terça-feira, 1 de setembro de 2015

A OUTRA MARGEM DO RIO



("Saudade", Mário Palmério)


(Para o meu tio Milim)


"Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. 
Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade."
(Guimarães Rosa)



     A visão compreende muito mais do que os olhos podem ver. Não só com o coração, mas também com a mente o invisível ganha seus próprios contornos. Para isso o tempo revela seu sentido. Ele carrega e se encarrega de abrir rugas em nosso rosto, e de depositar nelas as manifestações de vida, alegria e tristeza pelas quais passamos. E quando essas manifestações são tocadas, aquilo que um dia valeu à pena ficar guardado reaparece.

     Quem trafega de Uberaba/MG a São Paulo, pela Anhanguera, pode observar que há, em ambos os lados da pista, pequenas estradas - verdadeiras trilhas encobertas de mata. Mas além da mata, nos pequenos ranchos e casebres escondidos no campo, muita coisa certamente imaterializou-se e ficou estacionada no tempo daqueles para quem cada um desses caminhos e destinos, um dia, foi significativo. 

     Em um determinado ponto da Anhanguera, ainda no município de Guará/SP, pouco antes da ponte que cruza o rio Sapucaí, do lado direito da pista, há uma porteira de madeira que dá entrada para uma dessas pequenas estradas de terra. Não sabe o viajante que a observa que, no final desse caminho, havia um rancho e uma pequena cachoeira.

(Uma porteira à margem da rodovia - fonte: arq. pessoal)

     Por essa estrada de terra passaram muitos homens que conheci: Tio Milim, Sr. Esmeraldo, Budu, Nicola, Maneco, Zé Berto, Dr. Leão, Teruo, Tita, Welson, Sr. Zezinho... Amigos, em dias de manhãs preguiçosas, eles se espremiam em algum veículo, deixavam a cidade, adiavam seus afazeres, e seguiam para a cachoeira. Parecia que nada lhes era mais importante, agradável ou urgente do que celebrar a vida e a amizade.

     Ainda menino, e levado pelo meu tio, algumas vezes fui à cachoeira com esse grupo. Sob um ranchinho de pobreza franciscana, às margens da cachoeira, eles falavam das coisas da vida, cozinhavam, fritavam peixes que haviam pescado, bebiam, declamavam, cantavam valsas, boleros e guarânias. E até que o sol se cansasse, passavam felizes todas as horas do dia. Depois retornavam à cidade.


(Nada lhes era mais importante - foto postada no facebook por Vanderlei Berto)

     Quando transito pela Anhanguera ainda fico procurando porteiras. Há mais de quarenta anos não entro por aquela que leva à cachoeira. Nem sei se ela e o rancho ainda existem - ou se o progresso os fez desaparecer...

     Hoje aqui, aclimatado artificialmente em uma sala 6x4, empetecado de tecnologia, distante da cachoeira e do rancho, recebo e envio abraços e sorrisos virtuais que se apagam e são esquecidos com um click na tela. Cotejo tais sorrisos e abraços com os que vi serem dados de fato por aqueles amigos, em um tempo em que abraço era coisa real e traduzia convívio solidário na amizade. E, sorrindo para mim mesmo, resgato um pouco da minha alegria infantil ao me lembrar da doçura, pureza e simplicidade na familiaridade que existia naquele pequeno paraíso... quando aqueles homens tomavam banho de cachoeira e se reuniam no rancho "do "Yamaguti", às margens do Sapucaí, no final da pequena estrada encoberta pela mata.


(O rancho do Yamaguti - foto postada no facebook grupo fotos antigas de Guará)

7 comentários:

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    1. Obrigado, Olinda... coisas de Guará.... da gente de Guará. Grande abraço.

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  2. A saudade bate forte no peito da gente... lembrei do meu pai. Abraços

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    1. De fato, João... O seu pai também fazia parte desse grupo, não é? Grande abraço, e muito obrigado pelo carinho e amizade de sempre.

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  3. Participei algumas vezes dos famosos almoços do Rancho da Cachoeira. O José Berto era o cozinheiro oficial e tinha muito orgulho disso. Lembro-me que alguns , gostavam de cantar, como o Dr. Hassan , o Durval Alcântara, e tinha também o jogo da cacheta e em algumas vezes o de truco. Cerveja gelada à vontade, comida boa, se fosse época até pescaria. Muitos gostavam de brincar na cachoeira, conforme a foto publicada acima. O Zoreia era presença obrigatória, ele com aquele jeitão de ser alegre e amigo de todos.Quanto o Zinho e o Silvaninha estavam na cidade, era um subterfúgio para se fazer uma caldeirada na Cachoeira. O Dr. Neif ( Lili) era um cidadão mais ocupado que essa turma, mas de vez enquanto ele comparecia.
    Uma vez ou outra havia exageros etílicos, que causavam umas discussões, que não davam em nada, talvez um ou outro pegasse sua caminhonete e batia em retirada.
    Velhos tempos, bons tempos, pena que a vida é tão ligeirinha e tudo passa muito rapidamente.
    Parabéns Elias, é muito bom lembrar dos bons momentos dessa vida e, quero lhe dizer que gostava muito do seu pai, aliás, era colega no grupo Nakano e também foi meu professor no Colégio Comercial.

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  4. Obrigado Gilson por postar aqui um pouco de tudo que você também observou. Tudo isso reconstrói um universo de cidade pequena quando o tempo parecia correr mais devagar. Grande abraço!

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