sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

GERALDO VANDRÉ

 

Geraldo Vandré
https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/o-geraldo-vandre-radical-e-uma-invencao-de-um-tempo-em-que-estetica-submetia-se-politica-50885/

Sempre que alguma leitura, alguma imagem ou alguma música me leva ao Geraldo Vandré, a sensação que me ocorre é de algo distante, de eco, de chamado, sem que eu consiga detectar a sua origem… Fica um aperto no peito ligado a angústia, a abandono… E penso que a composição musical é rica justamente quando promove esse emaranhado de sentimentos e sensações. O violão, ao fundo, com o Vandré, nem sempre parece acompanhar o canto. Contudo, é uma disparidade assim que também transmite mensagens que a gente traduz em busca, procura, desencontro… e, por vezes, desencanto.

Geraldo Vandré - "Aroeira"
https://www.youtube.com/watch?v=EGyb11knYYo

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

TEMPO TEMPO TEMPO

 

"Tempo tempo tempo" - Foto: acervo pessoal (12fev25)

… troquei passos pelas ruas escuras, atento ao meu redor, ao movimento de estranhos, aos desenhos da minha própria sombra… Acelerei o passo… até chegar ao meu destino: Mariana Junqueira, 623. Pronto. Bauhaus. Ali dentro, em  cores, rejuvenesci: vermelho, amarelo… casas, faces… azul, verde… o campo… a cidade… Arte! “Tempo tempo tempo” - exposição de arte montada pela ALARP (Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto). 

Depois, no escuro das calçadas, reedificado…segui o meu caminho rodeado de pássaros, flautas, bandolins, rios, fontes, amigos, luar e abraços - que só eu conseguia enxergar.

Caetano Veloso - "Oração ao tempo"
https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA

“Compositor de destinos / Tambor de todos os ritmos /  Tempo, tempo, tempo, tempo”.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

ACADEMIA RIBEIRÃOPRETANA DE LETRAS - DISCURSO PROFERIDO NA SOLENIDADE DE POSSE DA DIRETORIA 25/26

 

Discurso que proferi em 05/fev/25, na solenidade de posse da Diretoria 25/26 da Academia Ribeirãopretana de Letras (ARL).

Foto: acervo pessoal (05fev25)
________________________________________ 

Senhores componentes da Mesa Diretora, Srs. Acadêmicos, Sras. Acadêmicas, Autoridades, Senhoras e Senhores, minhas queridas amigas, meus queridos amigos.

 

A cerimônia de posse é esse processo de transição, em que um grupo de acadêmicos, que dirigiu a entidade, transmite a um outro grupo de acadêmicos eleitos, a responsabilidade de cuidar e fazer cumprir os objetivos que ensejaram a sua fundação. Assim, ao longo do tempo, para que a academia possa se renovar, uma diretoria é eleita para geri-la, com prazo determinado, e a entidade, alternando poderes de tempos em tempos, segue com energias renovadas pelo período estatutariamente previsto, por todo o período de sua existência.

 

É importante, que em todo processo de transição, uma solenidade, como a que está acontecendo nesta noite, seja realizada. É importante, em especial nesses tempos de “terra em transe”, que todas as entidades culturais abram suas portas para que a comunidade possa celebrar o exercício da cultura, do ideal da paz, e do convívio harmonioso.

 

Aliás, convívio harmonioso possível e demonstrado pelo maestro judeu-argentino, Daniel Baremboim, e pelo teórico literário palestino, Edward Said, que fundaram, em 1999, a West-Eastern Divan Orchestra – uma orquestra, que tem realizado apresentações em todo o mundo, e que é composta por jovens músicos majoritariamente árabes e judeus. Na arte, diante da beleza, diante do despertar para o sonho, os homens se humanizam, cantam, dialogam, estendem os braços uns aos outros, se abraçam, se completam e se complementam.

 

Este é, portanto, o propósito de uma Academia de Letras: incentivar a cultura e a literatura... promover a difusão e a preservação da Língua Pátria, inspirar, aproximar, humanizar, sugerir possibilidades, abrir caminhos.

 

Quero, inicialmente, agradecer e parabenizar a Fernanda pela sua magnífica condução dos destinos desta nossa Academia nesses dois últimos anos; quero também agradecer e parabenizar todos os componentes da diretoria 2023/2024, pelo notável espírito acadêmico, e pelo carinho que dedicaram a cada um dos eventos e encontros realizados. E foram muitos!

 

Destaco, especialmente, as parcerias culturais com as demais entidades congêneres, com evidente incentivo à convivência amena e fraterna, entre os membros dos diversos grupos culturais existentes em Ribeirão Preto – e sempre com o apoio da Secretaria da Cultura do Município. Ao longo destes últimos dois anos, a ARL promoveu eventos e esteve presente na comunidade com vigor, com o destaque e o brilho que ela merece ter, sempre levando e propondo a estética da inclusão. E não somente nos últimos dois anos, mas também nas gestões anteriores, conduzidas brilhantemente pelo Waldomiro, pelo Ferriani, e por tantos outros que vieram antes de nós. O nosso agradecimento a todos os que nos antecederam, por nos possibilitarem chegar até aqui com a consideração e o respeito vindos de toda a comunidade.

 

Quero também agradecer, com muito carinho, a todos os acadêmicos que se juntaram a nós, na montagem de uma chapa para ser submetida à aprovação dos 40 membros efetivos da Academia. Agradeço, portanto, ao voto de confiança que nos foi dado pela maioria de nossos pares, evidenciando, assim, a legitimidade que necessitamos ter, para podermos cuidar da Academia, como seus legítimos representantes no biênio 25/26. Sem o decidido apoio de tantos, nós não ousaríamos nos candidatar; e, eleitos, tampouco ousaríamos assumir a direção da Academia – posição tão honrosa quanto desafiadora. Afinal, ninguém ignora o quanto é difícil administrar um centro produtor e difusor de estímulos culturais, sobretudo em uma época em que determinados valores universais andam tão menosprezados.

 

        Mas felizmente somos todos dotado das capacidades de observar, de sentir, de pensar, de dialogar e fazer cumprir nossos impulsos: tanto os construtivos quanto, infelizmente, os destrutivos. E Ruy Guerra, nesse sentido, fez uma bela observação, no pequeno trecho de poema que se ouve no “Fado Tropical”, de Chico Buarque de Holanda:

 

“Sabe, no fundo eu sou um sentimental.

Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo

(além da sífilis, claro)

Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar,

esganar, trucidar

Meu coração fecha os olhos...

e sinceramente, chora...”

 

E é por isso que os pensamentos precisam ser pensados antes de serem traduzidos em ação efetiva. Assim, no breve instante contido entre intenção e o gesto, sensíveis ao universo ao nosso redor, uma reflexão atenta pode promover resultados admiráveis. E a literatura nos convida à reflexão.

 

Ao juntar essas ideias para serem trazidas aqui, hoje, ocorreu-me um pequeno trecho de uma canção argentina, “Solo le pido a Diós”, do compositor León Gieco - um verdadeiro hino de apelo à consciência social e à compaixão humana:

 

"Só peço a Deus

Que a dor não me seja indiferente

Que a ressecada morte não me encontre

Vazio e só, sem ter feito o suficiente (...)"

 

       E a ARL é uma entidade que sempre esteve atenta às carências sociais e intelectuais do homem, propondo, por conseguinte, reflexões inspiradas na literatura, que possam resultar em descobertas e transformações. E é essa reação pensada, trabalhada, que pergunta o porquê dos porquês, que procura interpretar um texto e promover inquietação, ... é essa reação que constrói, que edifica... que faz sonhar, viajar, acreditar na possibilidade de um mundo menos insensível, menos desigual...

 

       Nós, da Academia Ribeirãopretana de Letras, acreditamos que a literatura seja o instrumento apropriado para inspirar autoestima naqueles que se abatem; que seja ela, a literatura, o instrumento que coloca o homem em mundos possíveis – e por que não? -  sem que ele, o homem, precise deixar a pequena escrivaninha onde folheia os seus livros (conforme também observou, um dia, o nosso amigo, escritor, Perce Polegato).

 

       Pois a ARL congrega um grupo de pessoas que lança o olhar para o passado, pensa e repensa o presente, propõe inspiração, reúne, debate, incentiva, e projeta um futuro. E é mesmo esse o seu propósito: estimular, provocar, sugerir... acender.... AS-CEN-DER....

 

“Subamos!

Subamos acima

Subamos além, subamos

Acima do além, subamos!

Com a posse física dos braços

Inelutavelmente galgaremos

O grande mar de estrelas

Através de milênios de luz. (...)

 

Oh, acima

Mais longe que tudo

Além, mais longe que acima do além!

Como dois acrobatas

Subamos, lentíssimos

Lá onde o infinito

De tão infinito

Nem mais nome tem

Subamos! (...)"

 

       - Ah, Vinícius...!!

 

       Em um universo que agrega 40 mentes sonhadoras, a diversidade de ideias e de leituras fervilha. Somos professores, médicos, advogados, engenheiros, sociólogos, dentistas, funcionários públicos, empresários, comerciantes, comerciários, industriários, historiadores... não importa: somos gente; somos homens e mulheres, cada qual com sua história de vida, com um pequeno e maravilhoso universo guardado no peito, que pode despertar e se expandir, a partir da aproximação de outros universos contidos naqueles que se aproximam. É nessas trocas que evoluímos, que rompemos fronteiras, que nos abraçamos, que aceitamos, que celebramos a diversidade. E é bom que seja assim!

 

       Creio que a função de um intelectual, de um acadêmico, seja mesmo essa: inspirar questionamento, promover reflexão, discutir possibilidades... Não somente diante de seus pares, mas especialmente diante dos inocentes, dos ignorantes, dos que não conseguiram ainda pensar na ideia de outras realidades.

 

       A estes, e a todos nós, creio, somente ler não basta! É preciso conversar, é preciso analisar, é preciso avaliar a ideia proposta em um livro, em um texto jornalístico ou literário qualquer. E é aí que a responsabilidade do intelectual, leia-se, do acadêmico, é exigida: nas trocas, nos pequenos diálogos... propor questões, formular perguntas... muito, muito além de trazer respostas – pois é o próprio indivíduo, estimulado a isso, quem pode vislumbrar soluções para as suas angústias e para as suas aflições... é ele quem pode encontrar caminhos que julgava impossíveis. É, pois, a partir de uma provocação, que a elaboração do pensamento fervilha. E, provocar, é função do intelectual.

 

       É claro que tudo se renova...  o céu se renova, as águas dos rios se renovam, o ar se renova, a administração pública se renova, as entidades e os órgãos se renovam... eu revejo meus pensamentos, e me renovo. Tudo se renova, inclusive a Academia. As possibilidades transitam na mente de cada um de nós. É um privilégio podermos pensar e repensar, encontrar caminhos... arejar nossos pulmões... e seguirmos em frente. Creio que a leveza das nossas horas, do nosso tempo, seja decorrente da compreensão da nossa natureza, inclusive da falibilidade de nossos gestos... Entendo a maturidade nessa possibilidade de abertura para o que possa vir.... E é por isso que aplaudo os jovens... É preciso que continuemos tendo a alegria da criança que vai, aos poucos, desvendando o mundo... renovando, crescendo, amadurecendo... É o exercício da reflexão, estimulado pela leitura e discussão de textos e ideias, que pode rejuvenescer o envelhecido, levar a paz ao rancoroso, e restabelecer a dignidade ao homem que não sabe onde encontrar a sua.

 

       E aqui na ARL, cada um dos acadêmicos contribui para que a nossa história continue sendo tão bem escrita quanto tem sido até hoje. Nosso combustível é o livro, nossa arma é a palavra; nossa fome é de ideias, nossa esperança é a felicidade - de todos!

 

       Sonho, para a gestão que se inicia, propor que ouçamos mais, que enxerguemos mais, que nos aproximemos dos nossos vizinhos e dos  habitantes dos casebres mais distantes da cidade, e levemos a eles os nossos olhos e os nossos corações sensíveis e atentos... para que possamos perguntar com fundamento... para que possamos promover alguma reflexão em torno de alguma ideia... posto que ideias e reflexões, parece, deixaram de ser pensadas, que passaram a ser simplesmente transmitidas, sem que haja uma avaliação a respeito da veracidade de seu conteúdo. E a proposta desse questionamento, pela palavra e pela literatura, a respeito de conteúdos que possam edificar e transformar, é o que, creio, temos a oferecer.

      

Penso que cada um de nós, membros da Academia Ribeirãopretana de Letras, pode ir além das quatro paredes que nos aprisiona... para podermos inspirar, para podermos fazer nascer a possibilidade de novos caminhos aos desesperançosos, para podermos sanear raciocínios tortos, e para podermos possibilitar o alimento intelectual a quem vive empobrecido de sonhos e de ideais.

 

Não, não temos o poder de salvar a tudo e a todos...  

 

"...Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar a todos - se possível - judeus, o gentio... negros... brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido".

 

       E em um cenário fictício, inspirado no discurso do genial Charlie Chaplin, em O Grande Ditador, milhões de pessoas ouvem... e se transformam... E quem, hoje, nos ouve? E quem está disposto a dedicar alguns minutos para pensar no que ouviu, para compreender que é o responsável pelos próprios erros ou acertos?

 

       Não sei... penso naquele grupo que, antes mesmo de 1947, em um mundo que havia sofrido com a discriminação e começava a celebrar amplas liberdades, um grupo que recitava poesias nos bancos dos  jardins da Praça XV, rodeados de flores, propondo a literatura e o muito que ela tinha (e tem) a oferecer ao homem empobrecido, às comunidades intelectualmente adormecidas, aos desencantados sob as marquises de edifícios... Não sei... fico imaginando cada um de nós, a partir dos textos que lemos, que criamos... no contato com o outro... fico imaginando a proposta de inspiração que oferecemos...

 

       A diretoria da ARL, que se inicia, não traz palavras de ordem, pois não as tem. A diretoria que se inicia propõe o seu empenho, por intermédio da literatura; a sua crença na capacidade do homem de poder ouvir, ler, pensar, discutir, se emocionar... e se edificar...

 

Além da diretoria, no fim das contas, todos nós, membros da ARL, temos a nossa semente de erro ou de acerto nas pegadas que deixamos pelo caminho, e na estrada tão inteligentemente ilustrada pelo poeta latino-americano, Rubén Darío, e que estamos prestes a seguir:

 

"Peregrino que vais buscando em vão

Um caminho melhor que teu caminho,

Como queres que te dê a mão,

Se meu estigma é teu estigma, peregrino?

Não chegarás jamais a teu destino;

Levas a morte em ti como o verme

Que te rói o que tens de humano…

O que tens de humano e de divino!

Segue tranquilamente, Oh! Caminhante!

Ainda te fica muito distante

Esse país incógnito que sonhas…

E sonhar é um mal. Passa e esquece,

Pois se te empenhas em sonhar, te empenhas

Em aventar a chama de tua vida."

 

       - Sigamos, pois.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

BATIZADO DE MACUNAÍMA

 

"Batizado de Macunaíma" (1956) - Tarsila do Amaral
132,5 x 250 cm - óleo sobre tela (em coleção particular)
Foto: acervo pessoal

"No fundo da mata-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente" (Mário de Andrade)
 

Jamelão - "Macunaíma" (David Correa/Norival Reis) - Samba-enredo da Portela (1975)
https://www.youtube.com/watch?v=jbqwRtvSk48

Samba Enredo 1975 - Macunaíma - G.R.E.S. Portela (RJ)

Portela apresenta

Do folclore tradições

Milagres do sertão à mata virgem

Assombrada com mil tentações

Cy, a rainha mãe do mato, oi

Macunaíma fascinou

Ao luar se fez poema

Mas ao filho encarnado

Toda maldição legou

 

Macunaíma índio branco catimbeiro

Negro sonso feiticeiro

Mata a cobra e dá um nó

 

Cy, em forma de estrela

À Macunaíma dá

Um talismã que ele perde e sai a vagar

Canta o uirapuru e encanta

Liberta a mágoa do seu triste coração

Negrinho do pastoreio foi a sua salvação

E derrotando o gigante

Era uma vez Piaiman

Macunaíma volta com a muiraquitã

Marupiara na luta e no amor

Quando sua pedra para sempre o monstro levou

O nosso herói assim cantou

 

Vou-me embora, vou-me embora

Eu aqui volto mais não

Vou morar no infinito

E virar constelação


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

ANITA "TROPICAL"

 

"Tropical" (1917) - Anita Malfatti - óleo sobre tela 77x102cm
https://fcs.mg.gov.br/a-importancia-do-quadro-tropical-para-a-arte-brasileira/

    Há pouco comecei a ler uma biografia* do escritor brasileiro Mário de Andrade. Logo nas primeiras páginas Jason Tércio, o autor, conta do início da amizade do biografado com Anita Malfatti, da troca de cartas entre ela e o Mário de Andrade, e do rompimento dessa amizade, anos depois. Mas um pouco da história de Anita, contada nessa biografia, já foi suficiente para que eu me interessasse em também conhecer um melhor a vida e a obra de Anita Malfatti.
    Com o apoio da família, principalmente de um tio, a paulistana Anita Malfatti (1889-1964) mudou-se para Berlim, na Alemanha, para estudar pintura. Ficou lá por três anos. Com a intensificação dos movimentos políticos e sociais no Velho Continente, que precederam a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Anita trocou a Alemanha pelos Estados Unidos, mais precisamente por Nova Iorque, também para estudar pintura. Viveu em Nova Iorque por um ano e meio. Naquele período, o nacionalismo exacerbado na Europa trouxe reflexos também aqui para o Brasil, onde  os debates a respeito do nacionalismo e da construção da nação brasileira passaram a ser intensos. Pois aqui estávamos construindo um novo país, sob os embalos da nossa Belle Époque tardia, do Rio de Janeiro modernizado por Pereira Passos, do Futurismo e das novas tendências artísticas. Havia pouco o Brasil tinha libertado homens e mulheres escravizados (1888), deixado de ser um Império (1889), ganhado uma Constituição (1891), e começado a construir uma República. E um dos primeiros movimentos ocorridos no final do Século XIX e início do XX foi a busca pela construção de um perfil para a nação, moldado pela tentativa de branqueamento da população brasileira. O grande fluxo de imigrantes europeus que na época aqui aportavam, deixa tudo isso muito evidente.
    Anita, que havia acompanhado os movimentos artísticos de vanguarda na Europa, em especial o Expressionismo, com a ajuda de seu tio e o empenho de alguns então novos amigos que conhecera (dentre eles Di Cavalcanti), realizou em SP, em dezembro de 1917, sua exposição "Pintura Moderna: Anita Malfatti". Essa exposição deu o que falar: acentuou as discussões a respeito da nação brasileira, que foi "turbinada" por uma crítica publicada em jornal pelo escritor, editor, advogado e ativista Monteiro Lobato ("Paranoia ou Mistificação?"), ao sugerir que diversas obras mostradas na exposição de Anita traduziam alguma insanidade. Assim comentava ele:

"(...) veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro (...)".

    Com tudo isso, a repercussão da exposição de Anita, apesar de não ter feito tanto bem a ela, na época, abriu caminho para o Modernismo brasileiro.
    Dentre as obras mostradas na Exposição, "Tropical" - então com o título "Negra baiana" - contrastava com o perfil que, de maneira forçada, queria-se traçar para o brasileiro. "Negra baiana" era totalmente divergente dessa tendência. Na tela, uma mulher traz nos braços um cesto contendo frutos tropicais - banana, mamão, abacaxi, laranja. Ela tem a pele morena, os cabelos escuros, e está vestida com uma blusa clara. Sua postura servil remete à lembrança do modelo de trabalho extinto no país. A expressão de melancolia em sua face parece até ter sido a inspiração para, depois, Paulo Prado comentar na abertura de seu livro "Retrato do Brasil" (1928): "Numa terra radiosa vive um povo triste". Essa tela, portanto, diferente da identidade europeizada que se queria traçar para a nação brasileira, foi, evidentemente, parte estimuladora das discussões em torno da construção da nação brasileira. Tanto que, logo depois, em 1922, a Semana da Arte Moderna trouxe a ideia da antropofagia cultural, e desaguou em interpretações tais como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, e diversas outras com o mesmo grau de relevância.
    Assim, meu raro leitor, quero dizer com tudo isso que a construção do perfil da nação brasileira, iniciada em 1822, com a Independência, atravessou todo o Império, ganhou forças na Primeira República, e, pelo que consigo interpretar, continua em fase de construção - e Anita Malfatti,  precursora do Modernismo, foi também uma das responsáveis por isso. 

50 obras de Anita Malfatti
fonte: https://www.youtube.com/watch?v=6kjMzM0MlVg
_________________________________ 
*"Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade" (Estação Brasil, 2019)

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

FALA-ME DE AMOR

 

Em um café (O Absinto) - (detalhe) - 1875-1876 - Edgar Degas (1834-1917)
óleo sobre tela - 92x68 cm - Museu D'Orsay (Paris)

    Edgar Degas (1834/1917) pintou muitas mulheres. Membro do grupo de impressionistas, ao invés de paisagens ou espaços abertos, preferia pintar ambientes fechados, mostrando a vida cotidiana. Gostava muito de pintar bailarinas: fez um grande número de telas a respeito do tema.
    Sempre que folheio livros que trazem suas obras, a tela que mais me pede tempo para observar é a de um casal em uma mesa de café, sentados um ao lado do outro: o homem, de chapéu e paletó escuros, apertando por entre os lábios um cachimbo, dirige o olhar em direção oposta à mulher a cuja presença está indiferente. Ela, de ombros caídos, tendo um copo de absinto à sua frente, transmite melancolia e tristeza no olhar, como se estivesse mendigando atenções.
    Imóvel e em silêncio, examinando atentamente o casal pintado, fico pensando no que poderia ser oferecido àquela mulher, naquele momento, naquele lugar, que tivesse a magia de fazer brotar alguma luz de seu olhar... Não, não creio que pudesse ser algo material; acabo por acreditar que a atenção de seu companheiro, acompanhada de palavras de carinho, certamente poderiam fazer renascer sua beleza e sua alegria... mas aí nem a mensagem do quadro, nem a transformação que poderia ser processada no observador seriam as mesmas...

Lucienne Boyer - "Parlez moi d'amour"
https://www.youtube.com/watch?v=rIAQWr34De0

Parlez-moi D'amour (Jean Lenoir)

 

Parlez-moi d'amour

Redites-moi des choses tendres

Votre beau discours

Mon cœur n'est pas las de l'entendre

Pourvu que toujours

Vous répétiez ces mots suprêmes :

"Je vous aime"

 

Vous savez bien

Que dans le fond je n'en crois rien

Mais cependant je veux encore

Écouter ce mot que j'adore

Votre voix aux sons caressants

Qui le murmure en frémissant

Me berce de sa belle histoire

Et malgré moi je veux y croire

 

Il est si doux

Mon cher trésor, d'être un peu fou

La vie est parfois trop amère

Si l'on ne croit pas aux chimères

Le chagrin est vite apaisé

Et se console d'un baiser

Du cœur on guérit la blessure

Par un serment qui le rassure

Fala-me de amor

 

Fala-me de amor

Diga-me as coisas ternas

Seu belo discurso

Meu coração não se cansa de ouvir

Cuide para que sempre

Você repita estas palavras supremas

"eu te amo"

 

Você sabe

Que no fundo eu não acredito nisso

Mas,  no entanto, eu ainda quero

Ouvir estas palavras que gosto de ouvir

A sua voz em sons carinhosos

Que o murmúrio emocionado

Me embala com sua bela história

E, apesar de mim, quero acreditar no que diz

 

É tão doce

Meu querido tesouro, ser um pouco louco

A vida é por vezes demasiado amarga

se a gente não acreditar em sonhos impossíveis

A dor é rapidamente apaziguada

e consola-se com um beijo

Do coração cura-se o ferimento

Por um juramento que o faz ressuscitar


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

DO ANDAR DE CIMA

 

https://www.craiyon.com/image/uXKT4fnZQqeOB1QzsKGczw

Enviei a uma amiga alguns textos redigidos por mim. Em retorno recebi comentários escritos e áudios gravados: uma companhia generosa para o andar de cima, de onde os problemas do mundo abaixo não nos incomodam. Olhando lá de cima, o barulho, as rivalidades, o ódio, nada disso parece fazer sentido... as ruas, as calçadas, as pessoas nas casas, nas lojas, nas cidades... a vida segue em paz. E à noite, de lá de cima, mirando as estrelas, um espetáculo gratuito se desenvolve. Coloco-me como espectador atento, silencioso, pacificado... Para lá eu vou quando consigo me inserir nos textos poéticos que leio... Para lá eu ia, para ficar pensando... para o andar de cima, para o telhado da velha casa amarela que mora em mim: para lá fui reconduzido ao ler as mensagens que me foram enviadas pela minha amiga...

James Taylor - "Up on the roof" - (Goffin/Carole king)
 https://www.youtube.com/watch?v=sMt2Vh7otQ0

Up On the Roof (G Giffin/Carole King)

 

When this old world starts a getting me down

And people are just too much for me to face

I'll climb way up to the top of the stairs

And all my cares just drift right into space

 

On the roof, it's peaceful as can be

And there the world below don't bother me, no, no

 

So when I come home feeling tired and beat

I'll go up where the air is fresh and sweet

I'll get far away from the hustling crowd

And all the rat-race noise down in the street

 

On the roof, that's the only place I know

Look at the city, baby

Where you just have to wish to make it so

Let's go up on the roof

 

And at night the stars they put on a show for free

And, darling, you can share it all with me

That's what I said

Keep on telling you

 

That right smack dab in the middle of town

I found a paradise that's troubleproof

And if this old world starts a getting you down

There's room enough for two

De cima do telhado

 

Quando esse velho mundo começa a me derrubar

E fica difícil encarar as pessoas

Eu subo até o topo da escada

E todos os meus incômodos vão para o espaço

 

No telhado tudo está em paz

E de lá, o mundo abaixo não me incomoda

 

Então, quando eu chego em casa cansado e abatido

Eu subo para onde o ar é fresco e doce

Eu vou para longe da multidão agitada

E de toda barulheira na rua

 

No telhado, o único lugar que conheço

Olhe para a cidade, meu bem

Onde você só precisa desejar para conquistar

Vamos subir no telhado

 

E à noite as estrelas promovem um show de graça

E, querida, você pode compartilhar tudo isso comigo

Foi isso o que eu disse

E continuo te dizendo

 

Bem ali no meio da cidade

Encontrei um paraíso que é imune a problemas

E se esse velho mundo começa a te derrubar

Há espaço suficiente para dois