segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A RUA E O PIANO EM UM DIA DE FINADOS

("Le lac de come" - C. Galos op.24) 

Em dia de finados a memória dos mortos promove a reunião dos que ainda estão. Retorno à minha terra. Na avenida de entrada me recebem as casas e as árvores alinhadas, verdadeiras testemunhas do meu tempo ali estancado. Elas fazem emergir não simples lembranças, mas especialmente presenças permanentes e intensas que o ritmo das cidades maiores não consegue levar.

Sou do interior. Aprendi, por natureza, a dar ouvidos e atenção ao que se manifesta ao meu redor. Nada me é indiferente. Em um infinitésimo de segundo um detalhe qualquer provoca a ressurreição de sons familiares e constantes que se foram: o badalar de um sino de igreja, o apito de um trem, um rangido de porta... Tudo, enfim, embutido em meu arsenal de vivências, reaparece involuntariamente para promover uma confraternização do que foi com o que tem sido.

Seguindo pela entrada, cruzando as palmeiras que substituíram os trilhos da estrada de ferro, virei à esquerda para a minha rua. Todos estavam lá: as árvores, os portões, os postes, os fios de eletricidade. Parei em frente da minha casa de infância e, ao sair do carro, ouvi acordes de piano. Por um instante aqueles sons me confundiram; por um momento não sabia dizer se os acordes eram sons do passados ou presentes.

(Minha rua - 02/11/2011 - foto: arq. pessoal)

Houve um tempo na minha rua em que as teclas de um piano davam vida às suas tardes preguiçosas. Valsas, serestas, canções russas, tardes inteiras, repetidas vezes... "Le lac de Come", "Branca", "Tardes de Lindóia", "Olhos Negros"... Eram poucos os pianos, apenas um maestro, uma professora, muitas alunas - dentre elas minha mãe e minha irmã. 

Fiquei parado na porta do carro, atento, tentando identificar a sequência de acordes que ouvia: "Tico-tico no fubá", do Zequinha de Abreu! Eram acordes reais, presentes. O andamento estava lento, mas isso não me incomodava. Imaginei que talvez o piano tivesse estado silente por algum tempo, por alguns anos, por algum motivo. Mas o que importava mesmo era que alguém retomava suas teclas, fazia com que elas dançassem, e enchia a rua de alegria.

Compreendo que reiniciar algo requer paciência e determinação. Todos nós temos algum motivo para, em algum momento, nos desviarmos de algo. Mas temos também instintos potenciais que nos fazem revisitar habilidades deixadas de lado. Os dons naturais insistem para que não sejam sepultados, para que sejam retomados para novos recomeços. A habilidade e a sensibilidade para a música fazem a vida ir além do que ela é. "A arte existe porque a vida não basta", diz, com sabedoria, Ferreira Gullar. Instintivamente, no meu pensamento, complementa Arthur da Távola: "Música é vida interior; e quem tem vida interior jamais padece de solidão."

Ainda ouvindo os acordes de "Tico-tico no fubá" fui recebido na calçada por minha mãe. Ao redor, as árvores e as plantas esbanjavam vitalidade. Fotografei. Foi um privilégio abrir o portão de casa ouvindo o som de um piano, naquela rua, naquela vizinhança. Entrei em casa mais contente, cheio de alegria. Pela música pudemos celebrar a vida ao redor de uma mesa posta com café e bolo de laranja, em dia de finados.

Gostaria que as tardes da minha rua voltassem a ser assim: alguém tocando piano, a vizinhança ouvindo atentamente... Afinal, há ali pessoas de talento que, por inspiração própria e um certo dom que as diferencia, conseguem dar ao seu universo uma dimensão que vai além da ciência. Tornam-se, portanto, sem que o saibam, e sem que tenham essa pretensão, uma doce referência.

RP, 02nov2011

10 comentários:

  1. Elias, é verdade que ao descermos do carro, naquele dia de finados, fomos surpreendidos pelo som de um piano. A dúvida se o som estava vindo de dentro da casa da sua mãe nos deixou impactados, lembra? A sua sensibilidade o transportou às suas memórias e te impulsionou a escrever, mas o impulsionou, principalmente, a voltar para o seu violão. Gostei do texto. Beijos. Denise.

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    1. Adoro crônicas que falam de cidades e suas relações com as pessoas, afinal foi a partir de três mini-crônicas sobre São Paulo que criei meu blog de crônicas. Parabéns. Pelo texto cumpadi Elias. Abraço, Alba.

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    2. Obrigado, Alba. Grande abraço a você também.

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  2. Como tantos outros, um texto sensível que nos remete à infância vivida na nossa querida cidade. Parabéns, Elias, por mais este belo texto, bem oportuno. Abraço.

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    1. De fato... nossa querida cidade. Acho mesmo que quem morou, como nós moramos, em cidade pequena, acaba aprendendo a ter um olhar mais atento para muita coisa - para a escrita em imagens fotográficas, inclusive. (Nosso projeto está de pé... ). Grande abraço, e obrigado pelo carinho contido no comentário.

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  3. Elias, creio que não tenha lido esse texto na época que foi escrito, mas, é muito lindo, como todos que brotam da sua sensibilidade. O interessante é que lendo o texto, devido a proximidade, logo imaginei que fosse a D. Gleyde tocando seu maravilhoso piano, que tive o prazer inusitado e a honra de ouvir, em época recente que a levou a retornar ao piano. Então lembrei que fui, de forma mais gentil, amigável e considerada, agraciado com um CD da D. Gleyde. Por acaso você tem esse CD? Estou inserindo isso no meu comentário porque se você não tiver posso levar o meu no dia 14 para que possa tirar uma cópia. Dê um retorno. Abraços

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    1. Meu amigo João: Não tenho esse CD, não sabia que ele existia. Quero tê-lo. Amarre uma fita no dedo para que não se esqueça de trazê-lo para que eu possa copiá-lo. Obrigado pelos comentários aqui postados. Grande abraço.

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  4. Querido Primo, não pude deixar de perceber, nossas traves, as árvores que serviam de gols não estão presentes na foto! Quanto ao seu texto, só uma pessoa de sensibilidade aflorada pode, com talento é claro, transformar algo corriqueiro num texto tão bonito!

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