terça-feira, 3 de maio de 2016

UMA OUTRA PRIMAVERA


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
(Jamil y su canto árabe - fonte: https://www.youtube.com/watch?v=fN8XQyqyV3k)

     A primavera é um período do ano em que as flores desabrocham e a natureza mostra suas cores e perfumes. De maneira simbólica, nós também, em algum momento, diante de alguma situação que nos incomoda, desabrochamos. E, em circunstâncias assim, levantamos a voz, mostramos nossa indignação e nosso inconformismo.

     Na História recente, a partir de 2010, uma série de manifestações, que ficaram conhecidas como "Primavera Árabe", foram deflagradas no Oriente Médio e no norte da África. Na Tunísia, Líbia, Egito, Síria, e em outros países, a população tomou as ruas, na tentativa de demover ditadores e reivindicar melhores condições sociais de vida.

     Nem todos os movimentos foram bem sucedidos. Em virtude dessa instabilidade política, e consequente violência, muitos, por todos os meios de fuga, possíveis e imagináveis, passaram a deixar seus países para procurar refúgio na Europa e em outros cantos do mundo. Na Síria, por exemplo, as manifestações ensejaram conflitos com perfis de guerra civil, e resultaram em muitas mortes. 

     Diante dessas crises cíclicas por que passa a humanidade, a História ensina que, na condição de refugiados ou simples emigrantes, essas buscas por melhores condições de vida nunca cessam.

     Lasar Segall*, ele próprio um imigrante, em "Navio de Emigrantes" fez uma bela alegoria de homens e mulheres à procura de outra realidade. Nela, o artista retrata famílias inteiras, e mesmo indivíduos isolados, fugindo, num navio, de guerra, de fome e de miséria.

Navio de Emigrantes
(Navio de Emigrantes - Lasar Segall, 1939 - fonte:  http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2190/navio-de-emigrantes)

     Em outros tempos, na minha terra, indo em direção à minha casa, eu costumava passar pela "Rua da Cadeia". E ali, em um alpendre que tinha a esquina como o oceano da casa, eu cumprimentava um grupo de irmãos sentados lado a lado, conversando, em cadeiras de descanso. Eram imigrantes sírio-libaneses; criaram suas famílias, construíram suas vidas no Brasil, e, com seu trabalho, ajudaram a edificar uma cidade - a minha cidade.

(Srs. Zahki, Jorge e Antoun, no alpendre - foto cedida por Rimon Tannous)

     Hoje, quando passo por aquela rua, não vejo mais os três irmãos que se sentavam nas cadeiras do alpendre da casa. Contudo, continua naquela esquina a memória dos exemplos daqueles que as ocupavam, bem como os de muitos outros imigrantes sírios-libaneses que, na primeira metade do século passado, vieram para o Brasil e aqui construíram a imagem positiva de um povo honesto e trabalhador.

     Se às vezes vejo, na TV ou nos jornais, a notícia e as imagens de refugiados sírios buscando uma nova vida em algum outro país, lembro-me dos imigrantes sírios e libaneses que conheci... e lamento, lamento e me envergonho, profundamente, que, diante deles, atualmente, muros e fronteiras cerceiem seu direito natural de reflorescer e criar em liberdade, com dignidade, os seus filhos.

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* LASAR SEGALL (pintor, escultor e gravurista) Nasceu em Vilna, atual capital da Lituânia. Esteve no Brasil em 1913. Em 1923 mudou-se para São Paulo e quatro anos depois naturalizou-se brasileiro.

12 comentários:

  1. Elias, bonito texto sobre um problema que aflige milhões de pessoas, que não encontram reciprocidade dos outros países para onde vão. Muito triste essa situação, de pessoas que não têm, muitas vezes, outra alternativa senão deixar o país em busca de abrigo seguro para sua família.
    Eu me lembro bem dessa esquina e de outra ainda anterior, na rua Washington Luís, onde muitas vezes nos escondíamos durante as brincadeiras à noite. Eu, Zé da Fia, Marco Antônio, Pedro Bala e outros amigos.
    Muitas lembranças também, na mesma esquina da cadeia, da máquina de arroz do sr. Zahki Tannous.

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    1. Em cada esquina uma história, uma família na calçada com cadeiras de descanso... cada uma delas - das famílias - procurando, no convívio, o sentido da própria felicidade. Obrigado pela visita ao blog e pelo comentário postado.

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  2. Meu caro Brimo, sempre é um prazer ler seus textos, neste em particular quero compartilhar tua indignação da maneira que os refugiados são tratados, lamento que o interesse econômico das nações é maior do que as vidas ceifadas aos milhares, muitos fogem por falta de opção....

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    1. Acho que vivemos, no mundo todo, e em todos os tempos, um eterno conflito de valores... Obrigado, Brimo, pela visita ao blog e pelo comentário postado.

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  3. Linda narrativa de reminiscências dos antepassados, suas histórias, suas lutas e seus progressos fora de sua terra natal. Acho muito lindo, principalmente porque vivi muito isso nesta terra querida que é Guará. Parabéns!

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    1. Independente de nacionalidade e de lugar, a vontade de ser feliz é inerente a todo ser humano. Obrigado, João, pela visita ao blog e pelo comentário postado.

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  4. O Brasil só é a grande nação que é hoje graças aos imigrantes, dentro dos quais, lógico, os sírios-libaneses.Povo que trouxe-nos a medida da coragem, determinação e trabalho.
    Parabéns pelo texto, que retrata fielmente a visão humana e racional.

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    1. De fato, branco, índio, negro; imigrante, escravo ou nativo... cada qual com suas características próprias, ainda hoje construindo o nosso país. Obrigado; grande abraço.

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  5. Morei por muitos anos ao lado desta extraordinária família Tannos, onde fiz grandes amigos " Hamid , william " , crescemos juntos e aprendi a gostar da saborosa cozinha árabe.
    Saudades.....

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    1. Isso mesmo, Divino... de vez em quando uma baciada de pão sírio feito pela Dna. Cecília: delícia! Grande abraço.

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  6. Belo texto, Elias. Na minha pequena vilazinha natal, tínhamos também alguns sírios e libaneses. Eu mesmo sou afilhado do descendente de um casal de libaneses: meu querido padrinho de crisma Said Felício. Tenho por eles, além do gosto pela excelente culinária, o maior respeito e admiração. E me fica, até hoje, aquela pulga atrás da orelha sobre o sentimento daqueles que jamais tornarão a ver a terra natal. E tenho um primo, descendente de outro sírio, seu xará, ainda morando lá na terrinha. Grande abraço.

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    1. Obrigado, Saint-Clair. De fato, a convivência com os imigrantes sério-libaneses nos ensina a gostar não só da culinária, mas em especial do prazer de uma mesa farta, das refeições que duram horas e horas, das conversas que resgatam tempos, parentes e amigos esquecidos... Grande abraço.

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