne Frank, as conversas na livraria em frente à "Science Po", as ruas de Bruges, o Partenon em Atenas, a cidade de Paris vista das escadarias de Sacre-Coeur, os vendedores ambulantes nas imediações da Torre Eiffel, os percursos de bicicleta do studio onde me hospedei até à universidade, as pessoas nas ruas, os artistas em frente aos pontos turísticos, as conversas com amigos e tudo o que vi estão comigo estando eu onde estiver.

     Há poucos dias, me procurando sozinho pela República Tcheca, vi o sol nascer de uma poltrona de ônibus. Pela janela, margeando a estrada estreita, um imenso campo de girassóis encheu o meu coração de verde e amarelo, de alegria, de encanto - e de saudade do Brasil.


(Fonte: http://lifeglobe.net/entry/7418)


     Promover buscas por intermédio de viagens é muito bom; porém fica melhor ainda quando temos alguém com quem compartilhar a emoção que sentimos no exato instante em que vemos algo que nos toca e nos transforma. A gente, assim, feito exilado, tem muito tempo para ficar pensando. E, se pensamos com o coração, descobrimos o valor e o sentido de nossas raízes, da família, dos amigos, e ainda "de quebra" podemos pelo menos tentar traçar nosso próprio destino. Pois foi nesse despertar que senti que era hora de voltar.

     Outra noite, depois disso, ainda aqui em Paris, bebendo e ouvindo música com um grupo de brasileiros, falando sobre distâncias e ausências, buscas e perdas, a saudade bateu forte. Precisava mesmo retornar ao meu país - à minha identidade. Como em um insight, o papo idealista de brasileiros em uma pequena sala estrangeira me despertou e me mostrou que, mesmo com tantas procuras, há um tempo em que a vida nos chama para nos aquietarmos em nosso lugar - e que o universo maior não é físico.

     É certo que andei perdido. Hoje sei que dentro de mim está todo o universo, e que somente em mim mesmo posso me encontrar. Pois então escrevo para te contar que estou voltando. Que preciso voltar. Chego no dia vinte, sexta-feira, onze da manhã, em Guarulhos. Gostaria de te ver logo no desembarque. Quero poder te abraçar, conversar contigo, te mostrar minhas novas composições, e ouvir de ti suas impressões a respeito delas.

     Por ora, distante e com frio, fico na expectativa de podermos nos rever. Receba um grande abraço meu com o entusiasmo de um homem que, despertando de um longo desencontro, aos setenta anos se sente renascer.

     Belchior

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(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
ACOMPANHANDO A LETRA)
"Tudo outra vez" - Belchior
fonte: https://www.youtube.com/watch?v=uUiycm1Mi-I

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TUDO OUTRA VEZ
(Belchior)

Há tempo muito tempo que eu estou longe de casa
E nessas ilhas cheias de distância
O meu blusão de couro se estragou
Ouvi dizer num papo da rapaziada
Que aquele amigo que embarcou comigo
Cheio de esperança e fé, já se mandou

Sentado à beira do caminho pra pedir carona
Tenho falado à mulher companheira
Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil
E um cara que transava à noite no "Danúbio azul"
Me disse que faz sol na América do Sul
Que nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil

Minha rede branca, meu cachorro ligeiro
Sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro
O fim do termo "saudade" com o charme brasileiro
De alguém sozinho a cismar
Gente de minha rua, como eu andei distante
Quando eu desapareci, ela arranjou um amante
Minha normalista linda, ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar

Até parece que foi ontem minha mocidade
Com diploma de sofrer de outra Universidade
Minha fala nordestina, quero esquecer o francês
E vou viver as coisas novas, que também são boas
O amor/humor das praças cheias de pessoas
Agora eu quero tudo, tudo outra vez

Minha rede branca, meu cachorro ligeiro
Sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro
O fim do termo "saudade" com o charme brasileiro
De alguém sozinho a cismar
Gente de minha rua, como eu andei distante
Quando eu desapareci, ela arranjou um amante
Minha normalista linda, ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar